Por Rubens Casara, no Justiticando
Vive-se um momento delicado que conjuga o empobrecimento tanto da linguagem, típico dos momentos de fascistização (que se caracterizam pela ode à ignorância, o medo da liberdade e a aposta em soluções de força para os mais variados problemas) quanto do imaginário (instaurou-se um modelo de pensamento simplificador, incapaz de compreender a complexidade dos fenômenos, a partir de imagens binárias e bélicas) com um processo de mutação do simbólico, com a perda da importância dos limites ao exercício do poder e dos valores transcendentes (tais como “a dignidade da pessoa humana”, “os direitos fundamentais”, etc.) em proveito do regime valorativo das mercadorias, de modo que nada (nem mesmo a ética ou os valores constitucionais) possa ser tido como mais importante do que a livre circulação das mercadorias, o desenvolvimento do espetáculo de imposição de penas, a implementação da visão de mundo de atores jurídicos ou a satisfação dos desejos/ perversões da parcela da sociedade que detém o poder econômico e/ou político.
Por tudo isso, não causa surpresa o tratamento simplista conferido aos fenômenos da “violência” e da “corrupção”, bem como falhas na percepção da conexão entre esses dois dados da realidade. A violência, por exemplo, só é percebida em seu sentido vulgar, naquilo que Zizek chamou de “violência subjetiva”[1], a violência de uma pessoa contra outra, o aspecto visível do fenômeno violência.
Esquece-se que, ao lado da violência vulgar, existe a violência estrutural/sistêmica[2] (aquela que é consequência do funcionamento e das perversões dos sistemas econômico, político e, por evidente, do sistema de justiça) e a violência simbólica (a violência encarnada na linguagem, i.e., na imposição de um universo de sentido, muitas vezes condicionado por preconceitos, por pré-compreensões autoritárias). E o pior: não se enxerga que a violência visível é, em regra, produto de uma outra, oculta.
Por desconhecer a conexão entre as diversas formas de violência, ações que, no plano do discurso oficial, direcionam-se à redução da violência ou da corrupção, no lugar de reduzir esses fenômenos, podem aumentá-los. E fazem isso, por exemplo, ao manter prisões desnecessárias, determinar conduções coercitivas fora das hipóteses legais ou, o que se tornou moda entre atores jurídicos que buscam o reconhecimento de um auditório autoritário, decretar prisões cautelares (sem que exista uma condenação irrecorrível) para obter delações e/ou confissões, em clara instrumentalização da pessoa e consequente violação da dignidade humana.
O mesmo se dá em relação ao fenômeno corrupção. Corrupção, por definição, é a violação dos padrões normativos do sistema. Não raro, com a boa intenção (a mesma que enche o inferno) de “combater a corrupção” do sistema político, acaba-se por corromper o sistema de justiça e mesmo as bases democráticas.
Pense-se, por exemplo, no paradoxo que seria uma campanha, paga com dinheiro público, com o objetivo de recolher assinaturas para um projeto de lei de iniciativa “popular”, na qual se pede para “quem for contra a corrupção” assinar o documento, isso sem que os signatários sejam informados do conteúdo do projeto, das repercussões constitucionais, sociais ou mesmo econômicas das medidas propostas e, em especial, dos reflexos do projeto no campo das liberdades públicas: sem o necessário debate público, pautado por informações corretas e dados confiáveis, um projeto como esse corrompe-se em instrumento de manipulação da população.
Pense-se, também, na violência sistêmica que a ampliação das hipóteses de prisão preventiva para o “combate à corrupção” causaria, levando-se em consideração o quadro de hiperencarceramento já existente e diante da constatação de que “para combater a corrupção seriamente é preciso antes melhorar o sistema institucional de controle porque o Direito Penal sempre chega tarde, quando o dano já está feito. É como dizer que punindo o genocida, evita-se o genocídio. É justo punir o genocida e o corrupto, mas não vai prevenir a corrupção nem evitar o genocídio. É mentira dizer que a corrupção vai ser derrotada com o Direito Penal”.[3]
Nos últimos dias, a população (que continua desinformada sobre o tema e, quando muito, é levada a perceber a questão como uma “luta do bem contra o mal”) tem presenciado o confronto (pontuado por declarações messiânicas e comentários dignos de um jogo de várzea no qual se disputa para saber quem viola mais a legalidade democrática) entre os idealizadores das chamadas “Dez medidas contra a corrupção” (que, vale esclarecer, inclusive para aqueles que assinaram a proposta de projeto sem ler, são bem mais do que dez medidas… e muitas das quais contrárias à Constituição ou aos princípios éticos) e os parlamentares que produziram mudanças no texto original.
Famoso ator jurídico (que, em razão da exploração midiática sobre um caso penal transformado em espetáculo, todos sabemos também fazer palestras em igrejas neopentecostais) chegou a afirmar que o Congresso Brasileiro estava a produzir um Frankenstein (na realidade, a citação era ao “monstro” que Mary Shelley fez nascer das mãos do Dr. Victor Fankenstein). E com certa razão (embora, aparentemente, o autor da comparação desconheça que esse “monstro” da literatura foi pensado como um Prometeu moderno).
O projeto aprovado é péssimo (criou, por exemplo, novas hipóteses de crime de responsabilidade para magistrados e membros do Ministério Público a partir de conceitos jurídicos indeterminados e abertos, o que é um risco não só à independência dos atores jurídicos como também abrirá oportunidade ao arbítrio e aos controles ideológicos no momento da aplicação da lei) e pode, de fato, ser chamado de um Monstro.
Todavia, os defensores das “Dez medidas” patrocinadas pelo MPF (na tentativa de criar, como percebeu o jurista Marcelo Semer, “um código para chamar de seu”) esquecem que o texto inicial, se não era um Frankenstein (na medida em que é integralmente voltado à ampliação do poder penal, mesmo que isso custe o afastamento da legalidade democrática), poderia ser chamado de um zumbi de tendências fascistas, no qual o desejo de “comer cérebros”, imortalizado nos filmes de George A. Romero, foi substituído pelo desejo de relativizar e afastar direitos e garantias fundamentais. Um projeto “zumbi”, vale frisar, porque parcela considerável da população assinou e foi levada a apoiar uma alteração legislativa sem conhecer o conteúdo do projeto ou ter consciência das consequências de sua aplicação.
O que há de comum entre o projeto zumbi originário e o “monstro” criado pela Câmara dos Deputados? A crença, por vezes ingênua, por vezes repetida por má-fé, na lei penal para resolver os mais variados e graves problemas sociais. Se as “dez medidas” originais, em nome da “guerra contra a corrupção”, corrompiam o sistema de direitos e garantias individuais, o texto aprovado na Câmara dos Deputados corrompe o sistema de prerrogativas necessário à atuação dos atores jurídicos. Leis que são apresentadas como soluções mágicas para problemas complexos como a corrupção e a violência, mas que acabam por gerar mais corrupção e violência. Leis que não funcionam e que serão substituídas por novas leis penais que também não vão funcionar.
–
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
[1] ŽIŽEK, Slavoj. Violência. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 17.
[2] ŽIŽEK, Slavoj. Violência. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 17.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Entrevista ao Conjur. Encontrado em: http://www.conjur.com.br/2015-nov-01/entrevista-raul-zaffaroni-jurista-ministro-aposentado-argentino