Seja no mercado de trabalho ou cultura, a luta da mulher negra para conquistar espaço e ser respeitada é ainda mais difícil que a da mulher branca
No El País
A publicitária e ex-modelo Luana Genot há tempos assumiu o desafio de levar ao mundo empresarial a luta contra o privilégio da cor da pele. Cansada de sofrer com o racismo e machismo, ela fundou o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), e literalmente tem batido na porta das empresas para mudar esta realidade. “Perguntei para um menino negro de seis anos o que ele queria ser quando crescer, e ouvi que ele seria segurança, pois esta é uma profissão de preto. Não podemos permitir que as crianças se apropriem desse discurso, por isso precisamos de exemplos”, afirma Luana, que participou do Seminário Brasileiras – como elas estão mudando o rumo do país, realizado no dia 2 de dezembro, em São Paulo, pelo EL PAÍS e a Agência Locomotiva.
Maria Rita Casagrande, fundadora do Blogueiras Negras e sócia da Infopreta, também conhece na pele o sofrimento que o estereótipo em relação a mulher negra pode causar. Formada em análise de sistemas, por muitos anos Maria Rita trabalhou como atendente de telemarketing por não encontrar outro emprego. Da necessidade de compartilhar suas experiências, nasceu o Blogueiras Negras, um espaço que une mulheres que escrevem, falam e produzem conhecimento a partir de suas vivências e experiências como mulheres negras. Empreender com o Infopreta foi outra oportunidade que encontrou para fazer o que deseja e não o que outros desejam para ela. “É comum nos oferecerem visibilidade, mas nós queremos oportunidades, emprego, apoio”, afirma.
O avanço do ativismo online de mulheres negras se tornou um importante canal para vencer as barreiras criadas pelo racismo. “A internet é o espaço que as mulheres negras encontraram para existir, já que a mídia hegemônica nos ignora”, explica Djamila Ribeiro, secretária-adjunta de direitos humanos da prefeitura de São Paulo. Segundo ela, os brasileiros ainda veem o racismo como algo da esfera privada, por exemplo, quando a atriz Taís Araújo é atacada na internet. E não como um sistema de opressão, que impede o acesso a determinadas esferas.
Trazer este tema à tona, e propor reflexões sobre o papel da sociedade na manutenção das estruturas de racismo não é fácil. “Há um incômodo das pessoas com o tema, mas isso é importante, ou todos vão achar que está tudo bem”, explica Djamila.
A representação na cultura
A cineasta Tata Amaral conheceu este incômodo pelos olhos de sua filha. Nos anos 80, as duas costumavam ir ao cinema ver principalmente blockbusters americanos. A menina nem sabia ler, mas percebia que os personagens negros morriam sistematicamente nos filmes. A criança notou também que os bandidos eram sempre os latinos, negros e árabes. Tata lamenta que a representação que orientavam o cinema na época pouco mudaram. “Fiz um documentário sobre hip hop e percebi que o jovem se identificava como PPP – preto, pobre da periferia, o que na sociedade tem uma carga ruim, representando o traficante, o bandido.”
O cinema que é produzido no Brasilreflete um poderoso complexo de representações, que exclui a maioria da população brasileira, composta por mulheres e homens negros. Os estratagemas de representação do racismo e machismo vêm como entretenimento, e o público não se dá conta. “Outro dia liguei a TV e tinha uma bunda rebolando para a câmera. A bunda não tinha corpo, perna, sentimento, nada. Era o retrato da mulher brasileira”, afirma Tata. E que quem patrocina esse programa? “São as mesmas pessoas que patrocinam os programas em que negros só servem para morrem, por isso, não dá para discutir feminino sem discutir a questão racial, sem discutir a criação do audiovisual negro”, responde a cineasta.
Do incomodo à agressão
Não são poucas vezes que as ativistas negras são chamadas de “chiliquentas” ou “agressivas” por aqueles que querem desqualificar sua luta. Falta empatia até mesmo dentro do movimento feminista. Djamila explica que as mulheres negras não têm como escolher contra qual opressão elas vão lutar primeiro: ser mulher ou ser negra. Por isso ela critica quem trabalha com dados genéricos sobre o tema, como o de que mulheres ganham 30% a menos do que os homens. Afinal, pesquisas mostram que homens negros ganham menos que mulheres brancas, e mulheres negras menos do que homens negros. “O machismo e o racismo nos tornam mais vulneráveis, por isso é preciso nomear se estamos falando de mulheres brancas, negras, trans ou lésbicas”, afirma.
Djamila é enfática em cobrar que as pessoas brancas se responsabilizem pelo racismo, inteirando-se do assunto e entendendo sua participação nesta mazela nacional, para que possam ser parte da mudança. “Mas de nada adianta fazer isso e pagar 600 reais [menos que um salário mínimo] para a mulher negra trabalhar de doméstica na sua casa”, alerta a secretária.
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CONQUISTA DE ESPAÇOS NA LITERATURA
“Sou de um tempo que gostar de Clarice Lispector era coisa de mulher. Ela tem um texto mais experimental, mas longe do texto anglo-saxão racional”, lembra Josélia Aguiar, curadora da Feira Internacional de Paraty (Flip 2017). A autora brasileira foi homenageada em 2005 no evento. E a partir de então, ganhou as capas dos principais cadernos de literatura internacionais. Passou a ter suas obras reeditadas e prestigiadas por críticos homens.
“Muito lentamente, as coisas começam a mudar”, afirma Josélia, que tem um grande desafio para o próximo ano: transformar a Flip 2017 no evento com maior diversidade de autores e gêneros, atendendo às demandas dos movimentos feministas e negro. Ela lembra que, até 2014, não havia nenhuma pressão para que houvesse paridade de gênero e raça. Havia, inclusive, dentre jornalistas, uma votação da musa da Flip. “Você pode falar da beleza de alguém, mas não dessa maneira estereotipada”, afirma.
A valorização de autoras do sexo feminino no Brasil é reflexo de um movimento que ocorre também em outros países. O Leia Mulheres começou em 2015, inspirado no #readwomen2014, ação criada pela escritora e ilustradora britânica Joanna Walsh para incentivar a discussão da presença de mulheres na literatura. Na época, o percentual de autoras na Flip era muito desproporcional, não passando de 30% do total de autores participantes. Em 2016, veio finalmente a paridade de gênero, mas faltaram autores negros.
“Estou com a missão de ser parte da solução e definir uma lista de mulheres, autoras negras, principalmente, para a edição de 2017”, afirma Josélia. Mas ela sabe que a iniciativa não escapa das críticas. “Sempre tem quem fale que agora tudo é cota, mas não é isso. As pessoas precisam entender que é necessário um esforço para nos livrarmos dos estereótipos.”