Trabalhos invisíveis. Ou o que o feminismo tem a ensinar para a esquerda?

Tatiana Roque* – Correio da Cidadania

As mulheres trabalham quando ninguém vê que estão trabalhando. A invisibilização do trabalho da mulher foi obtida, ao longo da história, por meio de dispositivos extremamente sofisticados. A naturalização foi o mais forte deles. O trabalho doméstico, especialmente aquele relacionado aos cuidados – com a casa, com os filhos e até com o marido -, foi incorporado aos costumes como uma dádiva: um trabalho feito por amor. But they say love, we say unwaged work, já dizia Silvia Federici, militante do movimento por salários para o trabalho doméstico.

Tem sido uma tônica no feminismo, desde os anos 1970, o reconhecimento da especificidade do trabalho das mulheres, assim como a denúncia de sua inserção desigual no mercado de trabalho. Sim, as mulheres querem reconhecimento pelo seu trabalho, querem ganhar tão bem quanto os homens, querem ter direito a uma vida pública. Mas é muito mais do que isso.

A especificidade do trabalho das mulheres, como foi historicamente determinada, aponta um caminho para a urgente redefinição da categoria de trabalho como um todo.

Queremos que toda a esquerda preste mais atenção ao que estamos dizendo quando mostramos que, há muitos séculos, temos realizado diversos trabalhos invisíveis enquanto tal. Neste exato momento, em que o processo de valorização passa cada vez mais pela realização de trabalhos invisíveis, nossa expertise pode ajudar vocês a saírem do impasse em que se meteram, sem precisarem continuar reproduzindo ad aeternum os discursos que descreviam o mundo do trabalho no século 19, ou até meados do século 20, mas que estão totalmente caducos para explicar o que se passa no mundo atual.

As relações capitalistas avançam a passos largos sobre um terreno que, até aqui, não era considerado como âmbito da produção de valor: o terreno da reprodução social. Feministas marxistas denunciam, desde os anos 1970, o campo da reprodução social como um campo de produção ativa, só que invisibilizado enquanto tal pelo marxismo. O trabalho doméstico, condição da exploração capitalista, foi naturalizado e negligenciado nos âmbitos do que sempre se reconheceu como trabalho: o trabalho assalariado e a produção industrial. Essa invisibilização foi fruto de um imaginário político que dava centralidade ao trabalhador macho e branco, incapaz de incorporar na teoria do valor todo um campo de relegado à esfera privada, ao trabalho fora da fábrica ou ao trabalho não pago de modo geral.

Essas feministas, associadas ao movimento por Salários para o Trabalho Doméstico (além de Federici, Mariarosa Dalla Costa, Selma James e outras), mostraram que o trabalho das mulheres era central para a reprodução da força de trabalho, logo para a manutenção das relações capital-trabalho, em que se estabelece um contrato entre o capitalista e o trabalhador livre – cuja liberdade era garantida pelo cuidado dispensado por uma mulher em casa, trabalho esse interpretado como afeto, ou seja, naturalizado como não-trabalho.

Outros dispositivos de invisibilização foram trazidos à baila, como as tecnologias envolvidas na produção dos gêneros, dos corpos sexuados e da família, todos relacionados ao trabalho assalariado e à lógica da acumulação capitalista. Além disso, a partir da crítica de feministas negras, como Angela Davis (1), à perspectiva das brancas de classe média, para quem o trabalho doméstico era visto como uma prisão, o terreno da reprodução social foi expandido para incluir a experiência das mulheres negras, desde a escravidão até as políticas racistas do welfare. Elas mostraram que o trabalho e os corpos das mulheres negras foram centrais para o funcionamento de campos importantes da economia, como as plantations.

Hoje, quando o trabalho afetivo, cognitivo e corporal é componente central da valorização capitalista, quando o trabalho passa a ser explorado em todas as dimensões da existência, as críticas feministas à concepção marxista de trabalho adquirem uma importância renovada. As mudanças no mundo do trabalho estão no foco da articulação de diferentes movimentos – tanto feministas quanto de negros, negras e imigrantes – em torno do conceito de “reprodução social” (2).

O paradigma da reprodução social aumenta a capacidade descritiva do que se convencionou chamar “trabalho cognitivo”. Esse viés é explorado por pensadoras feministas como Federica Giardini, que tira daí as sementes de uma nova economia política (3). Para além da valorização de capacidades afetivas, relacionais e linguísticas, destacadas pelas teorias do capitalismo cognitivo, há a naturalização de inúmeras atividades que são, na prática, exercidas por mulheres, negros ou imigrantes.

Assistimos, cada vez mais, à transformação do cuidado e do trabalho doméstico em commodities, o que na Europa e nos Estados Unidos chega a promover a multiplicação de agências de serviços, com regimes de trabalho hierarquizados que mobilizam diferenças de gênero, raciais e étnicas. A desnaturalização dessas atividades exige a redefinição de diversas noções compreendidas sob a categoria de trabalho: medida, valor, salário, necessidades, consumo, tempo de vida ou tempo produtivo, público ou privado.

A natureza do trabalho mudou radicalmente com a desconexão entre o aumento da produtividade e espaço-tempo do trabalho na fábrica. As economias baseadas no tempo de trabalho, com a automação, sofrem uma diminuição do valor produzido e, tendencialmente, do preço. As empresas tratam, então, de fazer a lei do valor funcionar por meio da produção de raridade e singularidade, que permite uma valorização a partir da posição ocupada pela empresa. Exemplo: tênis Nike. Pensem o quanto de seu valor é obtido por um trabalho realizado num espaço-tempo determinado e mensurável? Multiplica-se, desse modo, a produção de mercadorias com valor principal não mensurável. Nessa reconfiguração está a origem da economia do conhecimento ou do “capitalismo cognitivo”, como chamam alguns autores.

André Gorz foi um dos primeiros a mostrar que o trabalho cognitivo supõe a mobilização de todo o tempo social a serviço da empresa, inclusive daquele trabalho que provinha do tempo livre, do trabalho autônomo e sobre si. Quando a vida é colocada a trabalhar, o modelo taylorista da prescrição de tarefas, tempos e movimentos, dá lugar ao modelo da prescrição da subjetividade, no qual a principal questão é o controle total do tempo e do espírito dos trabalhadores.

Trata-se de uma crise da medida. O trabalho permanece sendo a única fonte do valor e da mais-valia, mas o trabalho cognitivo não se presta à avaliação segundo uma medida objetiva, e o tempo de trabalho efetuado no espaço da empresa se torna apenas uma fração, muitas vezes a menos importante, do tempo social efetivo de trabalho. Até aqui, a exploração era extorsão de um sobretrabalho, ou seja, de trabalho não remunerado fornecido involuntariamente no contexto de um contrato de trabalho. Mas quando o trabalho não é medido em unidades de tempo, como estabelecer o contrato?

Essa característica, que marca a virada neoliberal, já estava presente no trabalho naturalizado executado pelas mulheres. Está em jogo um trabalho não pago que as pessoas executam voluntariamente, acreditando trabalhar por sua conta, enquanto uma parte de seu esforço é captado pela valorização do capital. Atividades não pagas, que são corriqueiras na vida de cada indivíduo, passam a fazer parte da produção; atividades que antes serviam à reprodução da força de trabalho, agora são trabalho, pois tornam as pessoas capazes de interagir, comunicar, aprender, evoluir, fazer amigos. Por isso, as empresas valorizam a mobilização total de seus empregados – “vestir a camisa da empresa” é essencial para manter a empregabilidade. Quando a vida em toda a sua extensão adquire uma função tão central no processo de valorização, a produção de subjetividade torna-se um terreno de conflito central.

Não é possível deixar de lado a constatação de que os termos que fundaram o pacto do bem-estar social ancoravam-se na separação entre as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho: era preciso garantir ao trabalhador condições mínimas de existência para que fosse possível extrair valor de sua produção na fábrica. Como manter um pacto desse tipo diante da nova configuração do mundo do trabalho?

Mesmo sem incluir as perspectivas de raça e de gênero, Althusser e Foucault já haviam apontado o papel de certas instituições da reprodução social para a reprodução das relações capitalistas, o que envolve a reprodução dos meios de produção e da reprodução da força de trabalho pela ação de instituições como a família, a escola, a saúde, o casal, os jovens etc. Trata-se agora de dar um passo além nessas análises, mas incluindo as críticas feministas, do movimento negro e do pensamento pós-colonial. A reprodução social tornou-se, ao mesmo tempo, um ponto de partida para a crítica feminista do marxismo e uma perspectiva a partir da qual desenvolver novas categorias para uma análise das relações capital/trabalho.

Notas:

1) Angela Davis, Mulheres. Raça e Classe. Boitempo, 2016.

2)  Ver o número da revista Viewpoint Magazine sobre o tema: https://viewpointmag.com/2015/11/02/issue-5-social-reproduction/

3) Artigo no volume acima ou o mais extenso: “Le symbolique, la production et la reproduction. Éléments pour une nouvelle économie politique”, in C. Laval, L. Paltrinieri, F. Taylan (dir.) Marx & Foucault. Lectures, usages, confrontations, La Découverte, Paris 2015.

*Professora da UFRJ, presidente da ADUFRJ e coeditora da Revista DR: www.revistadr.com.br

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