Justiça anula condenação pelo Massacre do Carandiru. Mas podia ser pior, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, nesta terça (11), realizar um novo julgamento para os 74 policiais militares condenados pelo Massacre do Carandiru. Não há data para isso acontecer e o Ministério Público irá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça para manter as condenações. A outra opção, neste momento, era a absolvição de todos os policiais.

No dia 2 de outubro de 1992, 111 presos foram executados por forças policiais que invadiram o Pavilhão 9 da então Casa de Detenção de São Paulo. Os jurados condenaram os policiais militares envolvidos na operação.

Mas, em setembro do ano passado, a 4a Câmara Criminal do TJ-SP tornou sem efeito os julgamentos. O desembargador Ivan Sartori, relator do processo, votou não só pela anulação, mas também pela absolvição dos réus – o que contraria, segundo juristas, o Código de Processo Penal, por ir de encontro à decisão de um júri popular. Segundo ele, ”não houve massacre”, mas ”legítima defesa”. Sartori defendeu que uma outra decisão que absolveu três policiais que efetuaram disparos fosse estendida a todos os demais, garantindo isonomia.

O julgamento desta terça foi para verificar se o julgamento seria anulado e outro convocado, como votaram dois desembargadores em 2016, ou se todos os policiais seriam absolvidos – tese do desembargador relator. Venceu a posição de novo julgamento – o que é menos mal.

De forma intrigante, Sartori afirmou que ”nós julgadores não podemos nos influenciar por imprensa ou por quem se diz dos direitos humanos”. O que levanta a dúvida: se ele não é dos ”direitos humanos”, resguardados pelo artigo 5o de nossa Carta Magna e que significam, entre outras coisas, liberdade para abrir um negócio, ter uma religião, escrever em um jornal, comprar e vender uma casa, não ser vítima de violência por parte de outras pessoas ou do Estado, ter um julgamento justo, não ser escravizado, de que lado ele está?

Os promotores Fernando da Silva e Márcio Friggi, responsáveis pela acusação, afirmaram, durante os julgamento que condenaram os policiais, que o mais difícil não seria a questão de provas materiais, mas sim desconstruir a ideia perversa de que “bandido bom é bandido morto”. Eles estavam certos. Ideia que corrói não apenas a sociedade, mas as instituições criadas para evitar que nos matemos uns aos outros. O Estado deve nos proteger, não nos ferir ou nos matar, independentemente de quem sejamos ou do que tenhamos feito. A polícia não deve estar em guerra com seu próprio povo e o seu primeiro objetivo é proteger vidas e não patrimônio.

Sei que isso é difícil de entender no Brasil, onde pessoas são espancadas até a morte por roubar coxinha no mercado (e isso não foi figura de linguagem). Ou onde o risco de ser alvejado em um ”confronto policial” é inversamente proporcional à sua renda. Pois se já é duro viver em um lugar tomado pela violência relacionada ao tráfico, é pior ainda quando a polícia vê aquilo como território a ser conquistado – e, portanto, como ação passível de ”baixas” civis. Ou, pior: como espaço para a realização de ganhos pessoais.

Usando a mesma lógica defendida na absolvição, um grupos de policiais que chega atirando em uma comunidade pobre da periferia, sob a justificativa de combater traficantes, e mata crianças e adultos, está praticando ”legítima defesa”?

Histórico – E mesmo que essas condenações sejam confirmadas pelo TJ ou pelo STJ, o que pode levar anos em recursos, a Justiça nunca será completa. Porque um dos responsáveis pelo massacre nunca poderá ser punido, uma vez que a alma do coronel Ubiratan Guimarães foi para o brejo cedo demais. Foi assassinado em 2006 e, numa espécie de anedota da vida, ninguém foi condenado pelo crime até hoje. Estava a caminho de ser facilmente reeleito como deputado estadual, ironizando o país ao candidatar-se com o número 14.111.

Ele chegou a ser sentenciado, em 2001, a 632 anos de prisão pela responsabilidade direta em 102 mortes. Cinco anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou um recurso e o absolveu, gerando protestos dentro e fora do Brasil. A defesa de Ubiratan afirmou que ele estaria agindo no ”estrito cumprimento do dever” quando ordenou a invasão do Pavilhão 9. Cumprindo ordens. A mesma justificativa dos nazistas no Tribunal de Nuremberg.

Seus chefes, Pedro Franco de Campos e Luiz Antônio Fleury Filho, então secretário de Segurança Pública e governador do Estado de São Paulo, não são réus no caso. Mas se fossem, poderiam alegar o mesmo: ”estrito cumprimento do dever”.

Pois, como já disse aqui uma série de vezes, o que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992 foi um servicinho sujo que parte de nós, brasileiros, desejava (e ainda deseja) em seus sonhos mais íntimos: que bandido esteja morto e não reintegrado à sociedade. Tanto que, na época do julgamento, após a leitura da sentença, uma das advogadas de defesa foi de uma sinceridade contundente: ”Não é essa a vontade da sociedade brasileira”.

Para muita gente, essas limpezas sumárias são lindas, sejam as feitas pelas mãos da população, seja pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista. De fato, nem precisa ser traficante. Jovem, negro e pobre é suspeito. E para que correr o risco de manter suspeitos por aí, não é mesmo?

Nunca esquecer de casos como o do Carandiru é importante para que a sociedade consiga saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o. Para evitar que ele aconteça de novo. Mais do que um país sem memória e com pouca Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com a violência como principal instrumento de ação policial.

Pois, ao contrário de outros países, o Brasil não conseguiu tratar suas feridas para que cicatrizassem em nossa redemocratização. Apenas as tapou com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos seus quadros que usar da violência, torturar, matar e esfolar mulheres arrastando-as por ruas, presas a uma viatura policial não são coisas aceitáveis. Como eram durante a ditadura cívico-militar.

Não é de estranhar que boa parte da sociedade que grita que “bandido bom é bandido morto” também esteja entre os 9 em cada 10 que concordam com a redução da maioridade penal para os 16 anos, mas pouco discute políticas para garantir dignidade aos jovens. Quem sabe se a redução tivesse sido aprovada antes de 1992, não teríamos montanhas de corpos de adolescentes no Pavilhão 9, como ”ação preventiva” para o futuro, não?

Ou fique radiante com as ações truculentas da polícia militar na Cracolândia do Centro de São Paulo e não queira debater a questão sob uma ótica de saúde pública. ”Mata esses craqueiros, mata!”

São as mesmas pessoas que, no fundo, pensam “Bem feito!” ao lembrar dos 19 sem-terra mortos na Chacina de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996, não se importando com a grilagem de terras ou a fome no interior do país. ”Quem manda invadir terra dos outros?”

Ou escreve coisas como: ”Ah, se esses morreram nas chacinas no Jaçanã e no Campo Limpo é porque alguma culpa tinham. Inocente certamente não eram”, como circula pelas redes sociais sempre que ocorre uma matança na periferia. Não se incomodam com o fato de existirem cidadãos de primeira e segunda classe, com um abismo de direitos entre eles. São seguidores da doutrina: ”se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem” e sua variante ”se você passa fome é porque não trabalha”. A verdade é que a polícia não faz o que quer. Faz o que programamos ela para fazer.

Boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. Chega de julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de ”alimentar bandido” em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca para não gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo.

O que anos de políticos imbecis, apresentadores de TV safados e estruturas que pregam a violência como nosso cimento social (como certas famílias, igrejas, escolas e veículos de comunicação) têm pavimentado dificilmente será desconstruído do dia para a noite.

Ao criticar execuções públicas de pessoas que estão sob a tutela do Estado, não defendemos ”bandido”, mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, abrimos mão de resolver as coisas de forma sumária para impedir que nos devoremos. Pois o Estado não pode usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de se tornar pior do que ele.

Falta garantir Justiça aos executores do Massacre do Carandiru. Mas também falta julgar as autoridades nele envolvidas, os mandantes do Massacre de Eldorado dos Carajás, os envolvidos nos assassinatos de trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários, quem pagou policiais para serem jagunços e pistoleiros nas horas de folga, os que ordenaram massacres de sem-teto e de população em situação de rua, quem matou homossexuais e transexuais por não conseguir conviver com eles (e os que se negaram a investigar, arquivando muita coisa como ”suicídio” ou ”morte em briga” a fim de que os ”homens de bem” dormissem tranquilos), os que mandaram executar jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, os que aceitaram que tudo fosse registrado como ”autos de resistência”, as milícias matadoras de policiais que, não raro, encontram respaldo institucional e empresarial. Falta, na verdade, construir um povo. E um país.

Corpos de presos do Massacre do Carandiru (Foto Niels Andreas/Folhapress)

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