Não podemos aceitar a barbárie como único caminho, por Cândido Grzybowski

No Ibase

Estamos tão mergulhados no nosso cotidiano de crise, com evidentes indícios de barbárie em curso, que um olhar mais holístico sobre processos e possibilidades de outro amanhã fica automaticamente descartado. Está difícil se desvencilhar de fatos e acontecimentos conjunturais potencializados pela onda política de intolerância a princípios e valores democráticos e de desmonte de direitos e políticas, tudo em nome da “ordem e progresso” do governo Temer, necessário para a restauração do capitalismo selvagem e submisso às grandes corporações globais. Num clima de liberou geral e que vença o mais forte, a violência está em toda parte, com o convívio e a solidariedade totalmente esgarçados.  Os sonhos e os projetos que dão sentido à vida em coletividade estão sendo deixados de lado devido às premências do dia a dia. Sem dúvida, é muito grave o momento do país. No entanto, em nossas trincheiras de resistência precisamos urgentemente recuperar nossa capacidade de pensar para além da onda destrutiva do momento. Claro, ainda o pior pode acontecer. Por isto, desde aqui e agora, devemos criar condições para que a barbárie não seja a única alternativa no horizonte.

Pensando neste tema, decidi rever as análises e reflexões de um grupo – Global Scenario Group – que tive oportunidade de conhecer e com quem comparti ideias no auge do processo do Fórum Social Mundial. Desde o início do século XXI, o grupo vem trabalhando na ideia da Grande Transição (Great Transition) da Era Moderna para o que define como a Fase Planetária da Civilização, processo que estamos vivendo atualmente. Na minha busca, me deparei com um novo livro do Paul Raskin, Journey to Earthland: the Great Transition to Planetary Civilization, publicado em 2016, pelo Telus Institute, Boston, Massachusetts, USA. Paul é diretor do Telus Institute e coorganizador do grupo a que me referi acima.

O livro Journey to Earthland – em tradução livre “Viagem para o País Planeta Terra” – é uma síntese e um ousado passo adiante no sentido de pensar o que precisamos fazer como cidadãos do mundo para caminhar no sentido de tornar possível uma Civilização Planetária, baseada em paradigma alternativo ao capitalismo globalizado de hoje. Não preciso dizer que soa como música para meus ouvidos de ativista uma nascente cidadania planetária que se insurge contra o desenvolvimento como ideal, a globalização neoliberal das corporações econômicas e financeiras a serviço de 1% da humanidade, e o enferrujado sistema de Estados e seus retrógrados nacionalismos. Penso até que o Ibase deveria tomar a iniciativa de traduzir e publicar o livro de Paul Raskin, dada a sua fundamental contribuição para ver mais além da destrutiva onda em que estamos mergulhados.

No meu esforço pessoal de ativista cidadão com instrumentos intelectuais, buscando sempre e escrevendo para socializar angústias e esperanças, vou fazer uma série de crônicas na linha do que Paul Raskin aponta. Não só ele, mas todo o grupo e parceiros na sua volta. Começo com a crônica de hoje, limitando-me a delinear as bases que fundamentam a reflexão do grupo, com as quais comungo inteiramente.

Toda a análise tem como pano de fundo as eras e as grandes transformações na história da humanidade. A hipótese central é o esgotamento da Era Moderna e o difícil parto de uma nova era, que está em curso neste século, definida como a Era da Civilização Planetária. Em essência, a nova era assenta no aprofundamento da interdependência que integra a humanidade e o Planeta Terra de forma como nunca aconteceu antes. Nas palavras de Paul Raskin, “A Fase Planetária está integrando povos e lugares em um sistema global com um destino compartido” (p.14). E mais adiante, “O sistema global e seus componentes moldam um ao outro numa complexa e recíproca dança que muda ambos, o todo e as suas partes” (p.15, em tradução livre). Com a evolução cultural da humanidade – de ideias, ritos e símbolos, ciência e tecnologia, estruturas sociais e instituições – e a circulação de quase tudo pelo planeta, produzimos um integrado e único sistema socioecológico.

Mas estamos vivendo uma profunda crise estrutural da Era Moderna, com grandes incertezas e enormes rupturas, destruições e desigualdades sociais. Estamos diante de contradições e limitações de um capitalismo em escala global sob controle e para a acumulação das grandes corporações: de um desenvolvimento que supõe contínuo crescimento em um planeta finito, mundo interdependente, no entanto politicamente fragmentado, abismo crescente entre privilegiados e excluídos, dominados por uma cultura consumista como ideal de vida. Para onde vamos? Como sair desta e construir outro mundo? A história humana é um processo que depende de vontade e imaginação, sem dúvida, mas é condicionado e incerto. São estas questões que mais ocupam o livro Journey to Earthland: the Great Transition to Planetary Civilization.

Para classificar as possibilidades do futuro a partir das tendências atuais e das forças que as impulsionam, Paul Raskin retoma a ideia dos cenários de escritos anteriores. São três grandes possibilidades, com duas variantes em cada uma delas. É fundamental ter presente que são apenas esquemas de análise de caminhos possíveis e até opostos, de algum modo contidos no presente, mas não são modelos já definidos. Raskin tem o objetivo de estimular a imaginação e a vontade de ação dos sujeitos de transformação, os movimentos de cidadania planetária, como forças de moldagem possível da “grande transição”. Sinteticamente, apresento os cenários:

Grande Transição

  • Ecocomunalismo
  • Novo Paradigma

Mundos Convencionais

  • Forças de Mercado
  • Reforma Política

Barbarização

  • Mundo Fortaleza
  • Breakdown

A descrição dos cenários é muito didática e ajuda a pensar nosso mundo de hoje. Porém, dado o exíguo espaço desta crônica, deixo tal tarefa para outra oportunidade. Como conclusão, chamo atenção para o meu ponto de partida. Como situar nossa crise brasileira num quadro mundial mais abrangente de contradições, tendências e possibilidades? Ou, de outra forma, o que precisamos fazer para que a “barbarização” não avance no nosso seio, como, aliás, está avançando em várias partes do mundo no presente? Tendo a achar que se não agirmos com determinação, o processo político atual de desmonte de direitos nos encaminha para o esvaziamento da democracia e um fortalecimento de tendências fascistas, socioecologicamente excludentes e destrutivas. Precisamos tecer a resistência com visão estratégica de que isto pode ser contido e transformado, desde que tenhamos uma perspectiva de cidadania planetária e forte motivação para voltar a construir movimentos irresistíveis diante das adversidades do presente.

Referência Bibliográfica:

RASKIN, Paul. Journey to Earthland: the Great Transition to Planetary Civilization. United State: Telus Institute, 2016.

Foto: Claudio Fachel

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