Ainda timidamente, academia se abre aos saberes tradicionais

Na UFMG

Trinta e seis mestres e mestras de saberes tradicionais, entre parteiras indígenas, mestres do Reinado do Rosário, pais e mães de santo do candomblé, ceramistas xacriabás e xamãs xavantes, são personagens mais frequentes na paisagem da academia graças ao Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, iniciado há cinco anos na UFMG, durante uma edição do Festival de Inverno.

Um balanço da iniciativa foi apresentado pelo professor César Geraldo Guimarães, do Departamento de Comunicação Social da UFMG, na mesa-redonda Democratização da produção do conhecimento: sábios, intelectuais e militantes, na tarde desta terça-feira, dia 18, no âmbito da SBPC Afro e Indígena. Os integrantes da mesa discutiram alternativas à segregação e ao sufocamento dos saberes populares e tradicionais no meio acadêmico.

César Guimarães: convívio transformador. Foto: Raíssa César / UFMG

“Percebemos essa situação problemática e resolvemos convidar os mestres tradicionais para serem protagonistas. Parece algo mínimo em relação ao tamanho das engrenagens das universidades, mas, acompanhando o convívio entre os discentes e os mestres, percebemos que algo se transforma em quem os escuta, e isso é essencial para a continuidade dos esforços”, analisou o professor.

Além do professor Guimarães, a mesa reuniu Gersem José dos Santos, indígena do povo Baniwa (de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas), filósofo, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e Makota Cássia da Silva, líder de uma das mais de 2 mil comunidades quilombola existentes no território nacional.

Despertar o lado humano

“Aceitando o convite de vir à universidade, a gente se abre a ela e, ao mesmo tempo, deixa a mensagem de que o estudante que sai daqui não pode esquecer de seu lado humano”, disse Cássia Cristina da Silva, representante da comunidade quilombola Manzo NgunzoKaiango, de Belo Horizonte.

Makota: quebra de preconceitos de ambas as partes. Foto: Raíssa César / UFMG

Makota Cássia, por sua vez, foi uma das líderes de comunidade que participou da disciplina Confluências quilombolas contra a colonização, que contou com a participação de outros quatro quilombolas de Minas Gerais, Goiás e Piauí. Na disciplina foram apresentados os modos de vida, o histórico de lutas e resistência do povo negro e indígena nessas diferentes regiões do Brasil.

Para Makota, que também é funcionária pública, a experiência exigiu dela um desprendimento de uma série de preconceitos em relação ao sistema universitário, responsável por “tornar as pessoas robóticas”. Isso só foi alcançado pelo exercício da alteridade, no contato com o outro: “No corpo a corpo da disciplina, percebi do ‘outro lado’ pessoas como nós, dispostas a uma relação de ajuda mútua e compreensão. Assim foi possível quebrar os preconceitos de ambas as partes”, afirma Makota.

Repensar o colonialismo 
O professor Gersem Baniwa, do curso de Licenciatura Específica de Formação de Professores Indígenas da Ufam, é o coordenador geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (MEC) e um dos mais notáveis defensores das escolas e universidades indígenas. Em sua fala, Gersem também alertou sobre a necessidade de repensar a “relação colonialista” entre saberes acadêmicos e as cosmovisões: “O problema maior não está na produção de conhecimento, mas na sua circulação. São fronteiras muito rígidas e hierárquicas, como as militares, que segregam as diferentes visões de mundo num contexto de exclusão”, analisa.

Gersem: modelo hierárquico da academia põe indígenas em posição de inferioridade. Foto: Raíssa César / UFMG

No país, existem 375 povos indígenas, e cerca de 30 mil indígenas estudam em universidades. Para Gersem, o modelo extremamente hierárquico observado nas universidades põe esses grupos em automática posição de inferioridade, forçando-os a “esconderem” os saberes de suas comunidades. O professor vê essa situação como reflexo de uma crise de representatividade. “Países latino-americanos como Colômbia, Peru, Venezuela, Chile, entre outros, estão muito mais avançados no que diz respeito à pluralidade política e apresentam vários representantes indígenas em suas câmaras e outras instâncias. O Brasil não possui sequer um deputado ou senador indígena. Pensar alternativas a esse quadro passa necessariamente por ocuparmos o sistema acadêmico e político”, defendeu Gersem.

Imagem destacada: Desfile resultante da oficina de tambores ministrada pelos mestres da comunidade de Arturos na edição passada do Festival de Inverno da UFMG. Foto: Foca Lisboa / UFMG.

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