Pedro Rocha, assentado em Restinga (SP): “Fui jantar com o Chico Mendes, em 88, e ele morreu no meu braço”

Camponês militou com o sindicalista, no Acre; conheceu com ele o socialismo e hoje comemora seu pedaço de terra no interior paulista

Alceu Castilho – De Olho nos Ruralistas

A sala do cearense Pedro Rocha tem uma foto grande do seringueiro Chico Mendes. Ele era seu amigo e companheiro de militância, no Acre. No dia 22 de dezembro de 1988, o sindicalista – respeitado por ambientalistas de todo o mundo – era assassinado enquanto ia ao banheiro, do lado de fora da sua casa, em Xapuri. Dois policiais que deveriam protegê-lo jogavam dominó. A mulher de Chico, Ilzamar, e os dois filhos, Elenira e Sandino, estavam na sala, assistindo televisão. A casa está preservada, até hoje, como no dia do assassinato – com cada objeto em seu lugar. Pedro Rocha é testemunha desse capítulo importante da história do Brasil.

Hoje ele vive em um assentamento em Restinga, no nordeste de São Paulo, perto de Franca e de Minas Gerais. Foi lá que ele recebeu a reportagem do De Olho nos Ruralistas. O assentamento se chama 17 de Abril, em homenagem aos 19 sem-terra assassinados naquele dia em Eldorado dos Carajás (PA), em 1996. Mais de 20 anos depois, Pedro se considera um homem feliz. “No paraíso”, define, por ter conseguido seu pedaço de terra. Mas sente diariamente a falta do companheiro de lutas.

Eloquente, carismático, Pedro Rocha é um contador de histórias nato. O repórter interessou-se por sua fala enquanto ele narrava uma caça inconclusa a dois bois rebeldes que circulavam pela região. Logo se formou uma rodinha em sua volta. O local do assentamento já foi cenário de trilhos da Fepasa e, depois, virou alvo da monocultura dos eucaliptos. Os dois bois espertos driblavam os caçadores em meio aos eucaliptos. Nunca ninguém pegou. Pedro Rocha conta empolgado, quase como se tivesse obtido sucesso na caça.

Seu sucesso vem do trabalho camponês. Pai de cinco filhos, ele tem uma relação próxima com a natureza. Fica feliz por ver os passarinhos comendo o arroz e feijão que plantam – passarinhos que, observa com fina ironia, não gostavam nada dos eucaliptos. Pedro Rocha, conhecido na região como Pedro Xapuri, conheceu o socialismo com Chico Mendes e ainda sonha com um mundo onde os trabalhadores sejam os beneficiários daquilo que produzem. Confira a entrevista dada a Alceu Luís Castilho.

De Olho – O senhor tem uma trajetória singular na luta pelo direito à terra. Militou com Chico Mendes e hoje é um assentado. E insiste na necessidade de reforma agrária. Por quê?

Acredito que ela é o maior projeto para essa nossa sociedade. Pela importância de se produzir alimento, para ajudar a matar a fome no mundo. Nós temos um solo muito rico, muita água doce, mas infelizmente temos na mão de poucos. Quando se fala da agricultura familiar é porque a família observa a função da terra. Triste seria a cidade se a agricultura familiar não enviasse alimento. O agronegócio não se preocupa com a saúde do povo. É em grande escala. Usa adubo, veneno, máquinas. Aqui na roça muitas vezes usam carpideira. Nós não lutamos contra a tecnologia, mas que ela venha para os trabalhadores. A reforma agrária gera muito emprego, comida. Se não for feita as cidades vão continuar inchando. Em 64, quando fizeram o Estatuto da Terra, era para fixar o homem no campo. Foi o contrário. Pois quem sabia da lei era o povo? Não. Era quem estava no Congresso. A indústria não absorveu a mão-de-obra.

O senhor compara a reforma agrária com a elaboração de uma feijoada.

Sim. Não é só dar a terra. Tem muito ingrediente: formação técnica, educação, respeito com a natureza e a sociedade. Quando viemos para cá a coisa mais difícil era ver um passarinho. Só tinha capim e eucalipto. Passarinho não foi adaptado para chupar cana. Quando começou a plantar feijão, milho, vieram. Hoje tem pombinha-de-bando, tem rolinha, canário, tucano, tem tudo. Tem até a gralha. Passarinho come arroz, isso é bom demais. (Ele olha em volta, sorri.)

Como foi sua trajetória do Ceará até São Paulo?

Saí do Ceará em 1971. Fui metalúrgico no Rudge Ramos, em São Bernardo. Mas era época da ditadura, povo não abria a boca. Fui abrir a boca no Acre, em 1977. Fui ser monitor de igreja, pregar o evangelho sem saber. Trabalhei com o Clodovir Boff, irmão do (teólogo) Leonardo Boff. Fiz missa para Dom Moacyr Grechi, debaixo de pé de ingazeira. Pregava o evangelho todos os domingos. Lutava pela permanência na terra, contra as injustiças.

Como era a relação com o Chico Mendes?

Foi uma pessoa muito importante na minha vida. Foi uma das primeiras pessoas a me perguntar de onde eu vim. Quando ouviu que eu era metalúrgico achou que eu devia saber algo de política. Eu já tinha me filiado ao sindicato (dos trabalhadores rurais) de Brasiléia. Ele foi a primeira pessoa a me falar de socialismo. Ainda sou socialista. Pode nunca acontecer de eu ver. A não ser que eu viva 140 anos. Juventude tem de transformar a sociedade em uma que não seja de meia dúzia, e o que construírem seja deles. Sou filiado ao PT desde a fundação, junto com Chico Mendes. Cheguei a ser vereador por um mês, em Xapuri. Chico foi candidato a deputado estadual.

O senhor reagiu como quando soube de seu assassinato?

Foi ainda mais triste porque eu já tinha a preocupação, por causa das ameaças. A causa era muito arriscada. Eu tinha quase a certeza de que um de nós podia estar com a boca cheia de formiga. Quem matou já era um acostumado a fazer, não tinha escrúpulos. E não foram só os dois que foram presos. No dia 4 de outubro (de 1988) o Chico estava na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, em Xapuri, fazia uma lista dos possíveis mandantes. Está na Secretaria de Segurança Pública do Acre. Foi enviada para o governador, para a Polícia Federal. No dia 22 de dezembro eu almocei com ele e ia jantar com ele. Minha janta foi transportar ele pro hospital e ele morrer no meu braço.

O que significa, hoje em dia, após tudo isso, ser um assentado, ter um lote?

Eu estava discutindo com outros assentados se é bom ou não ter documento da terra. Não tem patrão, não precisa dar satisfação para ninguém. É uma liberdade que conquistei. Isso aqui para mim é um paraíso. Se tem crise na cidade eu só vejo falar. Tenho galinha para pôr para comer. Tem porco que eu torço o pescoço e tenho a banha. Tenho banana para comer, acerola para fazer um suco, mandioca para fazer fruta. Quer mais coisa que isso? Não tem ninguém para buzinar no meu ouvido.

Aqui perto tem um morro chamado Chico Mendes. O que você sente quando passa por lá?

Do Chico eu lembro toda hora. Tem uma foto grande dele lá na sala da minha casa, tirada pelo Conselho Nacional dos Seringueiros. É a cabeça dele dentro de uma floresta, como se estivesse dentro do mato, só a cabeça dele de fora. Foi um acontecimento histórico na minha vida. Não dá para esquecer.

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