Foi publicado no Diário Oficial da União de 20 de julho de 2017 a aprovação do presidente Michel Temer ao Parecer 001/2017, elaborado pelo consultor-geral da União substituto, André Rufino do Vale, e adotado pela advogada geral da União, Grace Maria Fernandes Mendonça. O objetivo da medida é vincular toda a administração pública federal ao cumprimento das 19 condicionantes fixadas no julgamento da Petição (Pet.) 3.388, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 19 de março de 2009 e que decidiu sobre a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol.
Segundo o Parecer, ao fixar as condicionantes ou “salvaguardas”, o STF teve a “deliberada intenção” de definir o regime jurídico para a interpretação dos artigos 231 e 232 da Constituição, que deveria ser aplicado “para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil”. Diz, ainda, que as condicionantes são “um parâmetro seguro para os processos demarcatórios das terras indígenas”, uma vez que a decisão do caso Raposa Serra do Sol “tem sido reafirmada em diversos outros julgamentos no próprio Supremo Tribunal Federal, tornando indubitável a consolidação e estabilização normativa das salvaguardas institucionais e dos demais parâmetros fixados pelo Tribunal para a demarcação de terras indígenas no país”. Com isso, o Parecer concluiu que o STF teria “um entendimento jurisprudencial solidificado, que de fato fornece as balizas gerais para a atuação dos órgãos da Administração Pública”.
As afirmações não poderiam ser mais capciosas.
O Parecer da AGU, a partir de uma análise seletiva da jurisprudência da 2ª Turma do STF, pinça argumentos de votos dos ministros que sequer foram objeto de análise pelo Pleno do Tribunal. Também ignora por completo os precedentes judiciais do STF que deixam claro que as condicionantes fixadas no caso Raposa Serra do Sol foram estabelecidas para orientar e operacionalizar a demarcação daquela Terra Indígena.
Sobre o assunto, no julgamento dos embargos de declaração da Pet. n° 3.388, o ministro Luís Roberto Barroso assinalou que: “A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar”.
Além das condicionantes fixadas no caso Raposa Serra do Sol serem desprovidas de qualquer efeito vinculante, o Parecer da AGU também deturpa e manipula a verdade dos fatos ao dizer que o STF “tem entendimento muito consolidado a respeito de dois tópicos fundamentais para a demarcação das terras indígenas”. Seriam eles “a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeitos de reconhecimento como terra indígena” e “a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas”.
Sobre o suposto “entendimento consolidado” acerca do marco temporal de ocupação, é necessário rememorar que, em 2010, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) propôs ao STF a edição da Súmula Vinculante 49, com o objetivo de “afirmar que as terras ocupadas por indígenas em passado remoto a que se refere a Súmula nº 650 são, especialmente, aquelas que, em 5 de outubro de 1988, não apresentam mais ocupação por índios e que o processo de demarcação deve atentar para a necessidade de comprovação da posse da área nesta data”. A Comissão de Jurisprudência do STF se manifestou pelo arquivamento da proposta porque “a deliberação sobre a edição de enunciado de súmula a respeito do assunto dependeria da existência de uma inequívoca consolidação jurisprudencial da matéria”. Assim, entenderam que “falta o requisito formal da existência de reiteradas decisões do Supremo ‘sobre essa complexa e delicada questão constitucional, que se encontra, felizmente, em franco processo de definição’”.
No que toca ao “entendimento consolidado” sobre a “vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas”, o STF já se manifestou expressamente sobre a não vinculação dessa condicionante (ou de qualquer outra) às demais demarcações de TIs. Como exemplo, mencione-se o julgamento da Reclamação 13.769, em maio de 2012. Ao decidir o caso, o ministro Ricardo Lewandowski reafirmou posicionamento segundo o qual a Pet. 3.388 refere-se apenas ao procedimento de demarcação da TI Raposa Serra do Sol e não poderia ser invocado contra atos e decisões que digam respeito a qualquer outra área indígena, “porque não houve no acórdão que se alega descumprido o expresso estabelecimento de enunciado vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, atributo próprio dos procedimentos de controle abstrato de constitucionalidade das normas, bem como súmulas vinculantes, do qual não são dotadas, ordinariamente, as ações populares”.
Em fevereiro de 2017, a Primeira Turma do STF reiterou esse posicionamento ao julgar a Reclamação 14.473. Na oportunidade, o ministro Marco Aurélio enfatizou que as condicionantes fixadas no caso Raposa Serra do Sol não permitem a conclusão de vinculação daquele processo “relativamente à demarcação de outras terras indígenas”.
Desta forma, o caso Raposa Serra do Sol se trata de um precedente judicial que não tem qualquer aptidão técnica para vincular o poder judiciário ou a administração pública. Sobre os precedentes judiciais, a atual presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, explica: “O precedente serve, no sistema brasileiro, apenas como elemento judicial orientador, inicialmente, para a solução dos casos postos a exame. É ponto de partida, não ponto de chegada” (Reclamação 4.708/GO).
No tocante ao marco temporal de ocupação, tese segundo a qual exige-se a presença dos índios na área objeto da demarcação no dia 5 de outubro de 1988 para que sejam reconhecidos seus direitos originários e se proceda à demarcação de suas terras, é importante explicar que a tese é juridicamente questionável sobre diversos aspectos e está a despertar debates entre renomados doutrinadores brasileiros. Sobre o assunto, o constitucionalista José Afonso da Silva, em recente Parecer[i], questionou: “Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data se ela nada diz a esse respeito, nem explícita, nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do artigo 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário se se ler com a devida atenção o caput do artigo 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa”. E completa: “Deslocar esse marco para ela [a Constituição de 1988] é fazer um corte na continuidade da proteção constitucional dos direitos indígenas, deixando ao desamparo milhares de índios e suas comunidades, o que, no fundo, é um desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão proteção aos direitos indígenas. Vale dizer: é contrariar o próprio sistema constitucional, que deu essa proteção continuadamente”. Destaque-se, por oportuno, que as constituições federais, desde 1934 até a de 1988, quando quiseram trabalhar com “data certa” o fizeram de forma expressa: jamais deixaram ao arbítrio do julgador estabelecer quais seriam os marcos temporais de sua aplicação.
No que concerne à intenção do constituinte originário ao dispor sobre os direitos dos índios na Constituição Federal de 1988, os deputados integrantes da Assembleia Nacional Constituinte José Carlos Saboia, Fábio Feldmann e Luís Carlos Sigmaringa Seixas, afirmaram[ii] que jamais houve qualquer intenção em incluir limite temporal para os direitos territoriais indígenas na Constituição.
De mais a mais, condicionar as demarcações à presença dos índios nas terras em data certa nega a violenta relação que foi estabelecida entre o Estado e os povos indígenas durante todo o processo colonial, violência que atravessou séculos para trucidar direitos territoriais nas décadas de 1960 a 1980, durante a abertura das frentes de expansão amazônicas, e que foi potencializada e deliberadamente institucionalizada como política de governo pelo regime militar, conforme denunciou o relatório da Comissão Nacional da Verdade[iii]. Era esse o quadro fático dos direitos indígenas no dia 5 de outubro de 1988. Por isso, é urgente e necessário relembrar: não é possível banalizar o mal.
Afinal, a aceitar a teoria do marco temporal, é fundamental que se perquira: se não estavam os índios nas terras que hoje reivindicam, onde estariam em 5 de outubro de 1988? Por que não estavam a exercer seu direito territorial e a ocupar suas terras tradicionais? As decisões judiciais que consideram o marco temporal determinarão providências específicas ao Poder Executivo, tal como a abertura de novos processos de demarcação de terras, para que se possa aferir onde estavam os índios em 5 de outubro de 1988, e, assim, proceder à demarcação? Farão perícias para identificar estes lugares? Assegurarão que os indígenas continuem em suas terras até que se encontre uma alternativa ou solução para os graves conflitos fundiários que envolvem a demarcação? Ou continuarão apenas a condenar os indígenas ao degredo de sua condição étnica e à manutenção, ad eternum, de direitos válidos e jamais eficazes?
Caso seja sedimentada a teoria do marco temporal para todas as TIs, a desconsiderar que os índios constituem coletividades reais, vulneráveis, portadoras de identidade étnica minoritária e que dependem de segurança territorial para continuar existindo, estaria a se validar a assimilação forçada, paradigma que, esse sim, a Constituição Federal quis estancar.
O Parecer 001/2017 da AGU, sob o manto de uma fictícia “legalidade”, desconsidera todos esses pontos e ignora a jurisprudência do STF que reconhece a imprescindibilidade das terras para a sobrevivência física e cultural dos índios.
É fora de qualquer dúvida que, ao contrário de promover a “pacificação dos conflitos”, como se manifestou a AGU em nota datada de 19/07/2017, a medida é mais uma clara mensagem sobre a possibilidade de mitigação dos direitos constitucionalmente assegurados aos povos indígenas. Esse recado fomenta invasões ilegais de TIs, ato que muitas vezes vem acompanhado de violência física contra as comunidades e suas lideranças. Precisamos lembrar que o Brasil lidera o ranking de pessoas assassinadas em conflitos fundiários. Para saber quem promove esses conflitos, basta olhar para quem morre: morre o homem do campo, empobrecido e na luta por um pedaço de terra, morre a liderança comunitária que se insurge contra a barragem, morre o quilombola que busca reparação pelo território que lhe foi amputado no degredo forçado dos navios negreiros, morre o índio historicamente “pacificado” por políticas que lhe retiraram a terra e o poder de decidir sobre sua própria vida. Desproteger a parte mais vulnerável dos conflitos no campo é verdadeiro ato de irresponsabilidade, principalmente quando assistimos a uma escalada de violência nos últimos meses com as mortes em Cotriguaçu (MT), Pau D’arco (PA) e o ataque brutal aos índios Gamela no Maranhão.
Nessas horas não há como esquecer como o ministro Ayres Britto conceituou “etnocídio” no multicitado caso da demarcação da TI Raposa Serra do Sol: “A Constituição, em seus artigos 231 e 232, no fundo consubstancia o mais sonoro, o mais rotundo, o mais vigoroso ‘não’ ao etnocídio, que tem sido praticado desgraçadamente na história de nosso País. Porque, se o genocídio consiste em matar o corpo, destruir, dizimar fisicamente multidões, grupamentos humanos, o etnocídio destrói, dizima, destroça, extermina o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura. Então, destruir os modos de vida de um povo é exterminar a sua própria cultura e praticar o etnocídio”.
Os elementos de uma cultura são suprimidos e sufragados quando os índios continuam, há 517 anos, sem acesso adequado a suas terras, a se defrontar com leis e Constituições que não possuem força normativa para garantir sua dignidade existencial, seu status de pessoa humana, bem como os direitos coletivos às suas terras.
Se em 5 de outubro de 1988 todas as terras indígenas não estavam demarcadas, não foi por falta de lei ou de previsão legal. Foi por falta de vontade política, pelo poder do colonizador que, a partir de sua posição de poder universal e privilegiada, classifica quem é e quem não é pessoa, quem tem e quem não tem direito à terra. A institucionalização de um “marco temporal” apenas mantém inalterada essa correlação de força e de poder entre o índio e o não índio, que lança os povos autóctones desta terra para fora de qualquer normatividade real, de qualquer direito fundamental que traduza garantia efetiva e permanente.
Enquanto existirem subterfúgios argumentativos para deslegitimar os direitos territoriais dos povos indígenas, restará comprovado que aos índios ainda são impostas guerras justas, suplícios e martírios. As formas jurídicas estão há 517 anos mudando ao sabor dos ventos, dos argumentos, da ausência de efetividade e de limite.
Os índios não surgiram no país após 5 de outubro de 1988. São realidades vivas, históricas e que seguem resistindo com suas identidades específicas apesar de toda a miséria e a maldade da “civilização”. Para toda comunidade, povo ou indivíduo indígena vivo existe uma terra de ocupação tradicional que lhe é correspondente, afinal, desde sempre viveram eles na terra e da terra.
O Poder Judiciário está sendo conclamado em suas próximas decisões a estabelecer o fim das violências, dos descumprimentos reiterados das Constituições, dos vilipêndios escancarados dos poderes da República com os povos indígenas. O importante, agora, é localizar o território de ocupação tradicional de cada povo indígena e proceder a sua demarcação. Só assim quitaremos nossa dívida histórica e finalmente serão garantidos aos povos indígenas paz, dignidade e Justiça.
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[i] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs_artigos/jose-afonso-da-silva-parecer-maio-2016-1.pdf>.
[ii] RICARDO, Beto. RICARDO, Fany. Povos Indígenas no Brasil: 2011-2016. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017. p. 73-75. A entrevista também está disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/constituintes-de-1988-reafirmam-carater-permanente-dos-direitos-indigenas>.
[iii] KEHL, Maria Rita. Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas. Disponível em: <http://200.144.182.130/cesta/images/stories/CAPITULO_INDIGENA_Pages_from_Relatorio_Final_CNV_Volume_II.pdf>. Acesso em 27.07.2016.
Juliana de Paula Batista é mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e advogada do Instituto Socioambiental (ISA).
Marcha ATL 25/04/2017. Foto: Mobilização Nacional Indígena