por Roberto Malvezzi (Gogó), em seu blog
Há tempos o hidronegócio busca mecanismos de privatização das águas brasileiras. Constitucionalmente tidas como um bem da União, nossas águas não podem ser privatizadas.
A Constituição Federal no artigo 20, inciso III, estabelece que são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.
Reza a Lei Brasileira de Recursos Hídricos 9.433/97:
Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I – a água é um bem de domínio público;
II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;
IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;
V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.
O mecanismo estabelecido em lei para uso privado é o da “concessão de outorga”, pelo qual o Estado Brasileiro entrega a um ente privado a exploração de determinado volume de água por um determinado tempo, sujeito à renovação.
Uma vez na posse da outorga, o uso passa a ser privado. Portanto, se não privatiza a propriedade, privatiza o uso.
Embora seja um mecanismo de aparente controle do Estado, podendo retomar a outorga caso ache necessário, o fato é que, uma vez outorgada certa quantidade de água, ela será utilizada até o fim.
Mas, agora levanta-se um mecanismo muito mais monstruoso e perigoso que uma simples outorga. A privatização da Eletrobras transfere ao poder privado o direito de “vida e morte” sobre os rios brasileiros. O fato é que – ainda hoje – a energia de origem hídrica representa o filé mignon da energia elétrica, mesmo sob avanço das eólicas, da tímida energia solar e até mesmo das térmicas, acionadas constantemente quando falta água nos rios e reservatórios.
Portanto, quem controlar a geração da energia elétrica, controlará as águas brasileiras. Embora tenhamos hoje um Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cujo topo é atribuído ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), Agência Nacional de Águas (ANA) e Secretaria de Recursos Hídricos da União (SRHU), vinculada ao MMA, quem está na ponta sabe que o controle efetivo é do setor elétrico. Ele se coloca acima de todos os demais usos e determina como as águas serão utilizadas.
O caso mais exemplar nessa privatização será o das Centrais Elétricas do São Francisco (CHESF). Até hoje ela reina no vale do São Francisco, embora tenha perdido poder quando o controle geral da energia passou para o Operador Nacional do Sistema (ONS). O uso das águas no São Francisco, tanto o consuntivo (quando a água é retirada do corpo d´água, caso da irrigação), como do não-consuntivo (como é o caso da geração de energia elétrica), acaba sendo determinado pelo ONS.
E os usos prioritários estabelecidos em lei, que são o uso humano e a dessedentação dos animais? A lei 9.433/97, em suas filigranas, estabeleceu que “são prioridades em caso de escassez”. Oras, no Nordeste a escassez só é decretada quando os reservatórios atingem menos de 10%, enfim, quando a maioria dos reservatórios vira uma sopa de sal, imprestável para qualquer uso. Essa é a obediência às prioridades.
Enfim, a privatização da Eletrobras será a maior privatização de rios que já tivemos em nossa história. Os trabalhadores dessas empresas não terão mais garantia de seus empregos, o preço da energia vai subir e os cidadãos dependerão de licenças das empresas privadas até para beber água.
*Articulista do Portal EcoDebate, possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco.
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Foto: Alexandre Guzanshe /EM