Mineração e biodiversidade: quando as fronteiras entre destruir e conservar são somente retóricas(1)

Flexibilizar a proteção constitucional ao meio ambiente e os direitos territoriais, desregular estruturas regulatórias que limitam o acesso a áreas de interesse mineral e criar mecanismos compensatórios que alterem a imagem negativa do setor extrativo: eis o tripé em que se baseiam as novas estratégias das grandes mineradoras para ampliar a fronteira de expansão das suas atividades no Brasil.

Julianna Malerba/ FASE

O golpe parlamentar que alçou ao poder o governo ilegítimo de Michel Temer não inaugurou propriamente um dos objetivos centrais da atual política mineral brasileira: ampliar a produção mineral e sua participação no PIB nacional. Esse objetivo, que orienta as recentes medidas adotadas pelo governo Temer, já estava presente na exposição de motivos feita pela presidente Dilma Rousseff, em 2013, quando enviava ao Legislativo a proposta de um novo código mineral para o país. A despeito das semelhanças quanto a baixa preocupação com a dimensão socioambiental dos impactos negativos da mineração, a diferença crucial entre as políticas minerais dos dois governos refere-se, sem dúvida, ao papel pretendido ao Estado.

Em Dilma, as pretensões de maior coordenação e planejamento estatal, apresentadas na propositura de um novo marco regulatório, demarcam essa diferença, neutralizada posteriormente pelo Congresso. A bancada de deputados financiados por grandes mineradoras2 tratou de retirar daquele projeto de lei todas as propostas que garantiam alguma governança pública sobre a política mineral e de incluir artigos que ampliassem ainda mais as possibilidades de acesso aos recursos minerais pelo mercado3.

As emendas parlamentares restringiram as condições que o governo propunha para outorga de título e simplificaram os regimes de concessão, diminuindo a capacidade do Estado de definir quais minerais e áreas devem ser prioritariamente explorados/as. Também foram incluídos artigos que ampliavam as garantias de acesso à terra e água às mineradoras, outorgando-lhes direito à utilização das águas necessárias para as operações da concessão, e atribuindo à Agência Nacional de Mineração (que deveria ser criada pela nova lei) a prerrogativa de desapropriar imóveis em prol das atividades minerárias. Por meio do novo código buscava-se neutralizar os efeitos de leis e normativas que, ao garantir direitos, criam restrições à atividade mineral. Minerar em unidade de conservação, onde atualmente a atividade é proibida, e incluir a necessidade de anuência da Agência Nacional de Mineração para a criação de áreas destinadas à tutela de interesses (tais como unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas) estavam entre as emendas propostas.

Com Temer, o foco da disputa em torno do código perde centralidade, pois o próprio governo se encarrega, por meio de medidas provisórias, decretos e portarias, de acelerar a implementação das propostas apresentadas pelos parlamentares.

O momento, ainda experimentado, de retração no preço das commodities minerais oferece um cenário favorável para que essas medidas sejam implementadas como condição para sustentação de um setor que cumpre o papel de gerar saldos comerciais ao país e manter a estabilidade de uma política econômica altamente dependente de recursos externos. Entretanto, se considerarmos que o mercado de commodities tende a períodos cíclicos de retração e expansão de preços, o maior legado da política mineral do governo Temer será cimentar as bases para a maximização da lucratividade das empresas mineradoras que atuam no país no próximo boom de preços.

Leiloando fronteiras, reservas e terras de populações tradicionais ao grande capital

Por meio de três medidas provisórias (MP 789, 790 e 791) o governo Temer apresentou novas propostas de mudanças ao código mineral que vão ao encontro das demandas liberalizantes da bancada mineral.

A primeira delas propõe mudanças nas alíquotas de cálculo dos royalties da mineração. Embora aumente o percentual das alíquotas de alguns minérios, a medida mantém o país entre aqueles que cobram menores percentuais de pagamento de royalties do mundo e não altera a carga tributária altamente benéfica ao setor, que goza de inúmeros favorecimentos tributários4. A segunda medida altera em diversos pontos o atual código com objetivo de simplificar os procedimentos de concessão e outorga e reduzir o prazo de início da operação dos projetos minerais. E a terceira cria a Agência Nacional de Mineração, uma reivindicação antiga do setor.

Tais medidas estão em compasso com as sinalizações que o Ministério de Minas e Energia (MME) já vinha dando a investidores quanto a intenção de abrir mais o mercado mineral brasileiro5. Há alguns meses, o MME assumiu publicamente o compromisso de leiloar mais de 300 áreas já pesquisadas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (estatal vinculada ao MME), em grande parte, com jazidas comprovadas6.  Também anunciou que estuda reduzir restrições à mineração em áreas de fronteira7. A intenção é retirar do Conselho de Defesa Nacional a prerrogativa de anuência sobre a atividade nessas zonas e permitir nelas a atuação de empresas com capitais majoritariamente estrangeiros, o que atualmente é proibido.

Mas a mais recente dessas iniciativas foi o decreto nº 9.142/2017 que extinguiu a Reserva Nacional do Cobre e Associados, criada no início dos anos 1980, com intuito de que as reservas minerais ali existentes, e ricas, sobretudo, em ouro, fossem exploradas em regime especial, sob controle da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais. A área, situada nos estados do Pará e Amapá, abrange 4,6 milhões de hectares e se mantinha fechada às mineradoras. Com a extinção da Reserva, o governo pretende disponibilizar essa área à iniciativa privada, atendendo a uma demanda das empresas de mineração que a consideram tão importante quanto à província mineral de Carajás em termos de montante de reservas minerais. 69% da área liberada estão sobrepostos a terras indígenas e unidades de conservação, onde a atividade mineral não é permitida. Além da pressão que a atividade exercerá sobre esses territórios e à conservação de sua biodiversidade, é bastante provável que, com a instalação da atividade, o lobby em prol da abertura dessas áreas à mineração ganhe ainda mais força. Embora a pressão da sociedade tenha resultado na suspensão temporária desse decreto, o governo Temer não deverá desistir de flexibilizar legislações e instrumentos que, criados para proteger a biodiversidade e a sociodiversidade brasileira, restringem a mineração.

As declarações, em abril, do então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), de que as terras indígenas devem ser abertas à atividade mineral e a edição de medidas provisórias (MP 756 e 759) que propõem reduzir milhares de hectares de áreas protegidas na Amazônia onde há fortes interesses minerários e agropecuários, aponta a convergência entre o governo e representantes dos setores que hegemonizam o Congresso. Projetos de lei que atacam o sistema nacional de unidades de conservação, visam mudar as regras de licenciamento ambiental (PL 3729/2004 e 654/2015) ou mesmo extingui-lo (PEC 65/2012) e pretendem abrir terras indígenas e territórios de populações tradicionais para a mineração e outras atividades econômicas de grande impacto socioambiental (PL 1610/1996 e PEC 215/2000) ganham mais fôlego na atual conjuntura em que o governo trata de sinalizar disposição para fazê-los avançar.

A lógica perversa de uma retórica conservacionista que busca criar equivalência entre degradar e conservar

Flexibilizar a proteção constitucional ao meio ambiente e restringir direitos territoriais não constituem propriamente agendas novas para os setores ligados à mineração e ao agronegócio. A nova estratégia refere-se à elaboração de uma retórica que pretende criar uma equivalência entre degradação e conservação. No centro da argumentação, a hipótese de que seria possível estabelecer um equilíbrio entre a perda de biodiversidade causada pela mineração e os benefícios alcançados através de iniciativas voluntárias de compensação.

Essa transmutação é produzida por um conjunto de estratégias que incluem a desregulamentação dos mecanismos compulsórios de proteção ambiental (tal como vimos assistindo) e a criação de bases jurídicas, conceituais e metodológicas que pretendem mensurar tanto as perdas de biodiversidade causadas por grandes projetos de desenvolvimento quanto ganhos de conservação, obtidos por meio de ações de compensação de biodiversidade. Na prática, são feitos investimentos para a conservação de áreas onde haveria um ecossistema similar àquele destruído. Supostamente isso possibilitaria às empresas produzirem uma “perda líquida zero” de biodiversidade e até um “ganho líquido” que corresponderiam à conservação de uma “quantidade” de biodiversidade igual ou maior que aquela que foi destruída. Além de construir uma imagem positiva para certos setores (cujas atividades têm impactos reconhecidamente negativos sobre a biodiversidade), obter “ganhos líquidos” e “mensuráveis” de biodiversidade possibilita ainda criar “ativos” ambientais que transformados em commodities comparáveis em qualidade e quantidade podem vir a se tornar comercializáveis.

Por meio de uma operação política discursiva poluidores tornam-se “prestadores de serviços ambientais” e novas mercadorias são criadas viabilizando o surgimento de novos mercados. Essas iniciativas ainda ampliam o acesso à terra às empresas que, além do controle territorial e espacial que já têm sobre as áreas em que desenvolvem suas atividades, passam a exercer controle também sobre o uso das novas terras destinadas à compensação. Em Madagascar, um projeto de compensação de biodiversidade desenvolvido pela mineradora Rio Tinto vem impondo restrições às atividades das populações sob o argumento de que elas ameaçariam a conservação da biodiversidade8. Visão que ignora que a produção da biodiversidade é fruto também das formas de manejo tradicionais desenvolvida historicamente.

Desde 2012, a Corporação Financeira Internacional, que administra os financiamentos do Banco Mundial ao setor privado, introduziu nos seus instrumentos regulatórios a compensação de biodiversidade. Para obter financiamento, as empresas têm que apresentar um “Plano de Ação para a Biodiversidade” que pode incluir a compensação de biodiversidade.Essa normativa é resultado do Programa de negócios e compensações para a biodiversidade (BBOP na sua sigla em inglês), criado em 2004 a partir de uma articulação envolvendo Banco Mundial, empresas (em sua maioria, ligadas ao setor extrativo), bancos privados e ONGs conservacionistas. O objetivo do programa é estabelecer métricas e elaborar metodologias de mensuração de composição de espécies, estrutura de habitats, função dos ecossistemas, etc. que supostamente seriam capazes de comparar os índices de perda e de ganho de biodiversidade em projetos de compensação. O programa também pretende realizar incidência junto a governos e empresas para fazer avançar a adoção de estratégias de compensação pelo setor empresarial.

Em 2014, a secretária para Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente participou de um encontro onde foram discutidos modelos de compensação aplicados à mineração. Setor que, aliás, mais tem aderido à iniciativa a nível global10. Ela defendeu publicamente a importância de desenvolver instrumentos que construam o mercado de biodiversidade11.

Até 2017, a Hydro, que possui uma mina de bauxita em Paragominas (PA), pretende obter “nenhuma ‘perda líquida’ de biodiversidade”12. Para alcançar essa meta, a empresa tem financiado ações de “restauração de biodiversidade” e de monitoramento na única área de floresta remanescente no município. São feitos registros sobre a variedade das espécies e seus comportamentos e desenvolvidas pesquisas piloto sobre técnicas de restauração e metodologias de mensuração de resultados

Caminho semelhante tem sido seguido pela ALCOA em Juruti Velho (em Juruti/PA), onde também extraí bauxita. Com o objetivo de “gerar impacto líquido positivo” de biodiversidade, a empresa tem investido voluntariamente na manutenção de três parques ambientais, em Poços de Caldas (MG), em São Luís (MA) e em Tubarão (SC). Tem também desenvolvido programas de reabilitação de áreas mineradas onde são definidos “índices” de biodiversidade, com objetivo de estabelecer métricas de desempenho dos negócios sobre os ecossistemas13.

É certo que a própria legislação brasileira prevê a obrigatoriedade de ações compensatórias por atividades de alto impacto ambiental. Entretanto, tem sido tão grande o interesse das mineradoras em desenvolver programas compensatórios que, no estado de Minas Gerais, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Ferrous Resources do Brasil brigam na Justiça por uma área que embora não tenha minério de ferro, é valiosa para o desenvolvimento de compensações ambientais da atividade mineral14. Para um setor que é capaz de cometer um crime como o da Samarco, em Mariana/MG, por privilegiar cálculos de lucratividade em detrimento das normas de segurança, não nos parece que seria o compromisso com o cumprimento da lei que estaria na origem da disputa pelo controle de uma área apta ao desenvolvimento de compensações ambientais.

Por trás da retórica conservacionista da compensação de biodiversidade está em jogo não apenas a consolidação, em médio prazo, de novos mercados referidos à biodiversidade, que irão impor novas formas de regulação territorial conectadas a institucionalidades e atores multiescalares (operadores do mercado financeiro, agências de cooperação, consultores, etc.). A compensação de biodiversidade também outorga a empresas, sob as quais pairam muitas denúncias de impactos socioambientais e de violações de direitos, o poder de definir a natureza, de valorizá-la e de protegê-la sob um paradigma utilitarista e colonial, que ignora e se impõe sobre a multiplicidade das formas de apropriação e manejo de biodiversidade instituída historicamente pela criatividade e luta social de quem ocupa as fronteiras para onde miram as novas formas de acumulação de capital (camponeses, povos indígenas e demais populações tradicionais).

1 Texto originalmente publicado no Boletim n. 232 (julho/agosto, 2017) do World Rainforest Movement, sob o título De degradadores a prestadores de serviços ambientais: quando as fronteiras entre destruir e conservar são somente retóricasdisponível em http://wrm.org.uy/pt/boletins/nro-232/

2 O estudo Quem é quem nas discussões do novo código da mineração, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), analisou as doações de campanha feitas pelas maiores mineradoras que atuam no país (Vale, Votorantim, AngloGold, Usiminas, Kinross e MMX) e demonstrou a enorme influência política das empresas mineradoras junto aos parlamentares que decidem sobre o tema: aqueles que mais receberam doações são justamente os que atuam na Comissão de Minas e Energia, permanente na Câmara, e na Comissão Especial de Mineração, específica para discutir a reforma do Código.

3 Para uma análise sobre a proposta do novo marco regulatório para a mineração e as modificações feitas pelos deputados no Congresso ver https://fase.org.br/pt/acervo/documentos/o-novo-codigo-mineral-menos-governanca-publica-sobre-o-aproveitamento-dos-recursos-minerais-e-mais-imprecisao-na-garantia-de-direitos-aos-afetados/

4 Confere nota técnica, recém-publicada pelo Instituto de Estudos socioeconômicos (INESC), que analisa detidamente os aspectos fiscais e tributários (referidos, respectivamente, à capacidade do Estado de acessar a renda mineral e aos meios ou instrumentos pelos quais essa renda mineral é arrecadada) da grande mineração no Brasil.

5 Confere http://www.brasilmineral.com.br/noticias/governo-quer-restaurar-confian%C3%A7a-de-investidores

6 Confere http://www.cnf.org.br/noticia/-/blogs/setor-mineral-espera-capital-estrangeiro-em-futuros-leiloes

Confere http://www.valor.com.br/brasil/4871256/governo-estuda-reduzir-restricoes-mineracao-em-zonas-de-fronteira

8 Confere A compensação de biodiversidade da Rio Tinto ​​em Madagascar: Como a cultura e a religião são usadas para impor restrições. Boletim 223 do WRM http://wrm.org.uy/pt/boletins/nro-223

9 Confere Banco Mundial abre caminho para uma estratégia nacional de compensação de biodiversidade na Libéria. Boletim 213 do WRM http://wrm.org.uy/pt/boletins/nro-213

10 Em 2012, 38 empresas tinham aderido a “compromissos do tipo perda líquida zero”, que consistem no desenvolvimento de ações de “compensação” para “perdas” da biodiversidade. Quinze delas eram indústrias do setor mineral. Confere em A regulamentação ambiental na Economia Verde:alteração para facilitar a destruição. Boletim 212 do WRM http://wrm.org.uy/pt/boletins/nro-212

11 Confere http://www.canalrural.com.br/noticias/agricultura/compensacao-voluntaria-para-biodiversidade-tera-projeto-piloto-brasil-45300

12 Confere http://www.hydro.com/pt-BR/a-hydro-no-brasil/Imprensa/Noticias/2014/Biodiversidade-na-floresta-tropical-do-Brasil/

13 ABDALA, Fabio. Mineração e biodiversidade: uma associação viável e necessária para a sustentabilidade dos territórios com mineração. 3º. Anuário Mineral do Pará 2014. Simineral, Belém/PA, março de 2014.

14 Confere http://www.otempo.com.br/capa/economia/mineradora-destr%C3%B3i-em-minas-e-compensa-no-nordeste-1.811277

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