Arqueologia de Bonecos – desafiando o descarte e o caos

Por Alenice Baeta, para Combate Racismo Ambiental

Quem faz o caminho entre a capital mineira Belo Horizonte para a cidade vizinha setecentista Sabará situada no vale do rio das Velhas, passando pela BR 262 via Bairro Alvorada onde há um estreitamento da pista, sem acostamento, pode notar um local em sua margem munido de inúmeros bonecos de pano e de pelúcia dispostos em varal, ripas, árvores e arames. Impressiona a paisagem desse lugar. A primeira vontade é parar e olhar com calma este local inesperadamente diferente, mas não dá… O trânsito e o caos urbano não permitem num primeiro momento…     

A cada dia passando ali via em pequenas frações alguma informação nova dessa instigante e perturbadora instalação a céu aberto.  Fiquei tentando descobrir um local adequado para estacionar o carro por perto e ver o conjunto da obra com calma.

Fiz isto um dia e dai pude contemplar e perceber muito e muito mais… Organizado por um rapaz conhecido como Baiano, morador de uma casinha situada bem do outro lado da rodovia e que tira desta pequenina faixa de terra o sustento de sua família, cultivando e vendendo mudas de plantas. Todos dali sabem que ele coleciona bonecos que ninguém mais quer, descartados e sujos. Mas ele deixa claro em uma placa que os bonecos não estão a venda, só mesmo as mudas que comercializa. Os grandes fornecedores da coleção de Baiano são os profissionais da coleta de lixo que já os separam, visando colaborar com a exposição permanente, montada há alguns anos e que só vem crescendo ao receber as novas doações. Trata-se de uma obra aberta. Um acontecimento no local. Todos ali têm orgulho da dinâmica exposição do Baiano. Um toque de arte neste trecho da rodovia com tanta poluição sonora, do ar, além do alto índice de acidentes automotivos e de criminalidade.

Me lembrei do filósofo Z. Bauman que, em sua obra “O Mal-Estar da pós-modernidade”(2008), propõe que a atual sociedade encoraja um estilo de vida consumista contínuo e voraz, onde o ato de consumir sem limites cria nas pessoas insatisfações permanentes, tendo em vista que as possibilidades de consumo e de descarte não se esgotam; em contrapartida,  esta mesma sociedade tende a rejeitar opções culturais alternativas e a valorização do antigo.

Essa instalação denuncia e desafia temas postos em voga… Além do consumismo contumaz da atual sociedade e suas desigualdades, estamos com tantos outros questionamentos relacionados à falta de gestão na área da saúde, do meio ambiente, do patrimônio cultural, corrupção sistêmica, individualismo, injustiça social e habitacional.

Mas parece que ainda podem existir lugares incomuns, transformadores e incitantes nas urbes da região metropolitana de Belo Horizonte.

Citação Bibliográfica

BAUMAN, Zygmunt O Mal-Estar da Pós-Modernidade Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1998.

Trecho da exposição organizada pelo morador Baiano na BR 262 composta por bonecos descartados no lixo – Bairro Alvorada, município de Sabará, MG. Foto: A. Baeta, 2018.

Comments (3)

  1. impressionante!
    Ainda mais sabendo que ele produz ali, aonde parece segundo a descrição do texto um lugar que com pouco espaço.

    Cláudio Teixeira

  2. Belo artigo. Muito sensível o relato da autora, com um olhar poético sobre a ação de um homem simples, que mora à margem de uma rodovia, mas que transformou o seu quinhão em um espaço de sonhos, do jeito que sua condição lhe permitiu.
    Fico imaginando o que este homem faria com uma condição de vida que lhe fosse favorável…

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