Costumamos acreditar que a ideologia apenas existe na política, porém ela vai muito além e está presente onde menos poderíamos imaginar, inclusive ditando o nosso modo de vida.
, no Voyager
Com efeito, se por um lado, para a filosofa Marilena Chauí, o termo ideologia sugere o ideário falso que a classe dominante propaga, e cujo efeito prático é a distorção da realidade (a velha fórmula do Karl Marx)[1]; por outro, a organização “Escola sem Partido” – surgida no início dos anos 2000 – representa o lado que abomina a Ideologia em si, visto que, para eles, Ideologia é um fenômeno intruso, que corrompe os jovens com ideias partidárias, revolucionárias, envenena os valores morais da família judaico-cristã e afins. Não por acaso este grupo advoga a noção de que a escola deve ser supostamente neutra, livre de ideologias. Por que esta concepção de Ideologia é o oposto daquilo que se entende como natural e objetivo.
Ainda neste escopo, a partir dos anos 1990 e a suposta difusão do novo liberalismo econômico/político pelo mundo, fez alguns proclamar, como o cientista político Francis Fukuyama, o fim da história, isto é, o início de uma era pós-ideológica, movida pelos interesses individuais e sistemas administrativos. Por seu turno, como dito anteriormente, a cultura de massa também ressignificou a palavra, a encaixando em diversos contextos eleitorais/partidários – a exemplo de analistas políticos da mídia convencional que afirmam não haver ideologia nos partidos brasileiros[2] – ou, ideologia enquanto algo personalizado, isto é, um lampejo ou opinião qualquer que o indivíduo escolhe para si, como uma criança que entra numa loja de doces e se deslumbra com a possibilidade de escolher livremente todos os tipos de balas e pirulitos[3].
Até o momento, portanto, Ideologia seria, ou uma ideia falsa da realidade, com o objetivo consciente de alienar. Ou, uma ideia vinda de fora da realidade, cuja função é destruí-la. Ou ainda, uma realidade pós-ideológica (sem ideologia). E, por fim, ideologia enquanto uma decisão pessoal de abraçar qualquer ideia sobre a realidade; como disse Cazuza em sua música: “ideologia, eu quero uma pra viver”.
Dito isso, o objetivo deste artigo é, resumidamente, demonstrar o que é Ideologia, utilizando-se, em específico, das concepções de três filósofos Slavoj Žižek, Louis Althusser e Hannah Arendt. Não significando, no entanto, que as noções sistematizadas anteriormente não satisfaçam minha pergunta; ao contrário, as noções anteriores é que são, em si mesmas, sintomas práticos do fenômeno Ideologia.
Complicado, não? Concluindo com Matrix
O filosofo esloveno Slavoj Žižek (2012) costuma citar a trilogia Matrix[11] para exemplificar o que é a Ideologia e suas derivadas. Em Matrix, o mundo real foi destruído pelas máquinas, as quais mantêm os humanos em hibernação constante para sugar-lhes energia vital, conectando-os, portanto, à Matrix, isto é, um universo virtual igual ao mundo anterior à destruição. Sem, no entanto, que os seres humanos ali “vivendo” percebam que aquilo é uma fantasia virtual, ao passo que o mundo exterior é um deserto frio, apocalíptico e caótico – o Deserto do Real – onde a vida é quase impossível. Os seres humanos que escaparam da Matrix, por sua vez, vivem num geofront (cidade subterrânea) em constante guerra contra as máquinas. Com efeito, a cena que representa o protagonista Neo escolhendo a pílula vermelha, no intuito de saber a verdade fora da Matrix, ao invés da azul, que o faria permanecer em seu sonho, Žižek chama a atenção para a necessidade de haver uma terceira pílula (ŽIŽEK, 2002).
Para o filósofo, a questão não é viver alienado pela fantasia, muito menos se iludir que fora da fantasia exista uma “verdade” a ser descoberta, “fora da caverna de Platão”. Logo então, o filosofo nos provoca a procurar uma “terceira pílula”, isto é, Žižek alega que não é possível imaginar nossa vida social, tal qual ela é, fora da fantasia da Ideologia. Segundo ele, é preciso saber identificar a realidade na ilusão, isto é, saber localizar a Ideologia em seu devido lugar (ŽIŽEK, 2002).
Em suma, a Ideologia fornece nossas coordenadas sociais, nos interpela e posiciona nas classes, castas e estamentos. Ela estrutura, em última análise, nossas interações com o mundo exterior, cujo qual, não possui significado prévio ao surgimento da raça humanoide. Muito provavelmente que – e agora é uma hipótese do autor desse artigo – a Ideologia tenha surgido junto a origem humana. Nossos ancestrais, por exemplo, ao se deparar com o que hoje nomeamos de aurora boreal, ficavam tão estonteados a ponto de atribuir àqueles fenômenos um significado que hoje, mais uma vez, denominamos de sobrenatural, divino. Essa reação de espanto diante do sublime, do que provoca desatinos, e portanto, nos faz fantasiar a respeito, é o modo como a Ideologia surge e se projeta. A humanidade é naturalmente propensa a ela, por que vive em sociedade. Por que adquiriu a capacidade de, em coletivo, simbolizar, significar, dar nomes, tornar-se sujeito. Todavia, na medida em que as relações sociais foram sendo construídas pelo poder e dominação de uns sobre outros, a Ideologia, então, retroalimenta e reproduz imediatamente essas relações conflituosas.
Na abordagem de Žižek, a única forma de viver em um ponto capaz de criticar a Ideologia, é, ao aceitar o desconforto, o conflito e contradição, denunciá-los permanentemente. O status anti-ideológico é explosivo.
Notas e Referências
[1] CHAUI, M. S, 2001.
[2] Estadão – Muitos partidos, pouca ideologia
[3] Ver em Bauman, “Em busca da política”, 2000.
[4] Marcos Feliciano – PASTOR Marcos Feliciano DIZ QUE A ÁFRICA FOI AMALDIÇOADA POR NOÉ
[5] BBC – Como duas pesquisadoras estão derrubando clichês sobre a política no Brasil
[6] Ver em https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2015/08/18/internas_economia,679375/juros-de-2015-superam-todo-o-bolsa-familia.shtml
[7] Patriotismo fanático.
[8] Ver em https://www.splcenter.org/fighting-hate/intelligence-report/2015/women-against-islam
[9] Ver Joseph Stiglitz, O mundo em queda livre, página 89, Cia das Letras, 2010
[10] Ver em As portas giratórias e a “blindagem” do Banco Central: https://jornalggn.com.br/blog/bruno-lima-rocha/as-portas-giratorias-e-a-%E2%80%9Cblindagem%E2%80%9D-do-banco-central
[11] Direção de Lana Wachowski, Lilly Wachowski, 1999.
Bibliografia
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (notas para uma investigação). In: ŽIŽEK, Slavoj. et. al. (org.). Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 105-142.
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1975.
ARENDT, Hannah. “Truth and Politics”, The New Yorker, 1967.
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política, Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
CHAUI, M. S. O que é Ideologia. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 2001
PERVERT’S GUIDE TO IDEOLOGY. Direção: Sophie Fiennes. Produção: Sophie Fiennes, Katie Holly, Martin Rosenbaum, James Wilson. Escrito por Slavoj Žižek. Distribuição P. Guide Productions, Zeitgeist Films. Reino Unido. 2012.
STIGLITZ, Joseph. O mundo em queda livre: Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ŽIŽEK, S. Um mapa da ideologia, Theodor W. Adorno, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
_________. Welcome to the Desert of the Real! Five Essays on September 11 and Related Dates,Verso, London, New York, 2002.