Ao celebrarmos 70 anos de luta pelos Direitos Humanos, em 2018, os Direitos Humanos significam, na conjuntura da sociedade atual, um dos maiores desafios. É necessário um olhar crítico sobre a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que se disse universal, porém representa o conceito de Direitos Humanos da classe dominante, vencedora da Segunda Grande Guerra. Não participaram da construção da Declaração para dizer “o que são Direitos Humanos para eles” os judeus, os ciganos e nem os povos dos países subalternizados, tais como: os latinoamericanos, os africanos e os asiáticos.
Após os horrores da Segunda Grande Guerra perpetrada pelos capitalistas eurocêntricos, a ideologia dominante do direito universal impôs para o mundo o que seria dignidade humana e direitos para todos. Após 70 anos da Declaração, essa história se repete com diretrizes eurocêntricas, no espírito da modernidade capitalista, se impondo como se fossem universais, desconsiderando e encobrindo a pluralidade de direitos e a multiplicidade de concepções de direitos humanos que cada povo tem. Por exemplo, na Bolívia e no Equador, foram construídas Pluriversidades no lugar de Universidades e em assembleias constituintes promulgaram constituições plurinacionais com uma pluralidade de direitos segundo a diversidade cultural e regional de cada povo, dentro do mesmo território nacional.
Direitos Humanos hoje exigem reconhecer os direitos da natureza, direitos de todos os seres vivos, entendendo que humanidade e meio ambiente são um todo. Nessa perspectiva, é vital definir o que são direitos humanos a partir dos injustiçados. Direitos humanos são direitos fundamentais, como moradia, terra, saúde, educação, lazer, cultura, meio ambiente sustentável, justiça agrária, justiça urbana, justiça ambiental, segurança social como fruto de justiça social, não criminalização da pobreza e dos movimentos sociais populares.
Mas também é não exploração da dignidade humana pelo capital, defesa dos direitos das mulheres, respeito às identidades de gênero, cor, etnias, opções religiosas. Como uma máquina de moer vidas humanas e ecológicas, o capitalismo violenta diariamente os direitos humanos. Com braço social cada vez mais raquítico e braço repressor cada vez mais violento, o Estado brasileiro, atrelado e vassalo da classe dominante, não apenas se omite, mas fomenta e perpetra a violação de direitos humanos permanentemente.
As Igrejas e as pessoas cristãs promovem os direitos humanos quando fazem opção pelos empobrecidos, na prática fortalecendo as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as pastorais sociais, realizando a Campanha da Fraternidade, formação bíblica libertadora, transformadora e ecumênica e convivendo com os povos oprimidos e injustiçados e participando das lutas desses por direitos sociais. Entretanto, as igrejas e seus membros violentam os direitos humanos quando promovem a privatização da fé cristã, quando não colocam em prática a dimensão social do evangelho de Jesus Cristo, quando praticam o preconceito, a discriminação, quando defendem atitudes opressoras e violentas, quando valorizam os templos (muitas vezes com luxuosas construções) em detrimento do serviço pastoral, missionário e profético. Isso acontece quando se separa a vida do evangelho, a fé da política.
Segundo o Evangelho de João, o bom pastor convida o rebanho para sair do redil (curral) e ir para campo aberto para construir espaços de vida e liberdade em abundância para todos. É o que nos pede o papa Francisco: “Sejamos igreja em saída!” Entretanto, quando líderes religiosos conclamam o povo para ficar entocado nas igrejas, alienado, os idólatras do capital tomam conta da rua e pisoteiam nos direitos humanos fundamentais. A fé cristã de verdade é para ser vivida nas comunidades e na sociedade, sendo luz no meio das trevas (opressões e corrupções), sal na comida e fermento na massa. Quem se omite diante das injustiças e das opressões está sendo cúmplice e não está sendo luz nas trevas, nem sal na comida e nem fermento na massa, pois a luz incomoda as trevas, o sal incomoda a comida e o fermento incomoda a massa.
Os direitos humanos não estão sendo preservados e o debate ainda é muito superficial, porque mais que serem preservados, precisam ser conquistados. Sinal disso é que após 70 anos de Declaração dos Direitos Humanos, sendo o Brasil signatário dela, o que temos é a violência social ceifando a vida de mais de 70 mil jovens anualmente; pelo uso abusivo de agrotóxico na agricultura, o agronegócio causando câncer em mais de 600 mil pessoas anualmente; a falta de reformas agrária e urbana deixando mais de seis milhões de famílias sem moradia, debaixo da cruz do aluguel e da especulação imobiliária; o campo brasileiro cada vez mais com propriedade privada capitalista reproduzindo uma das maiores concentrações fundiárias do mundo; o agronegócio e o hidronegócio desertificando o campo, envenenando a mãe terra, os alimentos, os cursos d’água e o ar; em um processo de encarceramento de massa, os presídios brasileiros, cada vez mais numerosos e maiores, massacram a dignidade de mais de 700 mil presos, onde via de regra, só povo pobre, negro e periférico é jogado para detrás das grades.
Para esses, a pena não tem sido apenas a restrição da liberdade de ir e vir, mas castigo cruel. Em sua grande maioria, o poder judiciário segue sendo parcial, partidário e defensor dos interesses da classe dominante. Assim, os tribunais seguem defendendo a propriedade privada capitalista, e violentando a dignidade humana e de todos os seres vivos.
A partir de 31 de agosto de 2016, com a consumação do golpe parlamentar, jurídico e midiático, o que se vive no Brasil é a total violação dos direitos fundamentais. Exemplos disso: o desmonte dos direitos trabalhistas, o congelamento por 20 anos de investimentos em direitos sociais, a insistência em acabar com os direitos previdenciários e a legalização da grilagem de terras. Por fim, direitos humanos fundamentais estão sendo tratados como coisa de polícia e de exército. A intervenção do exército no estado do Rio de Janeiro é um absurdo, algo abominável da perspectiva dos direitos humanos. Óbvio, que com mais repressão só aumentará a violência social e piorará mil vezes os já graves problemas sociais.
As ideias da classe dominante – ideologia dominante – trombeteadas aos quatro ventos pelos grandes meios de comunicação criam uma visão equivocada dos direitos humanos. Por exemplo, a ideologia dominante diz que quanto mais o/a trabalhador/a trabalha, mais adquire dinheiro capaz de comprar tudo o de que necessita: terra, moradia etc. Na realidade, quanto mais o/a trabalhador/a trabalha, mais produz, não para si, mas para o capitalista que compra sua força de trabalho. Interessam aos cúmplices da classe dominante frear as lutas coletivas por direitos humanos fundamentais. Para o sistema do capital, convém reproduzir o preconceito contra os direitos humanos assim como é importante a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais populares.
Cada vez mais, torna-se urgente combater essa visão injusta dos direitos humanos. É preciso deixar claro para as pessoas injustiçadas que direitos humanos são direitos fundamentais para se viver e conviver com dignidade. Bertold Brecht repetia sempre: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Logo, em uma sociedade capitalista, a ideologia dominante tenta o tempo todo transformar o violentador em vítima e imputar às vítimas da violência a responsabilidade sobre as causas da violência. Ou seja, invertem-se as relações sociais: o opressor é apresentado como se fosse oprimido e se apresentam os oprimidos como violentos. Nesse contexto de violação sistemática de direitos humanos, a melhor forma de proteção e conquista dos direitos humanos atualmente, no Brasil, passa necessariamente por desobediência civil, povo na rua e lutas concretas com o povo organizado batalhando pelos direitos sociais.
Belo Horizonte, MG, 27/02/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1) Frei Gilvander Moreira: “MST em Campo do Meio, MG: uma bênção do Deus da Vida”. 11/ 12/ 2017
2) Barragem de Jequitaí/MG, da CODEVASF: Frei Gilvander e Irmã Etelvina, da CPT de MG. 21/11/2017
*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.