E eis que o decreto assinado por João Doria – que garantia a si mesmo segurança pessoal feita por policiais militares por um ano após deixar o cargo de prefeito – virou farinata.
Devido à repercussão extremamente negativa, o alcaide paulistano acabou voltando atrás e alterou o texto que prevê que ex-prefeitos tenham direito a esse benefício. Agora, ela valerá apenas para o próximo eleito ou a próxima eleita, excluindo a si próprio.
Ele – que vai largar o Palácio do Anhangabaú para disputar o Palácio dos Bandeirantes – tentou até amenizar, dizendo que reembolsaria os custos ao poder público. Mas não colou.
Sua justificativa para a segurança pessoal é que ele recebeu ameaças por enfrentar o tráfico de drogas na Cracolândia da região da Luz, precisando de proteção.
Contudo, quem decide se policiais militares irão acompanhar um ex-prefeito é o comando da Polícia Militar e não a própria Prefeitura. A gestão municipal não apenas ignorou os protocolos para obter essa escolta como, quando criticada, agiu como um moleque imaturo que tenta colocar a culpa no amiguinho: disse que a ideia partiu de PMs. O que a polícia nega. A corporação também ficou surpresa com o decreto, pois ainda não havia respondido nem a consulta feita pela Prefeitura a respeito do tema, dias atrás.
João Doria, que afirma doar seu salário pois, sendo multimilionário, não precisa do dinheiro, exigiu um carro e uma base da Guarda Civil Metropolitana fazendo vigilância de sua casa 24 horas por dia desde que começou o mandato. Fica difícil calcular, no final das contas, se São Paulo economiza ou perde com o próprio.
Esse é apenas mais um capítulo de uma novela em que o prefeito João Doria demonstra ter problemas para diferenciar o que é público do que é privado.
Enquanto nós, na sociedade, podemos fazer tudo o que quisermos, exceto o que estiver proibido por lei, os membros da administração pública só podem fazer o que for previamente e expressamente autorizado pela sociedade através da lei. Ou seja, não é possível ter a mesma liberdade da iniciativa privada no poder público. E é importante que seja assim, por mais que enlouqueça políticos que se dizem gestores.
A ideia não é engessar a vida de políticos eleitos ou magistrados e procuradores concursados, mas evitar a corrupção ativa e passiva e o favorecimento a pessoas e grupos, além de garantir que o governante vá trabalhar dentro de balizas criadas por legisladores e/ou monitoradas pela Justiça. Governar é um ato autorizado pelo povo dentro de parâmetros que ele determinar, direta ou indiretamente.
Pois, como já disse aqui, o administrador está lá para conduzir uma cidade, um estado ou um país segundo a Constituição e as leis. E não para a primazia de seu desejo pessoal. O que seria mais próximo de um governo tirânico.
Quem se elege com um discurso de diretor de empresa para um cargo eletivo, afirmando que sua experiência significará agilidade, esquece que regras diferentes devem ser seguidas na administração da coisa pública. O não favorecimento pessoal é uma delas. E se você abre mão de seu salário, isso não significa que ganhe um ”bônus” para gastar em outra área da Prefeitura, como a da segurança.
E a liberdade total nem sempre ocorre no setor privado. O dono de uma empresa familiar que comanda tudo o que nela acontece é diferente do presidente de uma corporação de capital aberto. Este é um empregado, que tem mais liberdade que um gestor público, claro, mas responde ao conselho de administração e aos seus acionistas. E sua permanência depende não apenas de resultados, mas também de seguir as regras internas da empresa, do mercado, do país.
Quando Doria abraçou a política de doações privadas ao município de São Paulo foi, inicialmente, criticado pela falta de critérios claros e de transparência para essas doações. Em resposta, postou primeiro em sua conta no Facebook um conjunto de arquivos em baixa resolução, com números que pareciam arredondados e critérios desconhecidos. Claro comportamento birrento. Horas depois, os dados foram colocados no site da Prefeitura de São Paulo. Questionado sobre isso, disse que não via problema algum.
Mas o recado dado não foi dos melhores: para qualquer pessoa se manter bem informada sobre sua cidade terá que seguir prioritariamente a página privada do prefeito, onde ele publica não apenas informações de utilidade pública, mas tudo o que acha interessante. Não fez a saudável separação entre os canais públicos e as redes privadas – que ele também usava para promoção pessoal. Uma coisa pertence a ele. A outra, a todos nós.
João Doria, à frente de sua empresa Lide, organizou, durante anos, eventos para aproximar políticos de empresários – cobrando muito bem por isso. Em janeiro do ano passado, como foi revelado pela Folha de S.Paulo, a Lide, que está sob gestão de sua família, enviou a empresários um e-mail pedindo dinheiro para financiar um almoço-debate com líderes empresariais e um político. Dessa vez, porém, o político era o próprio João Doria, que iria falar da gestão de São Paulo. Quem pagasse uma cota de patrocínio de R$ 50 mil poderia se sentar na mesa com ele. Após a repercussão negativa sobre o conflitos de interesse de uma ação como essa, Doria afirmou que não participaria do evento.
Por fim, retomo uma reflexão que já havia feito aqui. Há quem defenda que o Estado não deveria ser tão responsável por educação, saúde, transporte, segurança. Ou seja, ao invés de sustentar com impostos a manutenção e ampliação de escolas públicas e do Sistema Único de Saúde, deveria reduzir os impostos e as famílias usariam esse valor para pagar as mensalidade de uma escola particular ou comprar um plano de saúde.
Outros defendem que o poder público deve atuar redistribuindo riqueza e, através de impostos cobrados de forma mais pesada dos mais ricos do que dos pobres, custear um Estado que cuide do bem estar da parte de sua população que não poderia adquirir esses serviços de outra forma. E que os dividendos pagos por estatais sejam usados no desenvolvimento social e elas próprias sirvam para ser vetor de expansão de determinadores setores econômicos.
Você pode defender qualquer uma das duas propostas acima e ser um cidadão preocupado com o país.
Mas é importante ressaltar que pedir Estado mínimo e, ao mesmo tempo, exigir que o Estado se desdobre para garantir atendimento personalizado não funciona muito bem.
Como a redução do Estado é uma das pautas de João Doria, ele deveria ter optado por seguranças particulares ao invés de policiais militares. Quem sabe, se tirasse o escorpião do bolso, poderia bancar até o pessoal do Mossad. Os traficantes desqualificados da Cracolândia não seriam páreo ao serviço secreto israelense.
De qualquer forma, alguma escola e alguma comunidade foram dormir sem saber o que quase os atingiu. Pois, ao invés de prevenir crimes e proteger escolas, quatro policiais poderiam, a partir de abril, serem deslocados para ser sombra de um candidato ao governo estadual.