Empresas privadas invadem nossa privacidade para manipular nossas escolhas políticas. Ainda assim, permanecemos em tal rede. Por quê? Até quando?
Por Eduardo Febbro, no Outras Palavras
A crise da maior rede social do planeta é um ato de justiça que a humanidade merece. O oportunismo delirante dos responsáveis pelo Facebook, o revitalizado projeto político da direita radical e a cumplicidade alucinante dos usuários configuraram um dos roubos e violações mais desastrosas da história. O Facebook e as outras empresas do ramo roubaram uma ideia maravilhosa — a internet – com o único objetivo de ampliar a dominação liberal do mundo.
O Ocidente cresceu juntamente com a colonização e agora as redes modernas reinventaram uma nova forma: já não se trata mais de colonizar um território, porque a rede é o território diante do qual o o liberalismo estendeu a nova colonização. O Vale do Silício é um sistema ditatorial fechado, e não um paraíso de onde saem os conceitos de uma humanidade renovada. Os algoritmos do Facebook têm dois fins: formatar, censurar, manipular, dirigir, expandir-se e fazer dinheiro. Pouco importam a Mark Zuckerberg nossas alegrias, nossos prantos e nossos segredos: só o move a fome de ver suas ações subir e subir. Na rede, nossas vidas são moedas que se acumulam e não perfis de uma humanidade que compartilha suas paixões e relacionamentos.
A passividade dos usuários diante das contínuas revelações sobre a quebra maciça da intimidade, e a monetização de seus dados pessoais; a inoperância dos sistemas jurídicos de mastodontes autocomplacentes como a União Europeia; a incapacidade ou a indolência diante do desafio de criar redes saudáveis e alternativas; a debilidade dos Estados do Sul e o atraso das esquerdas quando se trata de refletir sobre as novas tecnologias e os desafios que elas introduzem para a liberdade humana e na reformulação do modelo social; a fascinação diante do brinquedo tecnológico e o projeto da direita planetária misturaram-se numa dança mortal.
Na crise do Facebook combinam-se todos os ingredientes que demonstram sua pusilanimidade e sua indiferença diante de quem foi o arquiteto de sua riqueza – ou seja, os usuários. As revelações que o ex-agente da NSA (Agência Nacional de Segurança) Edward Snowden difundiu em 2013 no jornal The Guardian já haviam provado até a saturação a conivência do Google, Apple, Facebook, Yahoo ou Microsoft com os serviços de inteligência ou os setores privados que fazem dinheiro com os dados pessoais ou promovem ideologias retrógradas. Tudo terminou num grande silêncio que o novo escândalo tira das catacumbas da indiferença. O caso é de uma gravidade destruidora: trata-se nada mais nada menos de empresas privadas que usaram os dados de 50 milhões de usuários do Facebook para manipular politicamente os cidadãos. A direita mais envelhecida venceu os progressistas das tecnologias e os poetas das ideologias.
Nos Estados Unidos, a consultora Cambridge Analytica obteve e serviu-se de dados como arma de influência na campanha eleitoral de Donald Trump. Na Grã Bretanha, a filial da Cambridge Analytica, a Strategic Communication Laboratories (SCL), especializada nas competentes “estratégias de influência” destinadas a órgãos governamentais e setores militares, teve o mesmo procedimento. Apoiou-se em dados para virar o prognóstico do referedo sobre a permanência do país na União Europeia, em favor do “Leave” – ou seja, o já conhecido Brexit. Se olhamos bem as coisas, o Facebook e o Big Data comandam a reconfiguração da política mundial, marcada nos últimos dois anos pelo Brexit e pela eleição do Trump.
A ultradireita nada de braçada. A Cambridge Analytics usa a massa dos Big Data para confeccionar um repertório de mensagens e memes de muito alcance. Em 2014, o pesquisador Aleksandr Kogan (Cambridge) teve a ideia de criar um teste de personalidade a que responderam quase 300 mil usuários do Facebook. Esses dados e todos os “links” que vão com eles foram remetidos por Kogan à Cambridge Analytica. Esta empresa desempenhou um papel igualmente preponderante nas eleições no Quênia e nas primárias do Partido Republicano, nos Estados Unidos, a favor de Ted Cruz. E se ainda há inocentes que continuam a fechar os olhos diante da vitória esmagadora da direita mundial com a ponte das novas tecnologias, bastaria acrescentar que o principal acionista da Cambrige Analytica não é senão Robert Mercer, um multimilionário de perfil muito baixo que é, também, acionista do portal de extrema direita Breitbart News. E ainda mais: no conselho administrativo da Cambridge Analytica aparece outro destacado ultradireitista: Steve Bannon, o novo ídolo dos populistas de direita e ex-diretor da campanha eleitoral de Trump.
Os apóstolos do racismo da xenofobia, da identidade nacional como declaração de guerra, da soberania excludente, da censura, do fechamento das fronteiras e da guerra comercial escorregaram nas infinitas telas da tecnologia para nos oferecer o pesadelo do Brexit, de Trump, da violência contra o outro e das visões mais atrasadas e tóxicas que a humanidade pode desenhar desde o princípio do século XX. A direita obteve uma brilhante vitória apocalíptica graças, também, não só ao Facebook e seus aliados, mas também a nossa preguiça quando se trata de introduzir em nossa análise de utilização das tecnologias a variável política. Agimos como crianças com um presente de Natal enquanto o monstruoso Papai Noel conquistava e manipulava nossa inocência.
O Facebook deu provas de sobra a respeito de sua imobilidade, negligência ou cumplicidade. Os algoritmos do Facebook têm uma repercussão perversa e expõem a pertinência da relação entre democracia e rede social. As redes nos vendem e traçam uma espécie de relação que promove compromissos cujos resultados são logo reutilizados por outros setores na sempre reatualizada cruzada colonizadora da consciência humana. Rob Sherman, chefe adjunto do departamento de Privacidade do Facebook, disse que a empresa se compromete “fortemente com a proteção dos dados dos usuários”. Uma brincadeira retórica de mau gosto. Prova disso é que o Facebook não era inocente: há três anos ele “percebeu” o roubo dos dados da Cambridge Analytica … mas até 17 de março não havia fechado a conta da empresa.
Não cabe a mais remota dúvida de que na Argentina [e no Brasil] o Facebook serviu e serve com os mesmos objetivos ao liberalismo governante. O primeiro ato de resistência moral e política de um progressista digno do século XXI consistiria em fechar imediatamente sua conta nesta rede. Isso, sem dúvida, parece ser mais árduo do que forçar seus diretores a serem mais responsáveis. Estamos diante de uma aliança liberal ultraconservadora acordada entre setores políticos e empresas tecnológicas. É uma guerra ideológica sem bombas e devemos deixar de ser os cordeiros inocentes que contribuem com as vitórias de seus carrascos.
Tradução: Inês Castilho
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Imagem: Bob Al-Greene