É nos momentos sombrios de uma sociedade desorientada e envenenada por ódios políticos que é mais fácil se esconderem e prosperarem as forças ocultas mais perigosas e violentas
Por Juan Arias, no El País
Será que a política enlouqueceu? A Justiça perdeu a bússola? A sociedade adoeceu? Drogamo-nos todos com o veneno da irracionalidade? O Brasil que encontrei ao chegar aqui há quase 20 anos e que me conquistou como uma namorada com sua placidez humana, parece hoje à beira de um ataque de loucura. É como se todos tivessem combinado, ao mesmo tempo, de se odiar, confrontar, acusar e até agredir fisicamente. Parece a conjunção de um terremoto e um incêndio. Tudo treme e tudo arde, enquanto a sensatez, a reflexão, o diálogo, o respeito pela diversidade e a empatia pelas ideias alheias se escondem envergonhados.
Ou os brasileiros, todos, de qualquer ideologia ou credo religioso, entendem que o que se precisa é uma pausa de serenidade, de lucidez humana e política ou acabarão devorando-se sem saber, no final, por quê nem para quê, já que essa irritação e esse desassossego não parecem condizer com sua identidade mais íntima. Conheço um pouco os brasileiros para entender que o que lhes dá prazer é o gosto pela vida, pela amizade, pela alegria de estar juntos. Nunca foram filhos prediletos da guerra.
Entretanto, um observador que chegasse de fora encontraria uma sociedade em carne viva, penetrada pelos instintos mais baixos que correm soltos pelas redes. Poderia pensar que se trata de um povo que perdeu a direção. Como entender que um personagem messiânico como o ex-presidente Lula, que foi orgulho dentro e fora do país, se transformou de repente no monstro a abater, centro de todas as brigas, objeto de todas as rixas jurídicas, capaz de despertar os piores instintos?
Como entender, ao mesmo tempo que Lula e seu partido, que chegaram ao poder embalados pelo mantra de paz e amor, diálogo e a reconciliação, dividam a sociedade entre “nós e eles”, bons e maus e ameacem fazer uso do exército dos Sem Terra? Precisava Lula, no meio de um processo judicial, condenado por corrupção, ameaçar os juízes de levá-los à prisão se voltasse ao poder?
Precisavam personagens que gozam do prestígio da sociedade por sua luta contra a corrupção, como o procurador Deltan Dallagnol ou o juiz do Rio, Marcello Bretas, lançar mão de suas crenças religiosas, do temor a Deus, e anunciar jejuns espirituais para pedir a prisão de Lula?
E o Supremo, que deveria ser o fulcro da segurança constitucional, precisava abrir entre seus magistrados uma guerra pessoal, dividir-se em bandos políticos e transformar um simples e legal habeas corpus como o de Lula em uma batalha e em uma desculpa para tentar reabrir a discussão sobre a possibilidade de começar a cumprir pena depois da condenação em segunda instância? É impossível que a sociedade, também ela envenenada, não veja na manobra a mão negra para dar um golpe no Lava Jato, o ogro dos grandes corruptos que sonham “estancar a sangria”?
Como também é verdade que a sociedade não pode querer impor seus gostos a um tribunal supremo cuja liberdade de decisão deve ser sagrada e goza do direito constitucional de emitir, em liberdade, vereditos que devem ser respeitados pelos outros poderes.
E para a sociedade é difícil entender, por exemplo, dentro da administração da Justiça, por que dezenas de políticos estão sendo condenados nos tribunais de primeira e segunda instância, enquanto entre os que gozam de foro privilegiado e são julgados pelo Supremo nenhum foi condenado, nem da esquerda nem da direita.
Correm provocações por toda parte e por todas as instâncias e a sociedade acaba atolada nessa loucura institucional com o perigo de querer fazer justiça com as próprias mãos. Ou alguém detém essa corrida para a exasperação de tudo que nos rodeia, sem árbitros capazes de fazer uma chamada ao bom senso e à reflexão, ou corremos o risco de dar de cara com uma ruptura institucional ou uma incredulidade da sociedade nos poderes e nas leis que devem regê-la.
Estamos a poucos meses de eleições consideradas cruciais, com uma carga de incerteza que há quem aposte que não serão realizadas ou serão invalidadas, sobretudo se de um modo ou de outro, a Justiça eleitoral não decidir com serenidade e com a lei na mão, o destino da candidatura emblemática e paradoxal de Lula, o candidato com maior número de consensos e hoje impossibilitado de disputar as eleições devido a sua condenação a 12 anos de prisão.
É nos momentos sombrios de uma sociedade desorientada e envenenada por ódios políticos que é mais fácil se esconderem e prosperarem as forças ocultas mais perigosas e violentas, capazes como ninguém de conspirar nas sombras e nas águas turvas onde sabem mover-se melhor que ninguém.