No blog do Sakamoto
Michel Temer exalta a liberdade em seu pronunciamento ao país, gravado para ir ao ar na noite desta sexta (20). Diz que celebramos, hoje, mais do que a independência sonhada pelos Inconfidentes, a liberdade do direito de ir e vir. ”Somos livres e vivemos em um Estado democrático de direito.”
Nem todos. O Brasil foi palco da libertação de mais de 51 mil trabalhadores escravizados desde 1995. E outros tantos milhares continuam nessas condições.
E, se dependesse das ações tomadas por Temer, muitas dessas pessoas deixariam de ser resgatadas pelas equipes de fiscalização do poder público. Não apenas pelo corte orçamentário sofrido pelo Ministério do Trabalho, que chegou a afetar as atividades de verificação de denúncias nos Estados. Através de uma polêmica portaria, publicada em 16 de outubro de 2017, o governo passava a condicionar o flagrante de escravidão ao cerceamento da liberdade com uso de vigilância armada – o que desconsiderava as condições de trabalho em que se encontram as vítimas, indo de encontro ao Código Penal.
Isso se deu em meio à negociação junto à Câmara dos Deputados para que fosse rejeitada a segunda denúncia contra ele, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República. A portaria teria sido um pedido de empresas da construção civil e também atenderia a uma antiga reivindicação da bancada ruralista – setor com ampla representação no Congresso Nacional e, portanto, com votos.
A procuradora-geral da República Raquel Dodge criticou duramente a portaria em mais de uma ocasião. Segundo ela, ”ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a portaria fere a Constituição”. A medida acabou suspensa pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, e revogada pelo próprio governo com a publicação de nova portaria no final de dezembro – devido à intensa pressão da sociedade, de políticos, magistrados, procuradores, agências das Nações Unidas e parte do empresariado e investidores estrangeiros, fora o vexame na mídia internacional.
Mas ações de Temer que atingiram a fiscalização continuam tendo repercussões negativas para os trabalhadores e sua liberdade.
Uma informação equivocada dita por ele e que lhe causou grande constrangimento público – de que a falta de extintores, papel higiênico ou saboneteiras basta para a fiscalização caracterizar escravidão – vem sendo repetida por empresários para criticar o sistema de combate ao trabalho escravo no país.
Ou seja, não bastasse a portaria, o presidente bombou um ”boato” que, agora, tem vida própria.
Para mostrar um suposto exagero da fiscalização e defender a portaria, Temer afirmou que uma empresa havia sido responsabilizada pelo crime por conta de problemas insignificantes. Em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, do portal Poder 360, divulgou quatro autos de infração com as irregularidades banais já citadas, afirmando que isso havia levado aos auditores fiscais a considerarem o caso como ”condições degradantes”, um dos elementos que caracterizam trabalho escravo segundo o artigo 149 do Código Penal.
Contudo, como foi depois revelado por este blog, ele omitiu que a emissão de outros 40 autos de infração na mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratam de problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. Ou mesmo que a fiscalização foi confirmada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador.
A situação gerou desconforto para ele, uma vez que foi acusado de distorcer a realidade para justificar a portaria e proteger a empresa autuada no caso, a MRV Engenharia. A informação – segundo o Palácio do Planalto – havia sido repassada à Presidência pelo então ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e sua assessoria jurídica.
Seis meses depois, o ”extintor” de Temer foi ressuscitado.
Os mesmos argumentos voltaram a serem empregados por Flávio Rocha, pré-candidato à Presidência da República pelo PRB e proprietário da Riachuelo, nesta quarta (18), em declaração a jornalistas, após uma palestra a investidores em São Paulo.”Existe um vazio legislativo tão grande – acho até intencional – do que é trabalho escravo, que existe empresas sendo autuadas por trabalho escravo por falta de papel higiênico no banheiro, por extintor descarregado, porque o fiscal pode considerar qualquer uma dessas condições como condição subumana de trabalho.”
E não apenas ele. Outros empresários, principalmente do ramo da construção civil e do agronegócio, vêm denunciando o que seria um ”excesso” de rigor dos auditores fiscais. Os críticos do sistema brasileiro de combate ao trabalho escravo citam que resgates de pessoas têm acontecido devido à espessura de colchões, problemas com beliches, extintores inadequados, falta de papel higiênico e de saboneteira, falta de copos plásticos descartáveis, entre outras justificativas. O que não procede.
Em entrevista dada a este blog na época da polêmica com a portaria, o auditor fiscal do trabalho João Batista Amâncio, que coordenou a fiscalização citada por Temer, explicou que, durante uma operação, os auditores são obrigados a lavrar autos de todas as irregularidades encontradas – das mais leves às mais graves de acordo com uma lista de infrações estabelecida pelo Ministério do Trabalho. Algumas autuações focam em detalhes tão banais que podem parecer um exagero. Porém, não é a falta de saboneteira ou de extintor em situação regular que configura condições degradantes e, portanto, trabalho análogo ao de escravo, mas a somatória das autuações mais graves.
A análise foi confirmada por Silvio Beltramelli, procurador do Ministério Público do Trabalho que esteve na operação, também em outubro. ”Obviamente a caracterização de trabalho escravo não saiu só desses autos de infração.” Para ele, ”compreendidos isoladamente, certamente não caracterizam o trabalho escravo”.
”Se você soma tudo, o número de pessoas que a casa não comporta, pessoas sem conseguir tomar banho, gente dormindo no chão da cozinha, sem material de higiene. Tudo isso junto caracteriza essa condição.” Segundo o procurador, tudo coopera para o descumprimento de normas de saúde e segurança, que se enquadra no artigo 149 do Código Penal como condições degradantes, que caracterizam escravidão.
Da mesma forma, tanto a Norma Regulamentadora 31 (que trata do trabalho rural), quanto a Instrução Normativa que orienta a fiscalização do trabalho escravo trazem uma lista longa de itens a serem inspecionados pelos auditores. Mas, ao contrário do que vem sendo propagado por alguns empregadores, a ocorrência individual dos itens lá dispostos não configura trabalho escravo, o que depende de um conjunto de infrações, caracterizando uma situação grave.
Após boatos circularem em redes sociais a respeito disso, o próprio Ministério do Trabalho publicou Nota Técnica frisando que não são ocorrências isoladas e banais que configuram o crime.
A fiscalização da ”saboneteira” e do ”extintor”, que resultou no resgate de 63 trabalhadores, ocorreu entre março e abril de 2011, lavrando 44 autos de infração ao todo. ”Encontramos alojamento que era um lixo, com gente dormindo no chão, sem colchão. Faltava higiene, condições sanitárias. Mas também encontramos trabalhador com carteira de trabalho retida, trabalhador que não recebeu salário algum”, afirma João Batista Amâncio.
Por conta de resgates de trabalhadores nos quais o poder público envolveu a MRV Engenharia, a empresa chegou a ser incluída na ”lista suja”. Na análise de um pedido de liminar da empresa à Justiça do Trabalho para ter o nome retirado da relação, o juiz Francisco Luciano de Azevedo Frota tratou das condições: ”Instalações sanitárias insuficientes para o número de trabalhadores, alimentação insuficiente e de má qualidade, falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual, falta de instalações elétricas adequadas e seguras nos alojamentos, ausência de pagamento de salários”.
A sentença da juíza da 1a Vara do Trabalho de Americana, Natália Antoniassi, de agosto de 2013, contra a MRV, afirma que ”lamentavelmente, a existência de trabalhadores em condição análoga à de escravo restou perfeitamente caracterizada. A ação conjunta do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho foi extremamente minuciosa, não deixando dúvidas que a ré se utilizava de mão de obra escrava em suas construções”.
Ela confirmou as condições degradantes a que estavam submetidos os trabalhadores e ressaltou outros elementos, como o aliciamento. Trazidos de ”regiões miseráveis do Norte e Nordeste” com a promessa de que teriam a viagem custeada pela empresa e que ganhariam um bom salário, eles encontraram outra realidade ao chegar à cidade. A viagem foi descontada do pagamento e os salários combinados, quando pagos, vinham com atraso ou descontos indevidos. O intervalo entre jornadas era suprimido total ou parcialmente e a comida tinha que ser complementada pelos operários, pois era pouca. Os trabalhadores não tinham dinheiro para ir embora e, por isso, iam ficando.
Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida). Parte da Bancada Ruralista no Congresso Nacional tenta alterar a lei para derrubar os dois últimos itens.
Construção civil e a ”lista suja”
A Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) pediu, em janeiro, que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional a ”lista suja” do trabalho escravo – cadastro de empregadores flagrados por esse crime, atualizado semestralmente pelo governo desde 2003. O relator da ação, ministro Marco Aurélio Mello, negou a liminar e deve levar o caso ao plenário – sem data ainda definida. O cadastro, instrumento de transparência do poder público, é usado por empresas para embasar suas políticas de responsabilidade social.
A mesma associação já tinha conseguido suspender a ”lista suja” em dezembro de 2014, em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, por decisão do então presidente, Ricardo Lewandowski. A suspensão foi derrubada em maio de 2016 pela ministra Cármen Lúcia após o Ministério do Trabalho publicar novas regras de entrada e saída do cadastro, atendendo a demandas da própria Abrainc.
Porém, o governo Michel Temer – novamente ele – manteve a publicação da relação congelada até que perdeu uma batalha judicial para o Ministério Público do Trabalho. Com isso, a ”lista suja” voltou a ser divulgada em março do ano passado.
Em 2014, a Abrainc era presidida pela MRV Engenharia – empresa que, por coincidência, foi aquela cujos autos de infração da saboneteira e do extintor foram usados por Michel Temer para questionar a fiscalização do trabalho escravo no Brasil. Em setembro de 2013, o Ministério Público do Trabalho e a MRV fecharam um acordo nacional para regularizar os problemas em seus canteiros de obras. Segundo o MPT, a empresa assumiu a responsabilidade solidária com empreiteiras, subempreiteiras e prestadoras de serviços pelo cumprimento das normas de segurança de trabalho e demais direitos trabalhistas.
De acordo com Renato Bignami, auditor fiscal do trabalho que coordenou esforços para resgate de trabalhadores escravizados em São Paulo, condições degradantes reduzem a capacidade laboral do trabalhador já que passa a ser tratado como uma mercadoria. Ele ressalta que essas condições encontram proibição expressa não apenas na legislação nacional, mas também na Constituição Federal de 1988, nos tratados internacionais ratificados pelo país e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. ”Prejudicam não apenas a pessoa do trabalhador, mas também criam distorções no mercado de trabalho, concorrência desleal entre as empresas e acabam por impactar negativamente a própria Seguridade Social ”, completa.
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Foto: Ueslei Marcelino /Reuters