Para a saúde da mulher e da criança indígenas sobram promessas e faltam soluções

Passado 1 ano e meio do prazo, que se esgota em 2019, pouco foi feito e muito segue em instâncias consultivas no “Plano Nacional de Diminuição da Mortalidade Infantil Indígena”

Por Maurício Angelo / Mobilização Nacional Indígena (MNI)

Reduzir em 20% as mortes de bebês e crianças indígenas com até cinco anos de idade; ampliar para 90% as gestantes com acesso ao pré-natal; implementar as consultas de crescimento e desenvolvimento para crianças indígenas menores de 1 ano, chegando a 70%; ampliar para 90% o acompanhamento pela vigilância alimentar e nutricional das crianças indígenas menores de 5 anos; investigar ao menos 80% dos óbitos materno-infantil fetal; fortalecer e ampliar a assistência impactando nos óbitos evitáveis, causados, por exemplo, por doenças respiratórias, parasitárias e nutricionais; entregar Unidades Básicas de Saúde Fluviais que atenderão ribeirinhos de municípios nos estados do Amazonas e Pará.

Essas são algumas das promessas e ações anunciadas pelo Ministério da Saúde e SESAI em novembro de 2016, dentro do “Plano Nacional de Diminuição da Mortalidade Infantil Indígena”. A realidade é que, passado 1 ano e meio do prazo, que vai até 2019, pouco foi feito e muito segue em instâncias consultivas e de construção de iniciativas perdendo-se na burocracia e na falta de vontade política concreta. Prova disso é que, procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde e a SESAI se negaram a comentar os avanços ou não do Plano até aqui e também não forneceram dados atualizados sobre a mortalidade infantil indígena, um problema histórico dos povos originários do Brasil.

Se prestar atendimento em saúde de maneira ampla, eficaz e respeitando os métodos tradicionais dos povos indígenas é um desafio considerável, a saúde da mulher e da criança sofre ainda mais com os problemas de falta de profissionais qualificados, logística, estrutura, recursos e influência política que muitas vezes deixa de lado a qualidade do atendimento para favorecer interesses suspeitos.

O próprio Ministério da Saúde reconhece em edital público que “ainda é possível observar limitações no planejamento e gestão das ações e serviços para o alcance da cobertura ideal de saúde aos povos indígenas, em especial, no que se refere à atenção básica às mulheres, crianças e adolescentes indígenas, quando comparados com a cobertura da população nacional. A maior parte dos problemas relacionados à garantia do acesso e da qualidade no atendimento em terras indígenas está relacionada às dificuldades legais, logísticas e operacionais para instalação de infraestrutura adequada, deslocamento das equipes, abastecimentos de insumos e medicamentos, além da falta de preparo dos profissionais para atuar em contextos interculturais”.

Na apresentação do plano, o MS/SESAI também assume que “65% dos óbitos de bebês indígenas são provocados por doenças respiratórias, parasitárias e nutricionais. Apesar de nos últimos 15 anos o índice de mortalidade infantil indígena registrar queda de 58% – em 2000 era 74,61 mortes por mil nascidos vivos e atualmente é 31,28 – a mortalidade ainda é quase três vezes maior do que a média nacional, de 13,8 óbitos a cada mil nascidos vivos”.

Ainda segundo o MS, 15 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s) estão com índice de mortalidade acima dessa média: Maranhão; Yanomami; Xavante; Caiapó do Pará; Alto Rio Juruá; Alto Rio Purus; Altamira; Amapá e Norte do Pará; Médio Rio Purus; Rio Tapajós; Mato Grosso do Sul; Alto Rio Solimões; Tocantins; Porto Velho e Vale do Javari.

Profissionais preparados esbarram em influências políticas

Dayane Bernardo Farias, do povo Terena, da Terra Indígena Buriti, do Mato Grosso do Sul, é enfermeira formada há dois anos mas que não consegue prestar atendimento ao seu povo por disputas políticas locais e processos de contratação duvidosos feitos pela Missão Caiuá, entidade terceirizada, com sede em Dourados, escolhida pela SESAI como responsável pelas contratações no MS e, até o início de 2018, em outros 19 DSEIS pelo país. “É doído falar, mas existe uma influência partidária da Caiuá e da SESAI muito grande lá dentro. Isso faz com que eu não tenha espaço para trabalhar. Já recebi propostas para mudar de lado, mas jamais vou me juntar aos ruralistas. Prefiro ficar sem trabalhar lutando pelo meu povo do que virar pro lado dos ruralistas e conseguir trabalho”, conta. Edmilson Canale, coordenador do DSEI do MS, teria sido indicado por ruralistas para ocupar o cargo.

Mesmo diante disso, Dayane conta que, no ano passado, as mulheres unidas conseguiram realizar por uma iniciativa própria uma assembleia de saúde indígena que reuniu mais de 450 mulheres, entre enfermeiras indígenas, brancas, parteiras e rezadeiras, para discutir a situação local e buscar um entendimento entre as diferentes partes envolvidas. “Nós como indígenas dentro da nossa comunidade sabemos a realidade para trabalhar com as mulheres. Nós entendemos ela, o branco não entende. Não temos a liberdade de se abrir com uma pessoa branca e não temos espaço dentro da própria comunidade como tem o branco lá dentro. Mas como o atendimento é feito pelos dois lados, precisamos construir esse entendimento”, relata Dayane.

Desvios de recursos geram também problemas de logística, como falta de transporte, muito comuns. Dayane conta que, pouco antes da entrevista, recebeu uma ligação informando que a equipe de saúde não estava conseguindo ir até a aldeia por falta de gasolina. A solução foi a comunidade conseguir um carro por conta própria para realizar o atendimento. Situação que se repete com frequência.

“Mas isso é só a nossa comunidade, em volta de nós são 9 aldeias que não têm apoio. A verdade é que recursos são desviados e esse tipo de situação acontece”, diz Dayane. No inicio de 2018, a SESAI iniciou chamamento público para escolher as entidades terceirizadas que irão realizar o atendimento à saúde indígena em todos os DSEI’s do Brasil. Embora tenha assumido publicamente em 2017 que não participaria de novos editais da SESAI e deixaria de atuar na saúde indígena, a Missão Caiuá – que recebeu mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017 – acaba de vencer a nova licitação para seguir atuando no Mato Grosso do Sul.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Ministério Público Federal (MPF) têm questionado a formatação dos editais da SESAI, feitos sem consulta prévia e com indicações de favorecimento político. “A Caiuá ganhou porque é muito forte politicamente e também porque sabe responder exatamente o que os editais pedem, considerando a sua experiência. Os editais são formatados para isso”, confirma Dayane.

A enfermeira do povo Terena teme também que o processo de seleção siga confirmando a exclusão de profissionais indígenas. “Na semana passada fizeram uma seletiva só para indígenas, é a primeira vez que isso aconteceu no MS. Mas nosso receio é que, sendo formatada a prova de acordo com os interesses deles, apesar das poucas 5 vagas disponíveis, eles digam que nenhum indígena atendeu os critérios. Eles não querem que a gente passe. Independente do que acontecer, vamos seguir lutando por espaço lá dentro. Não é uma prova que vai fazer você trabalhar e mostrar seu conhecimento. Seu conhecimento é na prática”, diz Dayane.

No Baixo Tapajós, 6 mil indígenas precisaram buscar na Justiça o direito de serem atendidos

Se o atendimento é difícil em algumas regiões, em outras ele era simplesmente negado há bem pouco tempo. No Baixo Tapajós, o povo Kumaruara vem lutando para garantir atendimento de saúde há uma década. Desde a época em que a saúde era prestada pela Funasa (antes de 2010), o Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns já demandava um DSEI próprio. Foi preciso ocupar por uma semana o Pólo Base de Saúde em Santarém (PA) para que a SESAI cumprisse determinação judicial que ordenou que o atendimento de saúde dos 6 mil indígenas, sobretudo kumaruara, seja feito pelo DSEI Guatoc (Guamá-Tocantins). Na ocupação, um parente foi preso e celulares que registravam a atuação da Polícia Federal foram apreendidos.

“Desde então, de 2016 em diante, o que acontece são ações da SESAI esporádicas, equipes de Belém que vão periodicamente. O que a gente espera é que sejam contratadas equipes multiprofissionais em área fazendo esse atendimento com frequência, porque nossa demanda é de no mínimo 6 equipes”, afirma Luana Kumaruara. Novamente, os editais da SESAI em andamento geram insegurança. “Essa semana a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) saiu e entrou uma nova empresa do Maranhão. Nosso receio é de ter que começar todo o diálogo e o processo de seleção novamente”, diz Luana.

As condições de logística e falta de estrutura também atrapalham: sem barcos e lanchas disponíveis, com boa parte das aldeias localizadas em margens de rios, os indígenas contam apenas com suporte terrestre no momento, enquanto um pregão para adquirir transporte aquático ainda está em andamento. A demora de transporte adequado já levou muitos parentes a óbito.

Sobrecarregado, o DSEI Guatoc não tem estrutura e equipes para fazer o atendimento dos 6 mil indígenas que foram agregados via decisão judicial, considerando os 9 mil que já atendia anteriormente, totalizando, agora, 15 mil parentes. Profissionais de Santarém e Belém, destacados para atendimentos esporádicos, além de insuficientes, acabam desfalcando a própria base. Hoje, o acompanhamento que a maioria das mulheres indígenas do Baixo Tapajós recebe é de parteiras e curandeiras tradicionais. Não contam com o suporte adequado na base e nem realizam exames de pré-natal, por exemplo, fundamentais para o bom andamento da gestação. “Nossa briga hoje, enquanto não conseguimos o DSEI próprio, é de aumento do teto orçamentário via o nosso CONDISI do Baixo Tapajós. Ainda tem região lá que a SESAI nem botou os pés”, afirma Luana.

Do Amazonas para Brasília: a formação de uma liderança para a saúde da mulher indígena

Representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) na Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher junto ao Conselho Nacional de Saúde, Rayanne Cristine França, do povo Baré do Amazonas, jurou que não faria parte do movimento indígena.

Os motivos eram muitos: o pai foi do Controle Social do DSEI Alto Rio Negro e Rayanne cresceu vendo-o ser perseguido e criminalizado ao lado de outras lideranças indígenas que denunciavam a corrupção. Certa vez tentaram atear fogo na sua casa, além das constantes ameaças de morte por ruralistas e inimigos locais. Hoje aos 26 anos, Rayanne é enfermeira formada – uma entre os 35 estudantes indígenas dos cerca de 22 mil da Universidade de Brasília (UnB) na época, onde hoje faz mestrado em Políticas Públicas e desenvolvimento.

“Eu tinha o entendimento de que o movimento indígena não era pra mim. Não queria a vida que o meu pai levava e a gente levava com ele. Eu saio do Amazonas e venho para Brasília para estudar e quando menos espero me vejo dentro do movimento, com muita satisfação”, afirma Rayanne. Trabalhando especialmente pela saúde da mulher indígena, ela destaca a Segunda Conferência Nacional de Saúde da Mulher, em 2017, um marco porque havia 10 anos que uma conferência desse porte não era realizada. Diversas mulheres indígenas foram ouvidas pela primeira vez, a partir dos seus encontros locais e estaduais até a conferência nacional.

“Tudo isso foi um processo de muita insistência para dizer que a mulher precisa estar dentro desses espaços de controle social para que sua voz seja ouvida. Só as mulheres podem falar como vêem o parto, o puerpério, a sua integralidade a partir da sua visão da medicina tradicional no processo intercultural de integração com a medicina ocidental”, diz. Atualmente, as propostas aprovadas estão sendo consolidadas para serem apresentadas ao Conselho Nacional de Saúde, o que deve impactar diretamente nas políticas de saúde da mulher do Ministério da Saúde. Rayanne destaca a necessidade de mais participação de mulheres nas instâncias de decisão, trazendo a representatividade dos conselhos locais, onde são maioria, para o Fórum de Presidentes de Condisi, em que essa participação é bem menor.

Apesar da interlocução com a SESAI, as dificuldades relatadas encontram eco na experiência de articulação de Rayanne. “Segundo a política nacional, uma mulher não indígena tem direito a 9 consultas de pré-natal, enquanto uma mulher indígena tem hoje uma média de 4 consultas. Essa diferença significativa ocorre justamente pelas questões de recursos humanos, estrutura, logística e cultura que os povos indígenas sentem na prática”, afirma.

O fortalecimento não só da atenção básica, elemento fundamental para um bom atendimento à saúde das comunidades indígenas, como a estruturação de redes de média e alta complexidade devem influenciar diretamente na redução dos casos de morte materna, especialmente em menores de 17 anos, e na mortalidade infantil. “De modo geral, algumas iniciativas indicam melhoras, mas ainda temos um longo caminho para percorrer. São muitos percalços e barreiras a serem vencidas, não tem como uma equipe cuidar de 17 comunidades indígenas, o que ainda acontece hoje. Só a articulação da atenção básica com a média e alta complexidade pode garantir boa cobertura para a saúde da mulher”, diz.

Os profissionais, tanto indígenas quanto não-indígenas, precisam de um suporte maior em cursos de formação, como uma possível cooperação entre Ministério da Saúde e Ministério da Educação, mas também corrigir as distorções na hora da contratação para os não-indígenas, realidade de todo o país que não pode ser ignorada. “É preciso integrar esses novos profissionais indígenas que estão sendo formados, em como dar essa contrapartida. Hoje o processo acontece pelas ONGS e muitas vezes eles acabam não sendo selecionados por outras questões”, afirma.

A nova rodada de chamamento público para contratação de entidades gera insegurança entre os povos indígenas, reconhece. “Temos receio de continuar nesse modelo de ONGS porque sabemos do descaso com a saúde indígena de muitas dessas entidades. Ao mesmo tempo, uma alteração no modelo precisa ser pensada em conjunto, nenhum até agora agradou a todos”, diz. O que ela, assim como todos os povos indígenas esperam, é que essas ONG’s não olhem somente para o próprio bolso. “Espero que essas novas entidades tenham respeito pelos povos e queiram trabalhar com a saúde indígena sem pensar somente no bônus financeiro, que a gente sabe que é muito alto. Isso acaba contaminando muitas das pessoas que estão nessas organizações só de olho no capital e não pensam realmente na atenção e na qualidade da assistência”.

No encontro de culturas, o desrespeito da escolha da mulher indígena

É uma prerrogativa da política nacional de atenção à saúde indígena o respeito a cultura e práticas tradicionais, a integração sempre adequada entre a medicina milenar dos povos originários e a visão ocidental do atendimento. No entanto, as imposições na escolha do parto realizados contra as mulheres indígenas refletem bem esse desrespeito e violência.

Silvana Moreira Claudino é do povo Kaingang, do norte do Rio Grande do Sul, da aldeia Monte Caseros. Dividida entre os municípios de Ibiraiaras e Muliterno, as mulheres de cada localidade têm um atendimento muito diferente de acordo com o médico obstetra que as atende. Em Muliterno, o índice de cesáreas é baixo, já que são realizadas apenas quando necessárias. Já em Ibiraiaras, conta Silvana Kaingang, o único médico da região encaminha todas as mulheres para a cesárea, não respeitando o direito de escolha e causando uma situação de violência que está sendo levada ao MPF.

“Ele não respeita a vontade delas. Há mulheres que já estão na terceira cesárea e não podem mais ter filhos. Recentemente uma mulher não aceitou fazer cesárea e ele se recusou a atender, indicando-a para outra cidade. No meio do caminho, o parto precisou ser feito dentro da ambulância e a criança morreu. Por casos graves como esses que as lideranças estão acionando o Ministério Público”, conta.

Não por acaso, o Brasil é campeão mundial de cesarianas, ao lado da República Dominicana. Em 2016, dos 3 milhões de partos feitos no Brasil no período, 57% foram cesáreas. Enquanto no SUS os partos normais chegam a 60%, na rede privada esse número atinge mais de 80%. A recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de no máximo 15% de cesáreas. O Rio Grande do Sul, com 63% de cesáreas, é um dos estados campeões nacionais. Segundo estudos, grande parte das cesarianas é realizada de forma eletiva, sem fatores de risco que justifiquem a cirurgia, e antes de a mulher entrar em trabalho de parto. Cada semana a mais de gestação aumenta as chances de o bebê nascer saudável, permitindo maior ganho de peso, maturidade cerebral e pulmonar.

Para Silvana, a imposição médica em Ibiraiaras acontece em função do lucro. “Quanto mais cesáreas, mais ele ganha do município. Não tem diálogo entre a equipe que trabalha dentro da comunidade e a de fora. Falta integração da medicina tradicional com a ocidental. É muita imposição e as mulheres sofrem bastante. A maioria quer ter mais de um filho, mas acabam ficando restritas porque já fizeram várias cesáreas”, conta.

Rayanne faz coro e diz que uma das reivindicações é o aumento do número de estabelecimentos que oferecem parto humanizado para a mulher indígena, espaços com instalações propícias para um parto que respeite suas práticas tradicionais e onde o marido pode estar junto, por exemplo, além da presença da parteira.

Silvana, que estuda serviço social em Porto Alegre e faz estágio na atenção básica do subsistema, tem planos de retornar para a sua aldeia justamente para mudar essa realidade e ajudar a conscientizar as mulheres sobre isso. “Se alguém não fizer nada as mulheres vão continuar sofrendo esse tipo de violência contra o seu corpo e as suas escolhas”, afirma.

Como as histórias contadas aqui revelam, somente a luta em todas as instâncias – na base, nas universidades, nas políticas públicas, no controle social, nos órgãos consultivos e de decisão, na cultura, na mídia e no dia a dia – pode mudar esse cenário.

ATL 2018. Foto: Matheus Alves/MNI

 

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