Maior do que o Maracanã e com 25m de profundidade, depósito questionado pelo MPF recebe sedimentos tóxicos, sem tratamento e prejudica atividade de pescadores. Cetesb terá de explicar irregularidades
por Cida de Oliveira, da RBA
Moradora antiga de Cubatão, a aposentada Marly Vicente da Silva, 62 anos, é do tempo em que o município localizado na Baixada Santista era conhecido em todo o mundo como “Vale da Morte” pelo alto índice de poluição emitida pelas indústrias, em sua maioria dos setores siderúrgico e petroquímico. A casa em que morava na década de 1970, em Vila Parisi, era alvo de uma chuva diária de fuligem. Conforme lembra, as fraldas branquinhas do filho, então recém-nascido, ficavam pretas logo após serem estendidas no varal.
Eram frequentes também as idas ao posto de saúde, onde a criança sempre precisava passar por inalações para atenuar o quadro de insuficiência respiratória. Cansada de tanta dificuldade, mudou-se para outro bairro, a Vila dos Pescadores, apesar da falta de infraestrutura básica do local. Sua luta, e a de outros moradores, em sua maioria pescadores artesanais, passou então a ser pelo acesso aos serviços de luz e água encanada.
Há cerca de 30 anos Cubatão deixou de ser o “Vale da Morte” e hoje não falta luz nem água encanada na Vila dos Pescadores. No entanto, dona Marly e mais de 200 famílias que dependem dos pescados e caranguejos para sobreviver têm agora outras razões para continuar lutando.
A principal delas é conseguir brecar a deposição de sedimentos contaminados com substâncias altamente tóxicas, como metais pesados, em uma cova gigante, com 25 metros de profundidade e 400 metros de diâmetro – maior do que o estádio do Maracanã –, cavada a dois quilômetros e meio da Vila.
Sustento
“Os pescadores já estão sentindo na pele os impactos da cava subaquática. Preocupados com a contaminação dos peixes e caranguejos, com os quais sustentam suas famílias, estão tendo de ir cada vez mais longe para trazer o pescado, gastando mais que o dobro com o custo da atividade. Se antes gastavam R$ 40, hoje precisam gastar R$ 100”, afirma dona Marly, que preside o Instituto Sócio Ambiental e Cultural da Vila dos Pescadores (Isac), entidade que ajudou a fundar para proteger os manguezais, o meio ambiente e os pescadores artesanais.
Pescadores, moradores, ativistas, especialistas, gestores e integrantes do Ministério Público Estadual e Federal apontam irregularidades e temores em relação à obra. Construída em área de manguezal, onde o rio Casqueiro se encontra com o canal Piaçaguera, tem a finalidade de receber toda uma mistura de areia, minúsculos fragmentos de rocha e minerais, argila e restos de material orgânico trazido de outra parte do canal, que está sendo dragado para afundar seu leito.
Doenças graves
“É material suficiente para para cobrir toda a Ponta da Praia, em Santos”, estima o economista Leandro Silva de Araújo, 37 anos, integrante do movimento contra a cava subaquática. Filho de pescadores, o ativista foi de barco até as bordas da cava. Ele conta que todo esse sedimento, que estava em repouso, compactado no fundo do canal havia décadas, contém altas concentrações de mercúrio, arsênio, níquel, cádmio e tantos outras substâncias causadoras de diversos tipos de câncer, malformações fetais e danos neurológicos, entre outras doenças graves.
“Tudo isso vem sendo depositado na cava, que transborda quando a maré sobe. A água que acaba contaminada é a mesma que vai chegar à Ponta da Praia. Mas ao contrário do que aconteceu em Mariana e Barcarena (ambas em MG), em que a contaminação mudava a cor da lama e da água, aqui não há mudança. Então não tem como a gente perceber”, adverte, lembrando que o lixão tóxico de Cubatão afeta também outros municípios.
Integrante do movimento contra a cava, a bióloga Cíntia Augusta Labes do Prado chama atenção para a importância do ecossistema manguezal. Além de abrigar espécies típicas, é também área de reprodução de aves, peixes, moluscos e crustáceos, que ali buscam de alimento e abrigo. “O manguezal é berço da vida, não só de peixes. E dos peixes pescados em alto mar, quem garante que não nasceram e se alimentaram nesta área que está sendo contaminada pela cava?”, questiona.
Cíntia lembra ainda a necessidade de investimentos na destinação de resíduos para atender à legislação ambiental, que determina a utilização das melhores alternativas disponíveis. “Aqui não estão utilizando as melhores, que sabemos que existem, mas a mais barata, que garante a manutenção dos lucros”, afirma, lamentando haver ainda dois outros projetos de cava aprovados. Um para Santos e mais um para Cubatão.
Interesse
A obra de dragagem do canal, que depende de depósito para realocação de sedimentos, interessa a todo o setor industrial da Baixada Santista. Mas o interesse mais direto é da siderúrgica Usiminas e da VLI Logística, ligada à mineradora Vale, que querem aprofundar o canal. O objetivo é poder receber em seus terminais navios cada vez maiores, como os Panamax, com capacidade de carregar até 70 mil toneladas.
No final de março, a VLI comemorou em suas redes sociais que um de seus terminais homologou operação para essas embarcações, o que eleva a eficiência e a capacidade de transporte do terminal no porto de Santos, tornando a empresa ainda mais apta a atender, de forma rápida e segura, às crescentes demandas do mercado nacional.
Em 2004, a então Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), adquirida pela Usiminas em 2010, apresentou estudo de impacto ambiental (EIA/Rima) e no ano seguinte obteve licença para escavar até 12 metros. No entanto, o projeto foi alterado para 15 metros, sem que fosse apresentado novo Eia-Rima e tampouco autorização da União e muito menos consulta à população. Como a validade da licença era de cinco anos, expirou em 2010.
Mesmo assim, as obras não foram interrompidas. No ano passado, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) concedeu licença para a continuidade da dragagem – e a consequente transferência dos sedimentos para o lixão próximo à Vila dos Pescadores.
Em setembro passado, a Associação de Combate ao Poluentes (ACPO), sediada em Santos, ingressou no Fórum de Cubatão com Ação Popular contrária à implantação da cava subaquática. Para a entidade, é inadmissível que uma empresa tenha licença para jogar para debaixo do canal 2.389.700 metros cúbicos de sedimentos altamente contaminados com resíduos tóxicos valendo-se de uma licença concedida há mais de 15 anos, inicialmente a uma pessoa jurídica diferente e com finalidade diversa. A APCO chama atenção ainda para o fato de que a obra avança à revelia da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, órgão da União responsável por autorizar este tipo de empreitada.
Em outubro passado, o Ministério Público Federal e o Estadual ajuizaram ação cautelar pedindo a suspensão da licença de operação para o lixão submerso concedida em junho de 2017, quase sete anos após seu vencimento da licença prévia para todo o empreendimento.
Mobilização
Em meio à mobilização da população contra a cava, que ganha mais força com a aliança que vem sendo formada pelos movimentos ambientalistas de todos os municípios do litoral paulista contra empreendimentos que colocam o meio ambiente em situação ainda mais vulnerável, o tema começa a ganhar mais visibilidade.
No dia 15 de maio, por iniciativa do deputado estadual Raul Marcelo (Psol), a Assembleia Legislativa promoveu audiência pública para debater o tema. Entre os encaminhamentos, reuniões de parlamentares com a empresa responsável pelo projeto, nova audiência pública, desta vez em Cubatão, e a convocação do presidente da Cetesb, Carlos Roberto dos Santos, a prestar esclarecimentos à Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia.
Na última quinta-feira (7), Marcelo aprovou requerimento. Entre outras coisas, o parlamentar quer saber as razões pelas quais este órgão fiscalizador, vinculado à Secretaria Estadual do Meio Ambiente, autorizou a instalação de uma Subaquática entre as cidades de Cubatão e Santos. Juntamente com a bancada da legenda, o deputado apresentou em 23 de maio projeto de lei que proíbe o descarte de resíduos tóxicos na natureza em território do Estado de São Paulo.
Por meio de nota enviada pela sua assessoria de imprensa, a Cetesb alega as operações de dragagem em curso, com disposição do material dragado no lixão estão autorizadas pela Licença de Operação 2385, concedida em junho de 2017. E que as licenças prévias de empreendimentos ou atividades compostos de diversas intervenções em sequência temporal lógica continuam válidas quando as licenças de instalação são emitidas.
Ou seja, “não há caducidade da Licença Prévia quando iniciada a implementação das ações cuja viabilidade ambiental (aprovação da concepção) é atestada pela licença prévia, como estabelece o inciso I do artigo 8º da Resolução Conama nº237/97. A primeira das Licenças de Instalação deve ser solicitada dentro do prazo de validade da correspondente Licença Prévia, como ocorreu no caso.
Informa ainda que as licenças para a dragagem da bacia de evolução e do canal de Piaçaguera foram emitidas segundo ordem das etapas, e correspondem à sequência para o desenvolvimento do conjunto de intervenções que constituem a operação referida como “dragagem do canal de Piaçaguera”, sequência esta prevista desde o início do procedimento do licenciamento, com base em estudos específicos realizados para cada etapa.
E que o desenvolvimento das operações de abertura e preenchimento da cava foi realizado com acompanhado de intensivo monitoramento, acompanhado de relatórios semanais. Dessa forma, segundo a Cetesb, os resultados das 11 campanhas, em sete pontos de amostragem do Alto Estuário Santista, em três profundidades e que contemplaram 50 indicadores de qualidade por ponto, perfazendo dessa forma um total de 11.550 resultados, “é possível concluir com total segurança que as atividades da segunda etapa de dragagem do Canal de Piaçaguera com disposição na cava, já em fase final, não causaram qualquer alteração perceptível na qualidade da água do Alto Estuário Santista.
Defensora dos manguezais, dos pescadores e do meio ambiente, dona Marly guarda na memória os tempos de “Vale da Morte”, que não os quer de volta. E não compartilha da convicção de segurança que tem a autarquia estadual, que deveria zelar pelo meio ambiente.
E enfatiza: “Aqui ninguém é contra o progresso e muito menos contra o desenvolvimento. O que questionamos é a quem serve esse desenvolvimento que traz para debaixo do manguezal tanta contaminação, doença, e tira do pescador o seu sustento. Desenvolvimento para quem?”, questiona.
“Nós queremos que se faça o que é certo. Que parem a cava, que façam o devido tratamento dos sedimentos e que o meio ambiente seja respeitado. Queremos respeito, o manguezal vivo. E não compensação barata de empresa, dinheiro para construir hospitais para tratar as doenças que serão causadas. Não queremos a volta do ‘Vale da Morte'”.
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Imagem: Cava de 25 metros de profundidade, que está sendo preenchida com sedimentos contaminados com metais pesados em Cubatão, foi aberta no manguezal – ecossistema costeiro onde peixes e crustáceos se reproduzem – REPRODUÇÃO/GOOGLE