Intelectuais da mídia, a força-tarefa do sistema

A maior parte dos espaços de opinião na chamada grande mídia está atualmente preenchida por dois tipos de intelectuais: aqueles formados dentro das próprias empresas ou por elas projetados (colunistas, comentaristas, âncoras, autores, roteiristas, etc.), em sintonia com seus princípios e prioridades; e os selecionados externamente pelas corporações a partir de suas habilitações profissionais ou acadêmicas e, sobretudo, por seus perfis ideológicos.

Por Dênis de Moraes, no blog da Boitempo

Em um dos seus textos mais imprescindíveis, lido ao receber o título de professor emérito da Universidade de São Paulo no dia 28 de agosto de 1997 e publicado postumamente em livro, pela primeira vez, em Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise, por mim organizado1, Milton Santos delineou o cenário que hoje se consolida: a “instrumentalização pela mídia” de intelectuais que trabalham no interior das organizações do setor, ou que, vinculados à academia, ao mercado ou a instituições específicas, com elas se entrelaçam por convergências político-ideológicas ou motivações outras.

Não escapou à aguda percepção do mestre da geografia humana que a reputação do intelectual já não depende do valor de sua obra e da força de suas tomadas de posição; agora, confunde-se com a consagração pelas engrenagens midiáticas, baseada na visibilidade alcançada pela inserção nos veículos por elas controlados. Daí a reação de Milton contra o declínio da figura do intelectual crítico na sociedade de telas e monitores: “Nosso trabalho não é produzir flashes, frases, mas ajudar a produzir consciência. A cautela do intelectual perante a mídia televisiva não significa recusá-la, porque ele necessita da difusão de seu trabalho. Mas é necessário ser prudente, prudência que vem apenas da consciência plena do papel que temos para exercer.”

Com efeito, a maior parte dos espaços de opinião na chamada grande mídia está atualmente preenchida por dois tipos de intelectuais: aqueles formados dentro das próprias empresas ou por elas projetados (colunistas, comentaristas, âncoras, autores, roteiristas, etc.), em sintonia com seus princípios e prioridades; e os selecionados externamente pelas corporações a partir de suas habilitações profissionais ou acadêmicas e, sobretudo, por seus perfis ideológicos.

No primeiro caso, Carlos Nelson Coutinho observou que “a mídia cria o seu intelectual orgânico”, isto é, quadros que fazem seu aprendizado e ascendem conforme padrões fixados pelos próprios meios, com menos autonomia e criatividade. “São organicamente constituídos como intelectuais da mídia, como produtores culturais da mídia. Isso empobrece o processo de criação. O potencial crítico diminui na medida em que o intelectual já não é mais aquele que, mesmo limitado pelo universo estético e político da mídia, mantinha um certo distanciamento crítico.”2

No segundo caso, os grupos midiáticos elegem uma espécie de força-tarefa de articulistas e analistas, que congrega economistas, consultores financeiros e estratégicos, executivos de bancos e corretoras, cientistas políticos, juristas, sociólogos, diplomatas aposentados e empresários, entre outros. As suas intervenções, ainda que lastreadas pelo destaque em suas áreas de atuação, não se baseiam somente em razões técnicas, pois se alinham a ideários políticos, econômicos e culturais tendencialmente conservadores, em graus distintos.

Jean-Paul Sartre desvela o papel desempenhado por muitos desses experts enquanto “técnicos do saber prático”. Pertencem a uma categoria de intelectuais que exerce suas especializações, via de regra, sem deixar de estabelecer vasos comunicantes com a ordem vigente, os quais podem levar à confluência com concepções de mundo de classes e instituições hegemônicas. Para o filósofo francês, ao validar a ideologia dominante como eixo de autoridade e poder, tais intelectuais abdicam de qualquer sentido contestador e colocam os interesses universais a serviço de ambições particulares3.

De maneira geral, a função de tais especialistas é a de “implicitamente transmitir valores (remanejando-os, segundo as necessidades, para adaptá-los às exigências da atualidade) e de combater, quando necessário, os argumentos e os valores de todas as outras classes, argumentando com seus conhecimentos técnicos”4. As suas expertises funcionam como um biombo para tentar resguardá-los das críticas que lhes são dirigidas pela conversão às premissas do establishment.

Sartre refere-se ainda ao caráter elitista de expoentes da burguesia na sua propensão a apossar-se da palavra e da opinião na arena da sociedade civil – um âmbito de múltiplas relações de poder, lugar de disputas entre forças e grupos sociais na formação das mentalidades e na definição de agendas públicas. Esses porta-vozes intentam realçar visões que, no limite, contribuam para alicerçar as hegemonias constituídas. Para tanto, valem-se dos instrumentos de elaboração discursiva da mídia, bem como da apropriação dos significados de palavras, “em conformidade com os modos de raciocínio admitidos pela burguesia”5.

Consolida-se, em setores preponderantes dos meios de comunicação, a preferência por especialistas que, por suas trajetórias e posicionamentos, não trazem riscos de contrafação ideológica. Eles buscam construir narrativas que expliquem os fatos assumindo perspectivas afins com os interesses do mercado, das hierarquias políticas, dos grupos midiáticos e dos lobbies empresariais, alimentando a espiral de reprodução do sistema. “Portanto [o especialista] não pode ser um inquiridor notável, um questionador que traga novos ângulos à discussão ou mesmo um sólido intelectual que, com bom senso, desmistifique o glamour de determinado tema”, resume o jornalista Luís Nassif, que foi colunista e membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo6.

Não é difícil constatar, principalmente em seções de economia, o descarte de críticos do neoliberalismo em favor de analistas que priorizam o exame dos temas com as lentes das taxas de juros, do superávit primário, da rentabilidade das grandes empresas e investidores, da lucratividade em bolsas e aplicações financeiras. Para isso, utilizam abundantemente palavras e expressões caras ao léxico neoliberal: “vantagens competitivas”, “flexibilização”, “otimização”, “desoneração”, “precificação”, “gestão do negócio”, “comparativos de rentabilidade”, “racionalização de custos”, “sinergias produtivas”, etc.

Convém deixar claro que o problema em si não é divulgar o que pensam os especialistas, até porque, evidentemente, suas interpretações encontram respaldo em alguns segmentos sociais. Não fosse assim, a Fox News, pertencente à colossal News Corporation, do magnata Rupert Murdoch, não estaria liderando, há quase duas décadas, inclusive na era Donald Trump (a quem Murdoch apoiou na campanha presidencial de 2016), a concorrência entre os canais de notícias da TV paga nos Estados Unidos. Ao longo da programação diária, o elenco de âncoras e comentaristas, com indisfarçável viés conservador, se reúne em mesas-redondas sobre temas políticos e questões polêmicas (no vídeo aparece a hashtag #FoxNewsSpecialists). Lucy Dalglish, diretora da Faculdade de Jornalismo da University of Maryland, atribui o êxito do canal à falta de competição dentro do nicho em que se concentram seus espectadores fiéis: “Eles sabem como alimentar o apetite da audiência conservadora”7.

Lá como aqui, economistas do poder, da academia ou do trade financeiro são entrevistados sucessivamente em programas de rádio e televisão, jornais, telejornais, revistas e portais, a maioria deles dizendo, na essência, a mesma coisa, apenas com atalhos argumentativos próprios. Essa previsibilidade consentida põe a descoberto os mecanismos que instruem o agendamento dos convidados, nas tantas vezes em que são chamados a opinar (sem contar as reprises na televisão paga). Não passa despercebido o direcionamento de pautas que constantemente fazem reluzir a doxa neoliberal: Estado mínimo, autonomia dos mercados, ajustes fiscais, privatizações a qualquer preço, “enxugamento” de gastos públicos, cortes de investimentos sociais, supressão de direitos trabalhistas e previdenciários, etc.

Dependendo das intenções de cada programa, de vez em quando as escolhas recaem em opositores da intrusão da lógica financeirizante em todos os estágios da vida social. Resta saber em que medida essa eventual inclusão de expressões dissonantes representa uma abertura circunstancial ao pluralismo, ou se é um modo, tão-somente, de atenuar os pensamentos ratificadores, sob a aparência de contrastes.

Quando o roteiro sai do previsto – por exemplo, se foi aprovada uma lei de alcance social que contraria o receituário econômico –, não demoram a aparecer especialistas para replicar raciocínios de interdição, alertando para os “malefícios”, os “enormes custos”, os “graves riscos”, os “desequilíbrios” supostamente provocados pelas medidas. Já quando grandes grupos são favorecidos com reduções tributárias, refinanciamentos de dívidas, renúncias fiscais ou financiamentos a juros baixos em bancos públicos, a força-tarefa logo é acionada para endossar e enaltecer os “impactos positivos”, os “ganhos produtivos”, “as vantagens competitivas”.

Cresce o poder de um restrito número de jornalistas cujas posições guardam proximidade com as linhas editoriais e políticas dos veículos – ainda que possam, em parte, decorrer de outros fatores e circunstâncias. Os nomes, digamos, “confiáveis” (que não representam o conjunto diversificado da categoria profissional) dispõem de um verdadeiro arsenal de canais, aí incluídos os pertencentes a oligopólios, para disseminar seus pontos de vista e vereditos. Atuam, simultaneamente, na televisão e no rádio; assinam colunas em jornais e revistas; mantêm blogs na Internet: publicam livros e coletâneas de artigos; participam de eventos empresariais e acadêmicos; e ramificam-se em redes sociais, onde suas páginas atraem milhares e até milhões de seguidores, conforme o caso. Se várias de suas apreciações, movidas pelo convencimento ou pela rendição às regras do jogo, coincidem com as das empresas que os contratam, reforçando-as junto a leitores, telespectadores e ouvintes, temos uma pista para entender o lugar privilegiado que ocupam na cadeia produtiva. De igual modo, percebemos por que esses intelectuais midiáticos acabam tendo a oportunidade de usufruir de espaços multiplicados. A rigor, é uma troca de conveniências: à adesão ao que, de acordo com as prescrições, deve ser dito e difundido correspondem retribuições, desde altos salários a prerrogativas de prestígio e exposição no primeiro plano do palco midiático.

Pelo exposto, concluímos que as vozes autorizadas pela mídia estão longe de representar um leque de opções argumentativas. Embora seus discursos costumem remeter ao que, hipoteticamente, seria a “vontade geral”, na verdade se afiguram, em diversas ocasiões, como ecos do poder financeiro e do conservadorismo político, aos quais se ligam por interesses cruzados e complementares na batalha das ideias pela hegemonia cultural e moral.

Mesmo que ocorram nuances em certas intervenções, o fim último do trabalho ideológico-cultural da mídia hegemônica e seus epígonos intelectuais consiste em influir, na medida máxima do possível, nos modos de conhecimento dos fatos por parte do público, ou de suas frações mais suscetíveis, com as ênfases e idiossincrasias de cada veículo. O intuito subjacente é persuadir a audiência a incorporar determinados prismas de revelação da realidade, por mais imprecisos, distorcidos ou facciosos que possam ser.

Quando os mecanismos de controle da opinião se exacerbam, sobressaem a intolerância ao dissenso e o ocultamento de discordâncias legítimas que configuram a diversidade em falta. Como bem registrou George Orwell, “quem desafia a ortodoxia dominante se vê silenciado com surpreendente eficácia”8.

Notas

*Abordo aqui questões desenvolvidas em meus livros Crítica da mídia e hegemonia cultural (Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2016) e Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da comunicação (com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano, Boitempo, 2013).
1 Milton Santos, “O intelectual, a universidade estagnada e o dever da crítica”, em Dênis de Moraes (org.). Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 167-172.
2 Carlos Nelson Coutinho, “Intelectuais, luta política e hegemonia cultural”, em Dênis de Moraes (org.). Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 319.
3 Jean-Paul Sartre. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994, p. 23 e 29.
4 Ibidem, p. 23.
5 Jean-Paul Sartre. Situations, X: politique et autobiographie. Paris: Gallimard, 1976, p. 57.
6 Luís Nassif, “Os intelectuais da mídia”, Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 1999.
7 Lucy Dalglish citada por Isabel Fleck, “Canal americano Fox News aumenta influência sob Trump”, Folha de S. Paulo, 4 de julho de 2017.
8 George Orwell. Como morrem os pobres e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 223.

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Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorados na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, e no Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina). É pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e professor associado da Universidade Federal Fluminense aposentado. Foi contemplado com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente pelo Ministerio de Cultura de Cuba. Autor, organizador e coautor de mais de 30 livros, 10 dos quais editados no exterior. Pela Boitempo publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.

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