GRRR! GRRR! O que fazer com a raiva!

Por Paulo César Carbonari*, em SMDH

Martha Nussbaum, filósofa americana, autora do livro “Anger and Forgiveness” (Oxford, 2016), que se poderia traduzir por “Raiva e Perdão”, se perguntava numa entrevista dada em outubro de 2017 ao El Clarín, se estamos vivendo na “época da raiva”. Ela certamente não estava se reportando à situação brasileira, mas sua análise pode nos inspirar para entender o que se tem chamado de “cultura de ódio”, da intolerância e do fascismo social que grassa entre nós tanto nas redes sociais quanto nas ruas.

Ela reconhece que seu livro é atual visto que, “a política da raiva tem alterado o curso da história de muitas nações” entre elas incluindo os EUA e da Europa. Refere-se aos processos de agressão violenta a grupos populacionais contra os quais se produzem ações raivosas orientadas por posições não construtivas de relações sociais. Essa é a dimensão da raiva, que vem carregada do ressentimento, busca de vingança e de revanche.

Nesta linha, em grande medida o que vem sendo destilado como raiva/ódio em nossos cotidianos é parte de um forte ressentimento em razão de que privilégios históricos de classe (as médias e a elite) são questionados, ainda que não estejam efetivamente sendo retirados. A possibilidade, ainda que remota, de um pouco mais de justiça e de igualdade, e até mesmo de alguma generosidade com aqueles e aquelas cujas condições de proteção e a satisfação de suas necessidades nunca chegaram, tem sido suficiente para produzir um movimento de reação e de retorno da concentração. Inclusive para estes, é impossível admitir que qualquer avanço social, cultural ou até alguma mudança moral, sejam fruto da organização e da luta dos sujeitos em processos complexos e coletivos de enfrentamento e conflito, melhor admitir que são fruto do mérito pessoal/individual, na mais fina flor da “meritocracia” – quando não se prefere reconhecer que os avanços tecnológicos foram mais úteis para a superação das opressões do que as mudanças nas relações interpessoais, afinal, a máquina de lavar e a pílula foram mais úteis para a liberação das mulheres do que qualquer ação ou discurso feminista, se ouvirá dessas bocas!

Nussbaum também fala de uma “raiva de transição”, no sentido de uma emoção que se orienta para benefícios futuros. Isto porque a raiva pode servir de sinal de que algo não está bem, mobilizando as pessoas da inércia diante de realidades inadequadas. Martin Luther King, segundo ela, “entreviu na raiva uma motivação essencial para o trabalho de correção das injustiças sociais”, já que “somente a raiva impulsiona o povo a mover-se”. Lembra que ele alertava, porém, que este sentimento precisa ser “purificado” para retirar dele o “aspecto perigoso enquanto desejo de revanche”. Assim, a raiva aponta futuro na medida em que mobiliza ao protesto, mas se não estiver eivada pelo desejo de revanche. Este é um tipo de raiva que talvez se aproxime muito da “justiça messiânica” e da “virtude” aristotélica.

A raiva (ira/cólera) é “meio-termo” e tem a “a excelência característica da virtude” quando sentida “[…] na ocasião apropriada, com referência aos objetos apropriados, para com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira conveniente” (Aristóteles, Ética a Nicômacos, 1106b20). Daí porque, “louva-se o homem que se encoleriza justificadamente com coisas ou pessoas e, além disso, como deve, na devida ocasião e durante o tempo devido” (1125b30). Não encolerizar-se seria uma deficiência, pois: “[…] os que não se encolerizam com as coisas que deveriam excitar sua ira são considerados tolos, e da mesma forma os que não o fazem da maneira apropriada, na ocasião apropriada e com as pessoas que deveriam encolerizá-los” (1126a5). Agir assim seria o mesmo que ser insensível, próprio dos tipos incapazes de se defender. O contrário seria ser irascível (1126a15), birrento (1126a20) ou mal-humorado (1126a25), agindo por excesso. A virtude está no meio-termo, ou seja, no uso virtuoso da raiva: trata-se de encolerizar-se com as pessoas e coisas devidas, da maneira devida, na ocasião e no tempo devido. Recolhemos desta abordagem de Aristóteles a ideia de que o problema não é ter raiva, mas é ter raiva de modo virtuoso.

O que assistimos na situação contemporânea entre nós de modo cada vez mais enfático nas práticas intolerantes e fascistas aponta não para uma raiva na justa medida, ou para a raiva justa, no sentido da necessária raiva contra a injustiça, a raiva mobilizadora da luta pela superação da injustiça. O que se assiste é a uma raiva excessiva, irascível, birrenta e mal-humorada. Uma raiva destrutiva, excludente, injusta!

O apelo ao razoável é difícil de ser feito a quem age de modo excessivo. O irascível, o birrento e o mal-humorado tem dificuldade de receber uma resposta razoável, virtuosa. Ainda assim, é recomendável a quem luta contra todas as injustiças inclusive contra o uso excessivo da raiva que não use excessivamente a raiva e nem deixe de usá-la, mas que a use na medida certa.

Saber qual é a medida certa é uma construção que se faz como prática virtuosa. Ou seja, não há como saber de antemão nem o que e nem como fazer, necessário é estar atento à sabedoria prática que assiste ao sujeito ético e lhe orienta a tomar as decisões certas, na hora certa. Traduzindo, não há garantias prévias e nem absolutas de que fazendo desta ou daquela maneira, fazendo da mesma maneira como se fez em outros momentos, seja o modo a fazer noutra situação. O certo é que não se poderá agir com os mesmos meios que se quer combater. Ou, dito de outro modo, ter raiva virtuosa ou de transição é uma necessidade para combater a raiva excessiva, destrutiva, injusta e excludente, tão comum e inadequada.

Vivamos a raiva na medida certa, na justa medida, contra quem deve ser sentida; ou ao menos nos vacinemos contra transmissores das suas versões excessivas. E o voto virtuoso, feito com a raiva na medida certa é uma boa vacina para proteger-se e para ajudar a proteger àqueles/as que não entendem ser ela necessária ou que se perderam nos descaminhos do excesso de raiva!

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* Doutor em filosofia (Unisinos) e professor de filosofia (IFIBE), militante de direitos humanos (CDHPF/MNDH)
El Clarín, Revista Ñ, em 13/10/2017. Disponível em www.clarin.com/revista-enie/ideas/vivimos-epoca-rabia_0_SyTRKDahW.html. Tradução livre nossa.

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