Apesar das dificuldades, de não entendermos como chegamos aqui, de termos um futuro indefinido, há algo de imponderável e feliz. Algo que ninguém pode nos tirar. Esta imensa potência de resistir.
Por Edson Teles, no Blog da Boitempo
Quando eu tinha quatro anos de idade fui levado para uma sala de tortura da ditadura.
Como já contei em outras oportunidades, isso ocorreu entre o fim de 1972 e início de 1973. O país se encontrava com quase nove anos de regime militar. A tortura, o assassinato e o desaparecimento de pessoas, opositores do governo ou não, era a prática do Estado brasileiro.
A sala devia ter um tamanho reduzido. Para mim, cabia o mundo dentro dela. Tinha uma pequena mesa, duas cadeiras, talvez um instrumento de choque, ou uma palmatória. Não me recordo de detalhes. Truques das memórias traumáticas. Nem tudo permanece nas lembranças.
Mas há algo que não dá para esquecer. Eu, junto com a Jana, minha irmã de cinco anos, fui conduzido pelas mãos por um adulto. Não o conhecia. Quando adentramos a sala, aquela pequena estrutura de danificar corpos, logo entendi que aquele homem não era bom. O olhar de minha mãe e de meu pai para ele é de difícil descrição, mas de fácil compreensão.
Este adulto era o major Tibiriça, nome falso, como falsas eram as narrativas da ditadura. Seu nome verdadeiro era Carlos Alberto Brilhante Ustra. Sim, o herói do candidato que defende liberação as armas, odeia negros e pessoas homoafetivas, acha que as mulheres são seres inferiores.
Lá dentro, além dos olhares angustiados de nossos pais, me deparei com corpos desfigurados. Nos primeiros instantes não pude reconhecê-los, mas tão logo minha mãe me chamou pelo nome percebi que aqueles corpos me eram familiares.
Por alguns dias fomos levados para o centro clandestino de tortura do Exército, o DOI-Codi da rua Tutoia, em São Paulo. Durante seis meses ficamos sem comunicação com os pais, ou com qualquer familiar que conhecêssemos. Diziam que Cesar e Amelinha nos haviam abandonado. Para mim, dentre todas aquelas cenas, as que mais me perturbavam eram as do abandono.
Por vezes, na casa do delegado onde moramos nos meses seguintes, perguntava novamente sobre meus pais. Mesmo com a sequência dos dias insistindo em confrontar meus afetos, eu resistia em aceitar a versão de que nossos pais não mais nos quisessem. Por outro lado, não compreendia o que estava acontecendo.
Resisti, ainda que sem entender.
Minha tia, Crimeia, foi a primeira a sair da prisão. O Joca, meu primo, poucos meses antes nascera nas dependências do Exército, em Brasília. Ambos, mãe e filho, esse ainda em gestação, foram torturados.
De antes da prisão lembro-me da barriga enorme dela. Já sabíamos que no seu ventre ela carregava nosso primo. Estávamos felizes com a sua iminente chegada.
Jurada de morte pelos militares por ter sido guerrilheira do Araguaia, Crimeia, de certo modo, foi salva pelo imponderável: a vida recém-nascida do Joca. De algum modo, a informação sobre a chegada dele em um hospital do Exército vazou e a Anistia Internacional denunciou o caso no exterior. A vida resistiu à morte.
Num dia de quase inverno a Crimeia apareceu naquela casa. Ela pode dar um pequeno passeio conosco até uma pracinha próxima. Contou-nos a verdade. Nossos pais não nos haviam abandonado, mas estavam presos.
Após mais algumas visitas ela nos resgatou. Fomos viver com nossos avós, ela e, depois de 11 meses, novamente com nossa mãe.
Meu pai ainda ficaria alguns anos preso. Foi acusado de fazer jornais subversivos, com ideias e opiniões contrárias à ditadura. Crime grave para quem tem o ódio como afeto principal. O mesmo que nos dias atuais tem produzido agressões e mortes contra pessoas com opiniões diferentes, ou que portam algum símbolo de outros candidatos.
Apesar das dificuldades, de não entendermos como chegamos aqui, de termos um futuro indefinido, há algo de imponderável e feliz. Algo que ninguém pode nos tirar. Esta imensa potência de resistir.
#EleNão.