Para controlar demarcações, bancada ruralista quer mudar de novo o Estatuto do Índio

De interesse dos ruralistas, medida fragiliza direitos e fere Convenção 169, da OIT, sobre consulta prévia aos povos

Cristiane Sampaio, Brasil de Fato

Passadas as eleições, os direitos indígenas voltaram ao centro dos ataques da bancada conservadora na Câmara dos Deputados. Uma proposta que pode inviabilizar o reconhecimento dos territórios dessas comunidades pode ser votada em breve na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.

É o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que altera o Estatuto do Índio, datado de 1973, para estabelecer que as terras indígenas sejam demarcadas por meio de projetos de lei no Poder Legislativo, não mais pelo Poder Executivo, como ocorre atualmente.

A medida é uma espécie de simplificação da polêmica Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que também transfere do Executivo para o Legislativo a responsabilidade sobre a demarcação e não pode ser votada atualmente por conta da intervenção federal vigente no estado do Rio de Janeiro.

É que, pelo artigo 61 da Constituição Federal, o Congresso Nacional não pode votar PECs enquanto o país estiver sob intervenções como a incursão militar no RJ.

Orquestrado pela bancada ruralista, o PL 490 tramita de forma conjunta com outros 11 projetos de conteúdo semelhante, tendo como relator o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), um dos nomes que chegaram a ser cogitados por Jair Bolsonaro (PSL) para comandar futuramente o Ministério da Agricultura.

Ao apresentar parecer sobre a medida, o ruralista propôs a rejeição do PL 490 e sugeriu, por meio de um substitutivo, um conjunto de dispositivos. Entre eles, estão a facilitação para realização de obras e exploração de recursos em terras indígenas e a retirada do direito de consulta aos povos originários.

No relatório, o deputado aponta que as medidas estariam dentro das normas constitucionais, jurídicas e técnico-legislativas, mas opositores destacam o contrário.

Este último ponto, por exemplo, fere a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual os povos tribais e indígenas precisam ser previamente ouvidos sobre eventuais medidas administrativas e legislativas que tenham potencial para afetá-los diretamente.

Para Valéria Paye, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a agilidade que os ruralistas tentam dar ao trâmite do projeto de lei se relaciona com a eleição de Bolsonaro, associada ao contexto político nacional de avanço conservador.

“Com esse governo eleito, a gente tende a enxergar como algo que antes era uma ameaça, mas hoje é real. É a nossa perspectiva de análise”.

Apresentado em maio deste ano, o parecer de Goergen está pronto para ser votado na CCJ, que tem como função avaliar a constitucionalidade das matérias legislativas. Caso seja aprovada no colegiado, a proposta segue para o plenário da Casa.

Além do relatório, os parlamentares da comissão deverão avaliar o voto em separado dos deputados Chico Alencar (Psol-RJ) e Ivan Valente (Psol-SP), que apontam a inconstitucionalidade da proposta e pedem a rejeição do PL.

Alencar ressalta que o projeto fere o capítulo da Constituição que protege os direitos indígenas, com destaque para as terras, a cultura e a identidade das comunidades.

“Esse projeto é muito nefasto, muito ruim. Nós vamos combatê-lo e esperamos que ele não prospere na CCJ”, ressaltou o parlamentar.

Marco temporal

Outro aspecto do relatório apontado como ameaça aos povos tradicionais é a inserção da tese do chamado “marco temporal” no Estatuto do Índio. Essa teoria considera que as comunidades só podem ter direito à demarcação de um território se comprovarem que ele estava sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal.

A tese foi utilizada pelo Supremo na ocasião do julgamento sobre a terra indígena Raposa Terra do Sol, em Roraima, em 2009. Os indígenas destacam, no entanto, que a decisão é específica para o caso e por isso não tem caráter vinculante. Isso significa que ela não gera necessariamente um efeito cascata sobre as demais decisões.

A líder indígena Sônia Guajajara considera preocupante o avanço dessa teoria. Ele destaca ainda que, além das propostas legislativas que tratam da aplicação do marco temporal, as comunidades lutam contra medidas dos outros poderes que também recuperam a questão.

É o caso do Parecer 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), que transforma a tese político-jurídica em regra. O dispositivo tem sido uma das marcas do governo Michel Temer (MDB) em relação aos povos originários.

“São os Três Poderes juntos pra fortalecer essa ideia de estabelecer 1988 como ano-base pra demarcação de terras indígenas. Isso é muito perigoso, muito grave porque desconsidera toda a tradicionalidade, o direito originário aos territórios”, afirma Sônia.

Meio ambiente

A tramitação do PL 490 é acompanhada com atenção no Legislativo também por organizações que atuam em defesa do meio ambiente, como a ONG Instituto Socioambiental (ISA).

O advogado Maurício Guetta, um dos porta-vozes da entidade, afirma que a fragilização dos direitos indígenas atinge diretamente os recursos naturais porque os povos originários têm papel fundamental na proteção de florestas, matas e rios, entre outros.

“As terras indígenas são as áreas mais protegidas do mundo. Inclusive, todos os estudos científicos que analisam essas terras e a sua proteção ambiental colocam claramente que elas superam e muito as unidades de conservação, os parques, estações ecológicas. Uma proposta que pretende impedir demarcações e, eventualmente, até rever outras, certamente é uma ameaça pro meio ambiente”.

Edição: Diego Sartorato.

Foto: Laycer Tomaz / Câmara dos Deputados

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