No blog do Sakamoto
Uma das prioridades de Luiz Antônio Nabhan Garcia, que assumirá a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do governo Jair Bolsonaro, será – segundo ele – atuar para acabar com as ”invasões” de terras.
Presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan tem um longo histórico de conflitos com os sem-terra no Pontal do Paranapanema, no Oeste paulista. Não admira, portanto, que aponte para o MST como vilão a ser combatido para garantir o desenvolvimento rural e a paz no campo.
Contudo, as propriedades improdutivas ocupadas pelo movimento com o objetivo de pressionar pela reforma agrária não são páreo para o total de áreas, historicamente, griladas por latifundiários no país. Terras que pertencem ao patrimônio público e que são usadas para a produção animal ou agrícola e a extração vegetal e mineral. Há municípios da Amazônia Legal que, para contemplar todos os títulos falsos de terra presentes em cartórios em sua área, teriam que ser três, quatro vezes maiores.
No Brasil, protestos contra fazendeiros que grilam terras ou ocupam territórios indígenas e quilombolas são recebidos à bala enquanto tentativas de retirá-los de lá são negadas, não raro, pela Justiça – que ordena a desocupação de sem-terras de fazendas erguidas sobre grilagem.
Isso sem contar que políticos que defendem a alteração da lei para considerar ”terrorismo” a ocupação de imóveis rurais e urbanos por sem-terras e sem-tetos são os mesmos que comemoram a aprovação de anistias para grandes invasores de terras.
Como a medida provisória transformada na lei 13.465/2017 pelo Congresso Nacional e sancionada por Michel Temer que estabelece novas regras para a regularização fundiária urbana e rural e trata de grilagem a partir de áreas da União. Através dela, tornou-se possível regularizar o roubo de terras públicas de até 2,5 mil hectares, pagando apenas uma pequena parte do seu valor real. Cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) apontam que essa ”regularização” significa perda de cerca de R$ 20 bilhões somente na Amazônia.
O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5771, pedindo ao Supremo Tribunal Federal que suspenda a lei. De acordo com a ação, que está em trâmite, ela elevará o número de mortes em razão de conflitos fundiários. De acordo com Janot, a medida ”autoriza transferência em massa de bens públicos para pessoas de média e alta renda, visando a satisfação de interesses particulares, em claro prejuízo à população mais necessitada”.
Mas isso não é o bastante e alguns ruralistas querem mais. Desejam mudar as regras da demarcação de territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, ”flexibilizar” as regras de licenciamento para a implantação de grandes empreendimentos, ampliar a anistia para grilagem, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo. Querem liberar geral – lembrando que, neste caso, a redução da presença do Estado significa aumento no número de mortes e desastre ambiental.
Esse processo já está em curso a bem da verdade. O ano passado foi o mais violento no campo desde 2003. De acordo com o levantamento anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 70 assassinatos em conflitos foram registrados.
Antes que alguém questione que isso não é nada comparado à outra tragédia (os 6.731 óbitos de forma violenta no Estado do Rio de Janeiro, em 2017), vale considerar que Altamira (PA), base para a construção da hidrelétrica de Belo Monte e de um sem-número de violações aos direitos de trabalhadores e povos do campo, apresentava 107 mortes para cada 100 mil habitantes segundo o Atlas da Violência 2017, do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa no Rio, no ano passado, foi de 40 mortos para cada 100 mil habitantes. Ou seja, se o Estado do Rio operasse com a mesma taxa de violência, teriam sido mais de 18 mil mortos em 2017.
Os assassinatos no campo são resultado de um modelo de desenvolvimento concentrador, excludente, que privilegia o grande produtor e a monocultura, em decorrência ao pequeno e o médio. Modelo que foi incentivado durante a ditadura civil-militar e teve continuidade inclusive nos governos petistas.
Que superexplora a mão de obra, chegando, no limite, à escravidão contemporânea, a fim de facilitar a concorrência em cadeias produtivas cada vez mais globalizadas. Que pouco se importa com o respeito às leis ambientais, porque o país tem que crescer rápido, passando por cima do que for. Que divide o espólio da corrupção e do desvio de recursos públicos ou royalties milionários pagos a municípios pobres. E, claro, que fomenta a grilagem de terras e a especulação fundiária, até porque tem muita gente graúda que se beneficia com as terras que griladas, esquentadas ou regularizadas e disponibilizadas para a comercialização.
Tudo com a nossa anuência, uma vez que consumimos os produtos que vêm de lá alegres e felizes sem nos perguntar sobre o que aconteceu em sua longa cadeia produtiva.
De acordo com a CPT, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), os assassinatos de sem-terra, indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores, assentados, entre outros, tiveram um crescimento brusco a partir de 2015. No ano passado, o Pará registrou 21 assassinatos – sendo que dez apenas no Massacre de Pau D’Arco. Rondônia, Bahia, Mato Grosso, Maranhão e Amazonas completam a lista dos seis estados mais mortais. Das 70 mortes, pelo menos 28 ocorreram em massacres.
Com louváveis exceções, como a de magistrados com coragem de condenar escravagistas ou de procuradores que não dão trégua a quem mata e desmata ilegalmente, a Justiça tem servido para proteger o direito de alguns mais ricos e de grandes empresas brasileiras e estrangeiras envolvidas nessas cadeias. Afinal, a Amazônia não foi ”internacionalizada” por ONGs, mas por multinacionais que dominam os escoamento de seus produtos, por exemplo.
Os governos Dilma, Lula, Fernando Henrique, Itamar, Collor e Sarney não mexeram no modelo de exploração do campo, sendo corresponsáveis pelas tragédias que ocorreram sob seus mandatos. O governo Temer, que pregou a Ponte para o Futuro, construiu um Viaduto para o Passado, ajudando a preparar terreno para alguém nos levar de volta aos anos 60 e 70 – quando a ocupação violenta da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal contava com a anuência do Estado. O governo Bolsonaro agradece. Afinal, a presença de Nabhan Garcia para cuidar dos assuntos fundiários, pode acelerar a velocidade do rolo compressor, que, com muito sacrifício, estava sendo freado lentamente há alguns anos.
Mortes no campo não são de hoje, mas há muitos produtores rurais e extrativistas gananciosos que estão com sangue nos olhos neste momento. Fortalecidos pelas alianças políticas que fizeram, veem no atual e, principalmente, no próximo governo federal aliados para suas demandas.
Seria ótimo ver Nabhan lutando contra os grileiros de terras públicas. E parafraseando a si mesmo. Pois a sua declaração – ”se o MST está preocupado, tem que se preocupar mesmo, porque tem que parar de invadir propriedade” – poderia se transformar em ”se há latifundiários preocupados, tem que se preocupar mesmo, porque tem que parar de invadir propriedade”.
”Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”? Não. O lema do próximo governo será ”Ideológicos são os Outros”.
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Image: Samuel Bono/Repórter Brasil