O passado e o futuro por meio da cerâmica Baniwa

Em oficina, mestres ceramistas e jovens aprendizes trocam conhecimento sobre as pinturas tradicionais das peças

por Natalia Pimenta, com colaboração do Thiago Oliveira e Adeilson Lopes, em ISA

De 5 a 11 de novembro, a comunidade São Joaquim do Rio Ayari, localizada na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), sediou o II Encontro de Ceramistas da União das Mulheres Indígenas do Rio Ayari (Umira). O objetivo do evento foi compartilhar o conhecimento da arte de produção da cerâmica branca feita pelas mulheres Baniwa do Alto Rio Negro entre mestres ceramistas e jovens aprendizes, valorizando os grafismos tradicionais baniwa empregados nos artefatos cerâmicos.

Além da coloração clara, a cerâmica produzida pelas mulheres Baniwa da região possui uma grande diversidade de padrões gráficos de coloração vermelho-alaranjado, que enfeitam cada uma das peças, confeccionadas para as mais distintas finalidades. Entretanto, muitas das jovens baniwa relatam não conhecer as pinturas tradicionais. Muitas sequer dominam as etapas do longo processo de obtenção de materiais e confecção das peças.

Esse e outros desafios relativos à produção de cerâmica na região do Rio Içana e Ayari já haviam sido levantadas pelas ceramistas da Umira na primeira reunião de mulheres para discutir o tema em 2007. De acordo com as mestras ceramistas que ainda vivem nas comunidades da bacia do Içana, a cerâmica deixou de ser cotidianamente usada no momento em que as panelas de metal começaram a chegar em suas casas. Essa mudança de hábitos nas cozinhas baniwa provocou uma ruptura na transmissão do conhecimento sobre a arte de produção de cerâmica branca e o domínio sobre as pinturas foi quase completamente esquecido”Hoje os espaços como esse são importantes para nós adolescentes, por que nascemos e vivemos com utensílios de cozinha industrializados, não temos oportunidade de aprender estes conhecimentos em nossas casas com nossa família”, afirma Gracimar Lopes.

Para reverter este cenário, em 2014, um grupo de conhecedores e ceramistas baniwa, representadas por Nazária Fontes, Carolina Andrade e Maria de Lima, tiveram a oportunidade de visitar o acervo etnográfico do Museu do Índio para conhecer as peças produzidas antigamente na região do Içana. A atividade coordenada pelo antropólogo Thiago Oliveira teve como objetivo colocar as mulheres em contato com as mais de 100 peças recolhidas por colecionadores que estiveram na região do Alto Rio Negro ao longo do século XX, como Gastão Cruls e Eduardo Galvão, que reuniram expressivas coleções de cerâmica nos anos 1950.

A visita esteve centrada no reconhecimento das formas dos objetos e no registro dos padrões gráficos na cerâmica baniwa, tendo em vista a recuperação do vocabulário gráfico e de outras informações resguardadas nesses artefatos. A visita foi seguida de uma oficina de produção de uma nova coleção para o Museu do Índio, realizada ainda em 2014, que reuniu mais de 100 novas peças e possibilitou o contato com a cadeia produtiva da cerâmica para cerca de dez ceramistas reunidas em São Joaquim, Médio Ayari.

A partir da visita ao Museu do Índio as mestras ceramistas retomaram as pinturas cerâmicas, mas faltava que as mais jovens conhecessem os significados das pinturas. Então, através da rede de pesquisadores indígenas da bacia do Rio Içana (iniciativa do ISA e FOIRN) foi organizado um encontro entre ceramistas, conhecedores locais e pesquisadores indígenas com o objetivo de desenvolver os conhecimentos relativos às técnicas de elaboração dos padrões gráficos tradicionais da cerâmica branca, e também debater os desafios para a comercialização desta produção em escala regional e nacional.

“Vocês, jovens, têm que praticar este conhecimento com ânimo para valorizar o nosso trabalho e a nossa história. Agradeço aos que incentivam a nossa iniciativa”, diz Genezia da Silva, mestre ceramista.

O encontro contou com a presença de 12 pesquisadores indígenas e 26 ceramistas de dez comunidades localizadas no Rio Ayari e seus afluentes. O grupo de ceramistas, constituído por 11 jovens aprendizes, de até 29 anos, seis ceramistas experientes, de 30 a 40 anos e 10 mestres ceramistas, com mais de 40 anos, resultou do esforço de mobilização de Nazária Fontes (Baniwa, do clã Hohodene) que é ceramista e atual presidente da Umira.

“A oficina trouxe fortalecimento e valorização das práticas de conhecimentos das nossas cerâmicas e grafismos originários. Com iniciativas de produção reconhecemos a nossa própria identidade cultural”, diz Nazária Fontes.

A cerâmica branca e a cerâmica preta

A cerâmica branca produzida pelas mulheres Baniwa é a marca da cultura material dos povos Arawak. As peças brancas com pinturas alaranjadas contrastam com a cerâmica preta e pinturas em negativo produzidas pelas mulheres dos povos Tukano, com as quais os Baniwa e outros diversos povos indígenas compartilham o território do Alto Rio Negro na fronteira do Brasil com a Colômbia.

Apesar da cerâmica branca ser produzida exclusivamente pelas mulheres baniwa da bacia do Rio Negro, a cerâmica preta enegrecida por esfumaçamento não é estranha ás ceramistas Baniwa. A técnica de acabamento da cerâmica preta, que impermeabiliza a peça, é também empregada na região do Rio Içana e Ayari (território Baniwa), especialmente em panelas usadas para o cozimento de alimentos.

O antropólogo Thiago Oliveira (Museu do Índio) sugere que esta técnica de produção de cerâmica decorada por meio do esfumaçamento pelas mulheres baniwa seja uma evidência do intercâmbio promovido pelo casamento entre os Baniwa do Rio Ayari com os Wanano e Kubeu do Uaupés, cujas mães e avós são de origem Tukano Oriental (“Os Baniwa, os artefatos e a cultura material no Alto Rio Negro” – Oliveira, 2015).

Cerâmica cerimonial

A cerâmica branca produzida pelas mulheres baniwa possui acabamento vitrificado produzido por meio do uso de resinas vegetais, seja o arbusto oomapihitako, seja a seiva do jutaí, wakhamaali, planta da família do jatobá. Esta resina funciona como verniz, protegendo a peça como um todo do desgaste provocado pelo uso. Ela é aplicada após a queima da peça, por meio de um cuidadoso aquecimento. A pintura – grafismos geométricos aplicados no interior ou exterior dos potes de acordo com o tipo e o uso – é feita antes da queima, quando a peça ainda possui um aspecto cinza, da cor da massa cerâmica composta de argila (encontrada em raros depósitos espelhados pela região do Aiari) e a casca do caraipé (kawa, em baniwa).

A decoração é feita com um pigmento resultado da mistura de uma argila amarela chamada eewa, em baniwa, com um líquido ácido, que pode provir do caldo de mandioca amarga (manicoera), do suco de limão ou do suco do cubiú. Oliveira acredita que o uso deste caldo permita a oxidação do pigmento durante a queima, o que resulta na transformação da sua cor inicialmente amarela em uma tonalidade vermelha-alaranjada durante o processo da queima das peças.

Este tipo de cerâmica, rica em ornamentação gráfica, é reservada para uso cerimonial, sobretudo em rituais como o dabucuri (poodali) e o ritual de iniciação (kowaipan). Durante o dabucuri são ofertados alimentos e artefatos aos convidados como sinalização de boa estima, enquanto nos rituais de iniciação são ofertados alimentos benzidos (kalidzamai) aos homens e às mulheres que saem de um longo jejum realizado durante o resguardo ritual. Em ambas ocasiões, os alimentos e bebidas são servidos nestas cerâmicas cerimoniais apresentadas em forma de tigelas (akhepa, paratto, mapoapi), bilhas (tsolooda), taças (kérapi e kérapi dzamaapi peeri) e moringas (kaphiaroda).

A cerâmica e o trançado, ambos usados nas cerimônias de iniciação e ofertados nos dabucuris, se encontram também em diversos momentos do cotidiano das mulheres baniwa. Na cozinha, as tigelas recolhem o suco da mandioca extraído com o tipiti, o abano serve de base para tirar o beiju feito no forno, a peneira separa a massa de mandioca que, torrada no forno de barro, se transforma em farinha.

Entretanto, a produção de artefatos trançados a partir da fibra de arumã (Ischonospihon spp.) é uma atividade de compete aos homens. Essa complementariedade, há muito conhecida pelos Baniwa, incentivou os homens que acompanhavam suas esposas e filhas durante o encontro na comunidade São Joaquim do Ayari a irem em busca de arumã (em baniwa, poapoa) para a confecção de cestos, balaios, aturás e abanos que pudessem acompanhar as peças cerâmicas produzidas pelas mulheres.

Ao final de seis dias de atividades conjuntas, foram produzidas quase 100 peças de cerâmica branca pelas mulheres baniwa do Rio Ayari. Porém, cerca de 400 km de rio e pedras separam as produtoras do centro comercial mais próximo. No percurso, há seis cachoeiras a serem enfrentadas até a chegada a sede do município de São Gabriel da Cachoeira, implicando na necessidade de descarregar e recarregar o bongo (canoa grande) que transporta os objetos.

Garantir a integridade das peças é o primeiro desafio na comercialização da cerâmica produzida em uma das regiões mais ermas do Brasil.

Desta vez, as peças chegaram intactas graças ao zelo das produtoras no embalo das cerâmicas. Em São Gabriel da Cachoeira, a produção foi encaminhada a loja Wariró – Casa de Produtos Indígenas do Rio Negro, gerida pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), à qual a Umira é filiada. Em Manaus também será possível conferir uma amostra da produção de artesãos e artesãs baniwa na Galeria Amazônica.

Segundo Nazária Fontes, iniciativas como esta ajudam no fortalecimento da cadeia produtiva da cerâmica, que representa uma forma de viabilizar a autonomia das organizações indígenas na gestão de iniciativas de geração de renda para as mulheres baniwa.

Esta e outras atividades para fortalecer a cadeia do artesanato rionegrino, em especial a da cerâmica baniwa, vem recebendo o suporte do projeto “Territórios da Diversidade”, uma iniciativa do ISA e da FOIRN, com apoio da União Europeia. Até 2020, o propósito será facilitar a gestão e a operação de infraestruturas de produção e comercialização dos objetos tradicionais de vários povos do Rio Negro, dentre os quais a cerâmica ocupa lugar de grande destaque.

Padrões gráficos da cerâmica Baniwa

A decoração com padrões gráficos é uma característica de diversos objetos produzidos na região do Alto Rio Negro. Cestos, instrumentos musicais, raladores, paredes das malocas e, claro, a cerâmica, recebem este tratamento tanto entre os povos Tukano quanto entre os povos Arawak. Estes desenhos têm ligações diferentes com seus referentes, ora representam a pegada de um pássaro, ora apontam para o movimento circular das águas ou o vôo das borboletas. Por vezes, contudo, alguns deles possuem apenas nomes próprios que não estão relacionados a nenhum referente fora do universo gráfico, como os padrões mais comumente observados nas cerâmicas baniwa, aqueles que recebem o nome de diakhe e ashaipa.

Foto: Nazária Fontes (Baniwa), presidente da Umira, apresenta peças produzidas durante I encontro de ceramistas da Umira, novembro de 2018 | Natália C. Pimenta

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