A MP 870 e o programa inconstitucional para os povos indígenas. Por Julio José Araujo Junior

No Jota

Os primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro vêm indicando um firme compromisso de levar a cabo algumas promessas de campanha quanto aos povos indígenas. Logo no primeiro dia de governo, a edição da Medida Provisória (MP) nº 870 começa a materializar os primeiros passos na execução de um programa inconstitucional para os povos indígenas. Ela transfere as competências administrativas de demarcação, delimitação, reconhecimento e identificação e titulação das terras indígenas, que antes cabiam à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (art. 21, XIV c/c § 2º). Além disso, o governo indicou que pretende transferir a demarcação de terras a um conselho de ministros, de diversas áreas1.

Não bastasse o fato de a restrição de demarcações de terras indígenas não ter o apoio da maioria da população, como demonstrou pesquisa recente do Datafolha2, o êxito eleitoral não pode ser encarado como um passe livre para o sacrifício de direitos fundamentais. Por isso, a MP provocou forte oposição do movimento indígena e de importantes setores da sociedade. Por exemplo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) apresentou representação à Procuradoria-Geral da República (PGR), na qual destaca que o ato normativo carece de lógica administrativa e possui desvio de finalidade, uma vez que a medida atenderia ao lobby da bancada ruralista e colocaria interesses privados acima dos interesses coletivos dos povos indígenas3.

Sabe-se que o discurso anti-indígena não é novo. Certas pré-compreensões e alegações já foram adotadas em outros períodos da história do Brasil, notadamente na ditadura civil-militar, e apareceram com força durante a Constituinte de 1987/1988. Revisitar o momento da elaboração da lei fundamental brasileira é mais do que um exercício de interpretação histórica, pois não só permite compreender os interesses envolvidos, os consensos, os avanços e os retrocessos na nossa trajetória democrática, mas também as disputas atuais de significados com vistas a superar, pela mutação constitucional ou por tentativas de reforma – mesmo por meio de propostas inconstitucionais -, os compromissos à época estabelecidos.

No caso dos povos indígenas, muitos dos temas discutidos nos vinte meses da Assembleia Constituinte continuam sendo aventados no presente, como o tratamento dos índios como seres tuteláveis e potenciais adversários da soberania nacional ou do desenvolvimento econômico. A afirmação identitária que a Constituição propiciou fez emergir, nos últimos trinta anos, uma contestação ainda maior à demarcação de terras indígenas, e as forças conservadoras passaram a dispensar ao tema uma contrariedade similar à oposição que destinaram à reforma agrária em 1988, tentando retomar temas derrotados nos debates que envolveram a formulação do texto.

Esse esforço, porém, é inglório. Afinal, a Constituição de 1988 foi verdadeiramente transformadora ao consagrar o caráter plural da sociedade brasileira e sepultar o paradigma assimilacionista antes vigente, que teima em ressuscitar. A atual ordem constitucional repudia o racismo e enfatiza a autonomia desses povos, com respeito a seus modos de vida, costumes, tradições e mediante o reconhecimento das terras que tradicionalmente ocupam.

Ao assegurar os direitos indígenas por todo o texto e quebrar hierarquias entre seres e saberes, a Constituição constitui, de certa forma, um caminho de transformação sem volta. Não se pretende com esta afirmação engessar a interpretação constitucional, mas apenas observar que certas visões, de caráter assimilacionista, não encontram respaldo na lei fundamental e não podem acarretar a mudança do texto constitucional, em razão da própria limitação material ao poder de reforma.

Por conseguinte, os índios não podem ser mais tratados como seres inferiores, incapazes, não civilizados, possuidores de saberes menos importantes ou pessoas obrigadas a encararem a vida da maneira que os brancos enxergam. Essa não hierarquização vai além do discurso, devendo abranger toda e qualquer questão, inclusive as próprias formas de interpretar a Constituição. As visões que coloquem outros bens jurídicos em patamar superior aos interesses indígenas ou que confiram menor status aos saberes, práticas, seres e modos de vida dos indígenas em nome de um “interesse nacional” são, além de racistas, inconstitucionais.

A leitura sistemática da Constituição, associada ao capítulo específico destinado aos direitos indígenas, é dirigente de um enfrentamento do passado colonial e da superação de suas feridas, cabendo ao intérprete extrair a máxima efetividade das normas constitucionais a partir de uma postura de ruptura quanto à naturalização do racismo, do genocídio e da inferiorização dos índios na sociedade brasileira. No projeto constitucional, impõe-se a recuperação de memórias reprimidas ou esquecidas, para a valorização das culturas indígenas4.

O art. 231 da Constituição é o artigo-símbolo da concretização de direitos territoriais indígenas. Ele impõe ao Estado diversos deveres, tanto os de abstenção, proibindo a intervenção não constitucionalmente fundamentada, como o de atuação proativa em prol de sua concretização. No caso da demarcação, a intervenção estatal é uma ação que densifica o direito, por meio da identificação e delimitação formais dos territórios que já foram previamente reconhecidos pelo texto constitucional.

Deve-se acrescentar também a existência de uma dimensão organizacional e procedimental da terra indígena. A efetivação dos direitos territoriais indígenas depende de mecanismos que possam concretamente converter o texto constitucional em realidade. Sem a adoção de determinados procedimentos e organizações, os direitos “materiais” dificilmente sairão do papel, razão pela qual os aspectos procedimentais gozam de especial relevância e caráter jusfundamental5. As perspectivas organizacional e procedimental estão relacionadas com os deveres de proteção do Estado, já que se conectam à criação e estruturação de órgãos responsáveis pela demarcação de terras indígenas, com recursos adequados e suficientes, a adoção de procedimentos de identificação e delimitação e o estabelecimento de regras e mecanismos administrativos e judiciais que afastem qualquer violação ao direito.

Nesse contexto, o procedimento de demarcação exige capacidades institucionais próprias de órgãos do Executivo e pressupõe uma análise primordialmente técnica, voltada a uma decisão controlável que esteja vinculada ao estudo da terra indígena, e não submetida à conveniência e oportunidade do gestor6. Para tanto, a FUNAI foi estruturada – ainda que de modo não ideal – para desempenhar um papel técnico de análise das reivindicações territoriais, por meio da interação entre diversos campos de conhecimento e da tradução intercultural das demandas indígenas, observado, nos termos do Decreto nº 1.775/967, o direito ao contraditório e à impugnação, com apreciação pelo Ministério da Justiça.

Ao retirar o tema da alçada da FUNAI e transferi-lo ao Ministério da Agricultura, com a indicação de que a decisão seria tomada por um conselho de ministros, o governo federal tentará fazer do processo demarcatório uma arena de possíveis acomodações entre as áreas do governo federal, deixando de lado a apreciação por órgãos dotados de expertise no tema. Na prática, a medida pode representar, por linhas tortas, a viabilização do que está contido na inconstitucional Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 215, que almeja transferir ao Legislativo a competência para as demarcações, colocando-se a definição formal de terras indígenas no campo exclusivamente político e majoritário, em detrimento dos interesses de uma minoria étnica.

Diante da conformação constitucional da matéria, pode-se concluir que a Medida Provisória nº 870 fragiliza o direito fundamental em tela justamente por organizar a administração de forma a impedir – ou ao menos limitar – a sua concretização. A transferência da matéria a uma pasta específica, que tem como objetivo o atendimento de pautas que muitas vezes entram em rota de colisão com o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, e a subordinação do comando dessa pasta aos interesses de uma bancada poderosa do Congresso Nacional, associada aos discursos e falas já apresentados pelo governo, apontam para um cenário permanente de omissão quanto ao dever de demarcar.

A proteção insuficiente e a desestruturação da política são aspectos que decorrem da própria reorganização administrativa. Não é necessário aguardar os desdobramentos da reorganização administrativa para concluir que está em curso um desmantelamento da já precária política indigenista existente. Além de aprofundarem a omissão inconstitucional, os primeiros passos do governo federal geram efeitos nas instituições e no cotidiano das comunidades, com risco de pressão sobre os seus territórios.

A aparente reorganização administrativa constitui-se, em verdade, na execução de um projeto de esvaziamento pleno dos direitos daqueles povos. Em 2019, requenta-se a tentativa de submeter os índios a uma concepção tutelar, em que o Estado tende a negar-lhes expressamente a cidadania e a autonomia. Nesse cenário, não resta alternativa: a luta por direitos humanos exige vigilância constante contra o retrocesso. Em outras palavras: a luta dos indígenas nunca acaba.

1Cf. Agência Brasil. Governo terá conselho para analisar demarcações de terras indígenas. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/governo-tera-conselho-para-analisar-demarcacoes-indigenas>. Acesso em 17 jan. 2019.

2Segundo pesquisa do instituto, realizada entre 18 e 19 de dezembro de 2018, a maioria dos brasileiros é contrária à redução de terras indígenas. 60% são contrários à redução, ao passo que 37% concordam. Dos 37%, 22% concordam totalmente e 15% concordam em parte. 3% dos entrevistados não souberam responder. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/maioria-dos-brasileiros-e-contraria-a-reducao-de-terras-indigenas.shtml> Acesso em 16 jan. 2019.

3Disponível em: <http://apib.info/files/2019/01/Representac%CC%A7a%CC%83o-APIB-Bolsonaro-MP-870-VF.pdf> Acesso em 16 jan. 2019.

4OLIVEIRA, João Pacheco de. Sem a tutela, uma nova moldura de nação. In: ______. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 312-313.

5SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos fundamentais e proteção do meio ambiente. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 338.

6Colocar a garantia territorial das minorias étnicas no Congresso Nacional representaria o mesmo que esvaziar o núcleo essencial do art. 231 da Constituição. Sobre o tema, veja-se: SARMENTO, Daniel. Nota Técnica: a PEC 215/00 e as Cláusulas Pétreas. Disponível em: <http://www.gta.org.br/wp-content/uploads/2013/09/2013-Nota-T%C3%A9cnica-do-MPF-sobre-a-PEC-215.pdf>. Acesso em 10 jun. 2016.

7O Decreto nº 1.775/96 dispõe sobre o sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências. Ele pressupõe a estrutura anteriormente existente, com a FUNAI responsável pelos processos de demarcação de terras, e decisões pelo Ministério da Justiça, que supervisionava a autarquia, e pela Presidência da República.

JULIO JOSÉ ARAUJO JUNIOR – Procurador da República no Rio de Janeiro. É mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 2005.

Menina da etnia indígena Kaiapó . Foto de Ricardo Moraes, Reuters

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