Por Fabio Leon, no Rio On Watch
No dia 29 de abril de 2018, O Globo noticiava o sepultamento de cinco vítimas da chacina ocorrida na Vila Operária, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O crime ocorreu no início da manhã de sábado, após o fim de um baile funk. Uma das linhas de investigação é de que o assassinato teria sido cometido por milicianos. De acordo com policiais da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF), que participaram da perícia na favela, todos os tiros foram disparados por pistolas.
No dia 13 de fevereiro desse ano, o jornal O Globo noticiava que nove pessoas foram mortas em duas chacinas ocorridas em Nova Iguaçu. Em Austin, quatro homens foram assassinados a tiros. Dois corpos de homens foram abandonados embaixo de um viaduto, que passa sobre o Arco Metropolitano, e outros dois mortos foram encontrados numa lixeira próxima. A polícia trabalhou com a hipótese de que as quatro vítimas tenham sido assassinadas em meio a uma guerra pelo controle do tráfico no Morro São Simão, em Queimados. Já outros três homens e uma mulher foram encontrados mortos a tiros, no Bairro Adrianópolis.
No dia 26 de abril, a coalizão de instituições que integram o Fórum Grita Baixada (FGB), em mais um trabalho de incidência política junto ao poder público, ocupou a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para a realização da Audiência Pública Homicídios e Desaparecimentos Forçados na Baixada Fluminense. Semanas antes, integrantes do FGB se reuniram com representantes de diferentes mandatos parlamentares (estaduais e federais) no intuito de fomentar a criação de uma articulação parlamentar em defesa da vida na Baixada Fluminense. A perspectiva dessa articulação é a de propiciar maior compreensão sobre os desafios e os caminhos para o enfrentamento dos homicídios na região, já que a Baixada Fluminense concentra os mais altos indicadores de letalidade no estado o Rio.
A primeira a falar na audiência foi a ativista Luciene Silva, da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense, cujo filho, Rafael, foi assassinado no triste episódio conhecido como a Chacina da Baixada, no qual, na noite de 31 de março de 2005, 29 pessoas foram mortas a esmo por policiais militares nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados. As 29 vítimas foram escolhidas aleatoriamente enquanto conversavam na porta de casa ou andavam pelas ruas. Crianças, estudantes, comerciantes, desempregados, funcionários públicos, marceneiros, pintores e garçons estavam entre os mortos.
Uma das preocupações de Luciene, enquanto militante dos direitos humanos, foi a relativização do sofrimento que ela e o grupo de mães sofrem diariamente. “O que mais me dói é perceber que têm pessoas que ainda pensam que quando um jovem negro e periférico morre, significa que ele fez por merecer, que alguma suspeita recaiu sobre ele. Que mundo é esse que estamos vivendo? Nós vivemos todos os dias uma dor física e mental. Mas agora estão querendo dimensionar a nossa dor que se mistura a uma culpa que não é nossa e que não deveria existir”, disse ela.
Se forem contabilizados todos os assassinatos ocorridos na Baixada Fluminense nos últimos dez anos, o número de mortos atinge, com facilidade, a estatística populacional de uma grande localidade. Segundo a série histórica divulgada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) em março desse ano, de 2009 até o ano passado, mais de 19.000 pessoas perderam a vida de forma violenta (ver gráfico abaixo). É como se toda a cidade de Rio Claro, no interior do Estado do Rio, com 18.451 habitantes, tivesse sido exterminada.
O certo é que a região, que é composta por 13 municípios, invisibilizada em todos os seus problemas, convive historicamente com a violência, quer seja proporcionada por facções ou por outros grupos criminosos organizados como as milícias. Ainda segundo dados do ISP, publicados no ano passado, de cada 100.000 habitantes, 39,4% dos assassinatos desse montante acontecem na região da Baixada Fluminense. Em janeiro desse ano, primeiro mês de governo de Wilson Witzel, o número de mortes por intervenção policial na região teve um aumento de 47,5% em relação ao mesmo mês em 2018. Enquanto em janeiro de 2018 foram 40 mortes, no mesmo mês este ano foram 59 óbitos. De cada 10 jovens assassinados na Baixada, 7 são jovens que moram em favelas ou outras periferias.
Daiane Lima, líder local do Monitoramento Jovem de Políticas Públicas (MJPOP), metodologia desenvolvida pela organização Visão Mundial para estimular a participação da juventude na política brasileira, falou sobre como os jovens da Baixada Fluminense são diretamente afetados por políticas públicas ineficazes que pouco incluem e que parecem contribuir para a estagnação dessa fatia da população. “A realidade da juventude negra e periférica na Baixada Fluminense é muito difícil. Há um descaso muito grande, pois os jovens são negligenciados na cultura, no esporte, no lazer, e cada vez mais temos essas vidas ceifadas. Nós temos que traçar meios para acabar com isso. Nós estamos apoiando as propostas apontadas pelo Fórum Grita Baixada e esperamos continuar na luta pela vida desses jovens”, disse Daiane.
Presidente da Comissão Especial de Juventude da ALERJ, a Deputada Estadual Dani Monteiro (PSOL), argumenta que falar sobre a juventude negra e periférica é falar sobre o setor mais vulnerabilizado da sociedade. Nascida no Morro do São Carlos, ela que, com apenas 27 anos, foi eleita a deputada estadual mais jovem do Rio, já foi barrada no acesso ao plenário da Câmara por racismo. “[Pegando] as taxas de homicídios no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 53% são de jovens e a grande maioria de negros, pobres e periféricos. Oito entre os dez municípios mais perigosos são da Baixada Fluminense, dois deles são os mais perigososdo Brasil, que são Queimados e Japeri. O índice de letalidade é muito forte”, disse em plenário Dani Monteiro, que atualmente é moradora de Duque de Caxias.
O professor de sociologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Sousa Alves, autor do livro Dos Barões ao Extermínio, uma história de violência na Baixada Fluminense, convidado para debater na audiência, disse que um de seus maiores incômodos em estar presente no evento era a presença de parlamentares que haviam prestado, em seus mandatos, homenagens a milicianos, além do incômodo acerca de como o Estado pouco se esforça em fornecer medidas que reduzam o poderio desses grupos organizados. “Somos um país anormal, pois temos políticos que fomentam e reproduzem a lógica do extermínio, que matam Marielles e tantos outros todos os dias”, disse ele.
O professor ainda criticou o papel centralizador do Instituto de Segurança Pública (ISP) enquanto produtor de dados e a veracidade dos mesmos. “Mas que dados são esses? Quem trabalha com direitos humanos e segurança pública sabe que esses dados têm toda uma dificuldade de coleta porque ninguém registra mais nada. Não se confia em batalhão ou delegacia porque a população pobre sabe que é tudo administrado por milicianos. Os rios e terrenos da Baixada formam um grande cemitério clandestino”, afirmou.
O coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araujo, ao comentar as recentes chacinas descritas no início dessa matéria, disse que é uma prática perversa na região. Nem sempre visibilizadas pela mídia, mas sempre sentidas pela população. “A Baixada Fluminense não aguenta mais tantas mortes. Será que o Estado tem condições de combater a violência que ele mesmo criou?”, disse Adriano. Ele ainda comentou que é preciso pautar o afastamento imediato de policiais militares reincidentes em atos criminosos. Ele também apresentou um conjunto de propostas construídas por essa coalizão de instituições para a criação de políticas públicas efetivas. Dentre elas, investimentos e novas estratégias para o fortalecimento da capacidade de investigação de homicídios e do crime organizado, além da criação de um Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública Estadual na Baixada Fluminense.
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Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.
Adão, cansado de ver PMs matando jovens negros. Foto: Daniel Arroyo /Ponte