Os “tarados” de Abu Ghraib. Por Contardo Calligaris

Na Folha, em 27 de maio de 2004 *

Até agora, são sete (três mulheres e quatro homens) os reservistas americanos apontados como responsáveis pelos abusos praticados na prisão de Abu Ghraib.

O comando afirma que eles agiram por inspiração própria: uma vez essas maçãs podres retiradas da cesta, o problema estará resolvido. Muitos comentadores acham difícil acreditar que os soldados tenham agido sem a ordem ou, no mínimo, o encorajamento implícito de seus superiores.
Mas num ponto todos parecem concordar: os sete seriam um bando de tarados.

Já surgiu a pergunta de sempre: como foram fabricados os sete horrorosos de Abu Ghraib? A gente é tarado de nascença ou se torna tarado à força de infâncias e experiências traumáticas, infelizes ou, simplesmente, tortas? No caso, essa pergunta é sem pertinência; eis por quê.

Quinze anos atrás, na França, defendi minha tese de doutorado em psicopatologia (o calhamaço, traduzido em inglês pela editora The Other Press, dorme na minha gaveta, à espera de revisão e cortes que nunca tenho tempo de fazer). O ponto de partida de minhas indagações era um batalhão de 500 reservistas da polícia alemã que, durante a Segunda Guerra Mundial, assassinaram metodicamente, com tiros individuais na nuca, milhares de judeus poloneses, famílias com crianças e mulheres.

Os ditos soldados alemães não eram tropa de elite. Tinham-se alistado na polícia porque essa escolha parecia garantir que ficariam longe da ativa, não arriscariam a pele e não teriam que matar inimigos. De forma parecida, os sete de Abu Ghraib entraram na National Guard (a reserva) para conseguir bolsas para a universidade; nada a ver com os anseios militaristas dos voluntários que compõem o Exército ou os fuzileiros navais.

Os reservistas alemães não tinham sido selecionados por alguma predisposição ao mal (quer fosse de nascença, quer fosse por história de vida). É impossível imaginar que, por um milagre do acaso, eles constituíssem uma turma de 500 assassinos potenciais. Mas, se eram pessoas quaisquer, como se tornaram capazes do horror?

Note-se que a obediência às ordens não explica nada. Contrariamente ao que se imagina, durante toda a Segunda Guerra, ninguém foi perseguido pela Justiça militar alemã por ter-se recusado a atormentar ou exterminar populações civis. Os poucos soldados que não quiseram obedecer a ordens genocidas foram apenas dispensados da tarefa.

Conclusão: há sujeitos que nada, em sua história ou em seus genes, predispõe a ser torturadores ou assassinos, mas que, numa situação social específica, sem precisar de ordens, tornam-se monstros. Ou seja, as condutas humanas não dependem só dos genes e da história singulares de cada um, mas também (e bastante) da situação coletiva na qual cada um está enredado na hora de agir.

Uma experiência famosa (e relevante na argumentação de minha tese) foi conduzida em 1971 por Philip Zimbardo, um grande psicólogo social que ainda ensina na Universidade Stanford, na Califórnia. Numa prisão simulada, Zimbardo encerrou 21 estudantes escolhidos a esmo e divididos (também a esmo) em dois grupos: presos e guardas. Os guardas eram livres para impor as punições que julgariam necessárias ao bom funcionamento do estabelecimento. A experiência, que devia durar duas semanas, foi interrompida no sexto dia, pois o comportamento dos guardas colocava em perigo a saúde mental e a incolumidade física dos presos. Alguns dos abusos praticados se pareciam estranhamente com o que aconteceu na prisão de Abu Ghraib: presos desnudados, encapuzados e por aí vai.

Quais situações sociais transformam moços e moças de boa índole em algozes? A condição básica para que isso aconteça é que a sensação de pertencer solidamente a um grupo seja servida como remédio contra as dores e as dúvidas que habitam a solidão do indivíduo. Em Abu Ghraib, as fotos-suvenir conferem aos sete a coesão “alegre” e brutal de um bando de amigos decididos a passar férias memoráveis.

Mas é fácil encontrar outros exemplos. A cada ano, uma excitação festiva e uma sensação coletiva de superioridade levam universitários bem-comportados a torturar calouros estarrecidos. Uma torcida pode converter um bom pai de família em vândalo. Uma multidão enfurecida faz de cada um de seus membros um linchador assassino. Uma burocracia bem organizada pode transformar seus tranqüilos funcionários em agentes de extermínio.

A plasticidade social do sujeito humano não constitui uma desculpa. Ao contrário, o indivíduo é sempre responsável por não saber resistir à sedução dos grupos nos quais ele se perde.

No entanto, há também a responsabilidade de quem cria as condições para que outros se percam na estupidez do grupo. Como? Por exemplo, organizando uma prisão em que os guardas teriam poderes incontrolados sobre seres ditos inferiores por raça, cultura ou religião.

Aliás, ao redigir uma ata de acusação contra o comando americano, eu me indignaria, claro, com o que aconteceu com os presos iraquianos de Abu Ghraib. Mas também me indignaria com o seguinte: foi permitido que sete jovens soldados se transformassem em torturadores.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber, considerando a lamentável atualidade da questão.

Foto capturada de vídeo. Desfile da Guarda Rural Indígena (GRIN), durante a ditadura, mostrando publicamente técnica do pau de arara – Arquivo Convemg

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