Olavo, a pós-modernidade e o Pequeno Príncipe

Por Mauro Luis Iasi*, no blog da Boitempo

“Tu deviens responsable pour toujours
de ce que tu as apprivoisé”
SAINT-EXUPÉRY

Quando nos vemos diante da catástrofe que nos assola, começamos a perceber alguns personagens de forma oportunista tentando abandonar o barco e se desvencilhar de declarações e laços que os ligam à nau desgovernada. É compreensível e esperado. No entanto, nossa responsabilidade é militar pelo não esquecimento.

Trata-se, de fato, de atribuir a quem de direito cabe a responsabilidade por um desclassificado, tosco e desequilibrado miliciano e sua família mafiosa ter chegado ao posto máximo da República. Em um conhecido poema, Verhoer des Guten, cuja declamação me custou um processo, Brecht fala de um personagem que, diante da catástrofe do nazismo, tenta se isentar de culpa afirmando ser um homem bom, que apenas emitiu sua opinião, que é bom amigo. A pergunta central do poema pode ser encontrada no momento em que o homem bom afirma que não age movido por seus próprios interesses, ao que o poeta pergunta: que interesses te movem, então?

Penso que a pergunta central seja esta. Afinal, aquilo que aparece na boca e nas ações de significativos segmentos de massa representa interesses bem definidos – mais precisamente, interesses do grande capital monopolista em suas diversas manifestações (financeira, industrial, comercial, agrária, etc.). Muito já falamos disso. Agora, contudo, interessa-me um outro aspecto, aquele ligado à própria manipulação ideológica que leva os assim chamados “homens bons” a se tornarem o suporte da maldade encarnada.

Assim como Gramsci, estou convencido de que existe um núcleo saudável no senso comum. Ninguém aceitaria ser suporte de ações tais como aquelas que estão levando à devastação da política ambiental, à ampliação da violência contra a mulher, à política genocida disfarçada de segurança pública, ao ataque aos direitos trabalhistas ou à destruição da previdência em nome dos interesses do capital financeiro… Ao menos não em seu estado puro, isto é, uma vez esclarecido seu real conteúdo reacionário e anti-humano, assim como as consequências desastrosas que acarretam para as pessoas e o país. Por isso, o conteúdo substantivo dos ataques necessita ser embrulhado por uma grossa camada ideológica que os apresente ocultando suas determinações, justificando sua suposta necessidade inquestionável, invertendo seus atributos, naturalizando suas raízes sociais e históricas, e, por fim, conferindo um verniz universal ao caráter particular dos interesses que os protagonizam.

Esse modus operandi da ideologia transparece com clareza no tratamento dado ao episódio de violência em uma escola do Estado de São Paulo, em que adolescentes atacaram uma professora arremessando livros e carteiras contra ela. Demonstrando sua preocupação, o secretário de educação afirmou que todos devem condenar esse ato injustificável de violência e que o governo já estaria buscando formas de endurecer as punições contra agressores e familiares para responsabilizá-los por atos dessa natureza. Ora, embrulhado dessa forma, com pitadas de evidências do tipo “não se pode esperar que os professores deem conta disto sozinhos”, que “a escola e os pais têm que agir conjuntamente para garantir que isso não aconteça”, fica de fora a clara responsabilidade dos governos do PSDB que comandam o Estado de São Paulo há 25 anos e que têm tratado os professores como lixo – inclusive, sempre que podem, batendo neles com extrema crueldade e violência, sucateando as condições de trabalho, impondo superlotação de salas, diminuído pessoal de segurança escolar e manutenção, desvalorizando na prática o trabalho docente de forma permanente e decisiva em nome da sacrossanta lei de responsabilidade fiscal, dos superávits primários, do saneamento financeiro e da capacidade de pagamento da dívida. Ao final, segundo esse discurso, os responsáveis por essa “injustificada” violência seriam os jovens e suas famílias. Nada ameniza a violência praticada contra a professora, mas, desta forma, acaba por se ocultar nas tramas da ideologia, as determinações mais profundas que se convertem nas margens que oprimem e preparam as novas explosões de violência no rio das escolas.

Creio que podemos pensar a partir deste registro nosso drama atual. Quando pensamos no inepto limitado que comanda a República e seu circo de ministros que parecem retirados de uma peça de Pirandello (que aliás, doou sua medalha do prêmio Nobel de Literatura para a campanha de ajuda ao fascismo na Itália), logo nos vem à mente a malta de pessoas fazendo arminhas com as mãos e digitando o número da besta na urna eletrônica. Pensamos em organizações fartamente financiadas pela extrema direita conservadora mundial, como o MBL, o Vem Pra Rua e outras, ou, ainda, o esquema milionário para espalhar notícias falsas coordenado pelo mercenário Steve Bannon e o astrólogo caçador de patos que vive nos EUA.

É fato que todos eles têm sua responsabilidade, inclusive aqueles que acreditavam que estavam apenas evitando que o petismo bolivariano voltasse ao governo. Há, no entanto, um responsável que pode nem sequer ter votado no esposo da sobrinha do miliciano preso em Brasília.

A chave para encontrá-lo reside em uma constatação. O senso comum não estaria, por seus próprios mecanismos e características, apto a aceitar como válidas essa montanha de bobagens e falsificações grosseiras. Aquilo que se expressa no senso comum, já dizia Gramsci, resulta em larga medida do trabalho intelectual. Ou, dito de outra forma, aquilo que aparece em ideologias arbitrárias, bizarras e ocasionais, nasceram de ideologias orgânicas e aparecem na consciência imediata das massas “sem benefício do inventário”.

No senso comum aparecem caoticamente mescladas, por um lado, crenças na virgindade de nossa senhora, dúvidas sobre o formato plano ou arredondado da Terra, tramas conspiratórias sobre a suposta imposição perversa de vacinar as crianças contra o sarampo ou sobre as mensagens ocultas nos livros didáticos que podem levar seu filho a virar gay ou, pior, comunista, e por outro, afirmações sobre o nazismo ser de direita, sobre o fracasso das experiências socialistas, sobre o quanto foi salvador o golpe de 1964 e humanistas seus torturadores, as virtudes do mercado e o rombo na previdência.

Tudo isso só pôde habitar assim o senso comum sem maiores problemas depois de um longo e paciente trabalho em desacreditar as ciências, a noção de verdade, a história. Ora, quem militou neste front pode não ser um bolsonarista que acredita que a terra é plana e que Olavo de Carvalho é filósofo, mas não deixa de ter contribuído de forma decisiva para semear o terreno no qual o obscurantismo, e seu plano de batalha, pudessem dar frutos.

Hegel, em seu estudo sobre a História da Filosofia, afirma que há dois antagonistas à filosofia e à busca da verdade. O mais antigo deles é a religiosidade, que ao declarar a incapacidade da razão e do pensamento de atingir a verdade, propõe que o caminho para a revelação é a renúncia da razão, humilhando-se diante da autoridade da fé (Hegel, Introdução à História da Filosofia, São Paulo: Hemus, 1983, p.17). O outro antagonista seria, surpreendentemente, a própria razão, que, combatendo a religiosidade e suas verdades reveladas ao afirmar que só a convicção de suas próprias evidências poderia levar o ser humano a reconhecer algo como verdade, conclui que “de maneira tão prodigiosa se inverteu a afirmação do direito da razão, por ter este como resultado, que a razão não podia conhecer nada como verdadeiro” (idem, p. 18).

Este contraste entre “opinião e verdade” que o filósofo alemão via como característico de tempos de crise e transição, voltou em nossas dias, por exemplo nas brilhantes e provocativas contribuições de vários autores, como Foucault que, seguindo as pistas de Nietsche (que um dia se perguntou: “Pretendente da Verdade – tu? Trepado sobre pontes mentirosas de palavras, sobre arco-íris de mentiras”), afirmará que se trata de registros de verdade, discursos, que não estando o conhecimento inscrito de nenhuma forma na natureza humana, conclui que o “conhecimento foi, portanto, inventado” (La verdade y las formas jurídicas).

A ofensiva decisiva se deu, no entanto, com o pensamento pós-moderno, sedutoramente apresentado como um bálsamo sagrado e redentor contra as ortodoxias e conhecimentos envelhecidos, contra a razão moderna e suas certezas que conduziram à catástrofe contemporânea e as barbaridades, mas fundamentalmente contra o marxismo e sua pretensão de mudar o mundo.

O centro da pregação pós-moderna está na afirmação de que a ciência não passaria de uma entre outras narrativas ou discursos que não têm legalidade absoluta para se impor sobre outros jogos de palavras (religião, a arte, a economia, etc.). Como fica evidente na obra de Jean-François Lyotard, a pós-modernidade é a mais radical crítica à razão moderna e de suas chamadas “metanarrativas” – isto é, da pretensão de articular, em um todo compreensível, linhas de desenvolvimento seja histórico, econômico ou político, que na realidade não são mais que acontecimentos em si mesmo isolados e aleatórios, inseridos, como diria Foucault, à força no discurso. Como não se trata de compreender os fenômenos por suas determinações e sua história, resta a genial intuição, a particularidade do olhar, a narrativa, a percepção individual, a sensação emocional.

Extremamente sedutora na forma, a pós-modernidade é filha do irracionalismo e mãe da barbárie. Como toda genitora, fica incomodada diante da cria que não sai exatamente como desejada. Esperava um mundo livre das metanarrativas, expressão do poder sobre os corpos e da liberdade, mas se vê diante da produção industrial da mentira, do poder em seu estado puro, não da intuição genial liberta das amarras das normas acadêmicas, mas da burrice em sua forma exuberante. Deviam ter ouvido as palavras proféticas de Adorno e Horkheimer, alertando que a terra totalmente esclarecida resplandeceria como uma calamidade triunfal.

Os mitos pós-modernos se fizeram acompanhar de noções apresadas como a sociedade pós-industrial, o pós-capitalismo, o fim da centralidade do trabalho, a morte do sujeito, o fim das classes, mas a somatória de toda a criativa crítica-crítica desagua na genial antecipação de Hegel, a peremptória afirmação da razão irracional: não se pode mais afirmar nada como verdadeiro. Não por acaso, a religiosidade, irmã gêmea da razão antagonista da verdade, cobra seu legado de obscurantismo para se afirmar novamente como caminho em meio às mentiras dos homens para se chegar à revelação do verdadeiro conhecimento.

É somente em um mundo desses que Olavo tem seu espaço, imerso no jogo aleatório de palavras, fatos e mentiras, despaupérios e destemperos. Mas, não perdamos tempo analisando o personagem menor – o brilhante texto de Christian Dunker aqui no Blog da Boitempo já deu conta disso (e parece de fato ter despertado a covardia do dito cujo com ele).

Em algum departamento de algum curso de alguma universidade, pessoas que se pensam civilizadas, com seus blazers de camurça e reforços de couro nos cotovelos, ou vestidos despojados acompanhados de colares eloquentes que lembram alguma arte tribal, ficarão indignadas com certas ilações.

Entretanto, em um asteroide distante com três baobás, Saint-Exupéry sentencia: tu és eternamente responsável pelo que cativas. Ainda que sejam… raposas ou fascistas.

*Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. 

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