Nova lei de terras do Pará permite “requentar” títulos podres e favorece grileiros

Legislação recém-aprovada também criminaliza ação de movimentos sociais e incentiva a privatização de florestas

Marcos Hermanson, Brasil de Fato

A Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), aprovou no último dia 17 o projeto de lei 129/2019, que institui novas regras para a regularização de terras. Encaminhado à casa pelo governo do estado, a lei tem o pretexto de “agilizar” e “desburocratizar” os processos de concessão de terras públicas paraenses e tramitou em apenas 33 dias, aguardando agora a sanção do governador Helder Barbalho (MDB).

Especialistas na questão fundiária, ambientalistas, movimentos sociais e partidos de oposição têm criticado duramente a nova lei de terras. Se aprovada, argumentam, a legislação pode facilitar a grilagem e a privatização de florestas públicas. 

A lei também preocupa por criminalizar a atuação de movimentos sociais e pelo potencial de aumentar o número de conflitos no campo. Em 2017, ano da chacina policial de Pau D’Arco, 21 pessoas morreram por conta da disputa de terras no estado e o estado do Pará é campeão de mortes em conflitos agrários.

Trechos questionados

O artigo 7º do PL determina que o beneficiário de uma concessão ou venda de terra não precisará residir na terra concedida. 

Para a pesquisadora Brenda Brito, que integra o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), uma instituição de pesquisa científica voltada para a defesa da Amazônia, argumenta esse dispositivo abre margem para a especulação de imóveis rurais: “Essa é uma característica da grilagem especulativa: alguém ocupa a área pública, mantém aquela área sob controle com laranjas, e depois tenta vender aquela área para lucrar”, diz ela. 

“Um outro problema é que ele vai permitir a privatização de florestas públicas do estado, ao invés de privilegiar a concessão florestal, que é uma modalidade que existe na legislação já há alguns anos e que é muito mais benéfica para a sociedade como um todo”, argumenta Brito, se referindo ao artigo 5º do projeto de lei. 

O PL também desvincula a concessão de terras dos preços de mercado, o que significa que as terras poderão ser vendidas a grandes proprietários por valores irrisórios. Segundo levantamento do mesmo Imazon, “o Iterpa [Instituto de Terras do Pará, responsável pela regularização fundiária] pode deixar de arrecadar R$ 9 bi por cobrar preços até nove vezes inferiores ao mercado de terras na venda de terras públicas”

Já o artigo 16 proíbe que integrantes de movimentos sociais de luta pela terra que já tenham participado de “invasão” de terras públicas ou de “conflitos agrários” sejam beneficiários de regulação, e determina que qualquer entidade que “auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis públicos”, não será beneficiária de regularização fundiária ou repasse de recurso público. 

Para Ayala Ferreira, que integra a direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o PL “tem dois pesos e duas medidas. Ao mesmo tempo que favorece o reconhecimento e a legalização de títulos para grandes proprietários rurais no Pará, ele restringe a atuação dos pequenos porque exclui aqueles que ocuparam terras como possíveis beneficiários de pequenas propriedades rurais”.  

“Tais mudanças validam um ciclo histórico na Amazônia de afrouxamento das regras fundiárias para favorecimento de interesses privados, mesmo diante dos prejuízos ambientais e financeiros à sociedade. Esse tipo de alteração de normas acaba por estimular mais invasões de terra pública associadas a desmatamento ilegal e contribuindo para a continuidade de conflitos de terra na região”, aponta o relatório técnico do Imazon. 

“Esquentando” títulos podres

Uma das principais críticas ao PL de autoria do governo do estado do Pará é que ele vai possibilitar a regularização com base em títulos de propriedade rural nulos ou fraudulentos, muitas vezes fruto da grilagem de terras. 

Os artigos 26 e 27 da nova lei permitem ao Iterpa analisar títulos já considerados nulos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e preveem a regularização de pedidos de concessão de terras que estariam em análise desde 1995, ano em que a Lei de Terras paraense foi reformada para impedir a prorrogação indefinida da ocupação sem regularização fundiária. 

Esse dispositivo por si só já causa estranhamento. Por que um órgão de regularização fundiária “sentaria sobre um processo” por quase 24 anos? O Iterpa, por sua vez, não divulga dados a respeito dos títulos já concedidos ou “em processo” de regularização, o que dificulta o trabalho de ambientalistas e estudiosos do tema.

Para o pesquisador Girolamo Treccani, da Universidade Federal do Pará, que há vinte anos estuda a questão fundiária no estado, a Lei vai fazer priorizar “o papel podre em detrimento da efetiva [da terra], beneficiando grileiros, grandes proprietários e aqueles que desmataram”.  

Para explicar o tema, ele concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato em que narra o histórico da ocupação de terras no estado do Pará, desde que a atribuição da regularização fundiária passou a ser responsabilidade dos governos dos estados. Confira abaixo: 

Brasil de Fato: O que exatamente é o título de posse a respeito do qual a lei versa?

Girolamo Treccani: O título de posse é um documento que só existe no Pará. Ele foi criado pelo decreto 410, de 1891, que naquele momento previa um ano de prazo para que o declarante pudesse cumprir com suas obrigações: ocupar o imóvel, produzir, medir e demarcar, e pagar o valor da terra. Esse prazo foi sendo prorrogado até 1995. A partir de fevereiro de 1996, o que está explícito é que alguma solicitação que entrou no Instituto de Terras até 31 de dezembro de 1995 ainda poderia ter seu direito reconhecido. 

É bom lembrar que esses documentos não são só antigos, mas normalmente muito grandes, com 4.356 hectares, que era o tamanho máximo alienável por parte do estado desde 1891. Portanto hoje todos eles estariam acima dos limites constitucionais (2500 hectares). Segundo, pior do que isso, são de dificílima localização, porque eram meras declarações.

Como disse, eles foram encerrados em 1995. Quando o projeto de lei [PL 129] diz que precisa se respeitar o prazo do Decreto Estadual 1054/96, o prazo é dezembro de 1995. Portanto, vamos pensar na melhor das hipóteses: eu tinha um título de posse. Durante 104 anos poderia ter feito o dever de casa e não fiz, e agora chego perante o estado e digo ‘vou fazer o dever de casa’. Esse processo estaria demorando desde 1995 até amanhã. Que processo é esse que está tramitando durante 30 anos? 

Como funcionava/funciona o processo de regulamentação fundiária?

Eu, ocupante, iria lá no Iterpa, apresentava a declaração [da terra], voltava para casa, trabalhava, media, demarcava, apresentava o meu laudo de demarcação para o Iterpa, o Iterpa mandava fazer uma vistoria comprovando a efetiva ocupação, e esse título era legitimado: deixava de ser título de posse para ser título de legitimação de posse” 

O que aconteceu? Muitos desses títulos de posse foram matriculados no livro de registro de imóveis, apesar de que existe um provimento – o 13/2006 – que diz enfaticamente: título de posse não gera domínio. Portanto nunca deveria ser registrado como propriedade 

Qual é o problema que isso gera?

Tem um artigo na nova lei [PL 129/2019], que diz o seguinte: Para aquele que comprou uma terra em boa-fé e agora descobre que aquele documento é nulo, o Iterpa irá permitir a compra em condições especiais. 

Só que todos esses documentos, todas essas matrículas, todos esses registros de posse registrados ilegalmente no livro de propriedades foram considerados nulos – portanto as matrículas foram canceladas – em 2010, pelo Corregedor do Conselho Nacional de Justiça. 

Qual é a situação dos proprietários destes títulos?

De agosto de 2010 até junho de 2019 eu, tendo comprado em “boa fé”, tive cerca de nove anos para procurar o Iterpa e ajeitar a minha situação. Ora não existe boa fé para quem comprou título podre nove anos atrás. Quem compra título e não tem um bom advogado que garanta para ele que o título é bom 

E segundo, todos esses títulos podres têm carimbado que foram cancelados pelo Conselho Nacional de Justiça, não existe boa fé. Boa fé poderia existir antes de 2010, mas ele foi notificado e nada fez. Agora, alguém que comprou depois de 2010, ou não sabe ler ou sabe que estava comprando alguma coisa podre. 

E agora ele está de boa fé e eu vou dar mais uma possibilidade de ele transformar aquilo que é ilegal, ilegítimo, em título bom. Isso é o cúmulo da falta de responsabilidade política. O que se quer é transformar título em papel bom.  

Quem ganha com isso?

Grileiros, grandes proprietários, aquele que desmatou. Na lei atualmente em vigor, de 2009, se alguém desmatou além da conta, obrigatoriamente deveria fazer um termo de ajuste de conduta (TAC), recuperar a área, e depois ser titulado. Esse novo projeto de lei diz que se o Iterpa achar oportuno, poderá assinar o TAC.

Isso beira a facilitação de quem roubou terra e agora quer ser premiado com isso, inclusive com desconto significativo no valor que ele vai pagar. Resumindo, eu diria: o Pará tem que escolher entre papel podre e ocupação efetiva.

Contexto

O Pará é o segundo maior estado do país, com 1,2 milhões de quilômetros quadrados, e a província campeã em conflitos agrários e mortes no campo. De 2007 a 2017, 111 pessoas perderam a vida em decorrência da violência no campo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). 

No dia 24 de maio de 2017, dez trabalhadores rurais que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, no município paraense de Pau D’Arco, foram brutalmente assassinados por agentes das Polícias Civil e Militar em uma ação de despejo.

Cerca de 31% da área do estado do Pará, o equivalente a 372 mil quilômetros quadrados de terra, segue sem regularização fundiária. Aproximadamente 55% desta terra está sob jurisdição do governo estado do Pará. Estas são as áreas que serão afetas pela nova lei de terras, que aguarda sanção do governador. 

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira

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