Os resistentes. Por Tarso Genro*

No Sul21

O meu tio-avô Carl Herz era Prefeito de Kreusberg -então distrito berlinense- quando os nazis chegaram ao poder. Judeu, jurista e socialdemocrata, militou junto com Ebert, Rosa Luxemburgo e Liebnekecht. Hoje Carl Herz é “nome de rua em Berlim”. Faço uma homenagem a ele, nestes dias derradeiros de fim de ano,  respondendo ao ministro Weintraub, que num vídeo do Youtube me “acusou” de ser descendente deste judeu socialista, pensando que Carl fosse meu avô. Carl, irmão de Hermann meu avô, intelectual socialdemocrata e militante de esquerda sofreu a perda do seu filho e meu primo, Gunter, assassinado no Campo de Auschwitz. Na mesma fala, Weintraub disse que tenho descendentes socialistas -minha filha Luciana e meu neto Fernando- o que para mim é a mais pura e orgulhosa das verdades.

Uma mentira que ele pregou, porém, foi bastante grave e explícita do seu caráter, ao dizer que eu sou um advogado “bilionário”. Foi uma acusação muito comum feita contra os judeus e “meio judeus”, durante a ascensão do nazismo, preparatória do espírito dos “arianos” para os saques, extorsões, desapropriações e roubos, feitos contra a comunidade judia, visando reunir fundos para uma Guerra que daria glória “eterna” à Alemanha, no Reich dos 1.000 anos. Se eu fosse bilionário os partidos de esquerda e demais partidos verdadeiramente democráticos do nosso país estariam com muito mais recursos disponíveis para enfrentar praga fascista que nos assola.

Neste vídeo Weintraub ataca, particularmente, três pessoas, FHC, Marilena Chauí e este escriba. A companhia destas pessoas muito me honrou. As divergências que tenho com FHC -por exemplo- que hoje nos separam, nada tem a ver com as questões do socialismo, mas sim com a importância da luta pela democracia a partir da unidade antifascista, com a defesa irrestrita da educação pública e com a disputa de princípios em torno das reformas ultraliberais. Para mim, lembrar Carl Herz nestas circunstâncias é uma maneira de homenagear a todos os que lutaram e viveram para isso e para me separar de todos os energúmenos que hoje governam o país, que estão preparando a maior hecatombe social da história da República.

O início formal de um novo ano estimula compromissos, análises, projeções sobre o futuro e a crítica do passado recente. No conto clássico de Rubem Fonseca “Feliz Ano Novo”, Pereba, Zequinha e o narrador-personagem, apresentados pelo autor quase como bandidos sociais que merecessem “compreensão” pelo que fizeram, estupram, matam e roubam, para iniciar o novo ano. O Brasil nunca mudou tanto em tão pouco tempo. A mentira se tornou o cotidiano do poder político, a idiotice ministerial foi naturalizada como folclore, as maiores imbecilidades são ditas pelos filósofos do novo sistema miliciano e a maioria dos órgãos de imprensa pouco informa e pouco investiga as situações graves, que inclusive aproximam os homens do poder de assassinatos nitidamente políticos.

Nem na época do Regime Militar, nem no período Juscelino, no Governo Jango, na era Collor, Itamar, FHC, Lula, vivemos situações tão grotescas, vexatórias e brutalmente manipulatórias, como as que vivemos neste ano de Governo Bolsonaro. Quando a mentira se torna uma rotina e a ampla maioria sabe que o Governo mente todos os dias e aceita isso passivamente, conclui-se que centenas de “Perebas” e “Zequinhas” políticos, ocuparam o Estado e fizerem dele a sua moradia. E nesta moradia cultivam a ideia de amarrar o Brasil numa sociopatia de longo curso, que precede os grandes tormentos da guerra, onde mães delirantes passam a dizer que se orgulhariam de ver seus filhos mortos pela causas imprecisas de um fanático.

Um ficcionista bissexto -de segunda categoria- relata no seu conto “Fronteira” um episódio ocorrido num pequeno sítio de um “barrio” pobre de Rivera. A estória se passa num  lugar remoto, perto da linha imaginária que separa o  Uruguay do Brasil, nos idos de 72. No centro do relato está um velho comunista, Don Pepe, já retirado da militância cotidiana, que agora se ocupa de guardar documentos e livros “subversivos” -e até armas- de qualquer organização clandestina. Ele se fez auxiliar de qualquer grupo ou partido que arrisque o seu pelego na luta contra os regimes de morte, instalados naquela época na América Latina.

Quanto mais jovens os militantes destes grupos, mais radicais eles são. Sabendo disso, o velho comuna curtido em duras refregas de outras épocas, fala  como um Conselheiro, quando se depara com a foto do “Che” na capa de um Manual Guerrilheiro-: “”Foi aventura. Mas é assim mesmo”. Já tinha dito que o “Che” errara na Bolívia e que Fidel o abandonara. Eram tempos duros aqueles, já que recentemente os Tupamaros tinham matado Dan Mitrione, contratado para ensinar tortura no Uruguay. Em todo Cone Sul já era o reinado dos estupradores, sádicos, mentirosos e canalhas -regulares e irregulares- que se sucediam como atores no teatro do inferno.

Quando os dois jovens saem do rancho de Don Pepe, depois dos documentos serem devidamente enterrados, a noite já surgira “ponteada de estrelas e cometas”, pois, pela pequena janela perdida no breu dos fundos do rancho, ambos já tinham sentido “o céu do cruzeiro e a limpeza medular do universo”: mariposas entrando “fulgurantes na lamparina”, “o azul escuro da vida eterna”, o “cheiro de querosene e a vontade de ficar ali para sempre”. Ambos concordaram que a investida boliviana de Che fora ineficaz -de porte generoso e quixotesco- mas não aceitaram a versão de que Fidel o abandonara. O velho apenas desenhara na face serena um sorriso enrugado, abrira um Zippo já amarelado e reacendera o palheiro. E disse: “Tomem cuidado. A coisa agora é longa”.

Nossa herança colonial e escravista pesa como um oceano de couro. Os longos mais de vinte anos da ditadura  brasileira, a transição conciliada, os anos de vigência decente da Constituição de 88 -entre a sua promulgação e o golpe midiático-evangélico (e hoje se vê) proto-fascista contra Dilma- resultaram num casamento perfeito. Uniram-se em comunhão amável os grandes empresários industriais e agrários, setores importantes da burocracia estatal, a alta classe média rentista ou simplesmente imbecilizada pelo ódio de classe, sob o testemunho da academia ultraliberal. Era a união perfeita para dominar, por dentro da própria Constituição.

Este bloco, todavia, não vingaria sem os instrumentos da “guerra híbrida” contra a democracia, sem os “fake news” provindos dos mesmos porões clandestinos em que a tortura se instalou no mundo de hoje, sem o convencimento programado -cientificamente- pelo oligopólio da mídia, que os comunistas eram um perigo e que o país seria feliz sem os valores da democracia e da esquerda, que Trump, Steve Bannon e seus sequazes ajudariam a rejeitar.  O intervalo democrático foi então sepultado por uma aliança improvável: do ultraliberalismo anti-estatista, com o fascismo: este como “modo de vida” e também forma de gerir o Estado, aquele como Estado só reforçado nas suas funções de polícia, apoiadas num novo estatuto das milícias ligadas ao poder. Tudo isso gera agora, novamente, um período “longo”, que talvez seja ainda mais longo do que a previsão do velho Pepe poderia alcançar, pois a sua medida do tempo era a de uma geração que se aproximava do fim.

Na  época de Pepe, a direita contava com o apoio direto da CIA e demais órgãos operacionais do Império e a esquerda com Cuba e -em algumas revoluções africanas- com a China e a URSS, que disputavam espaços no âmbito da “Guerra fria”, na qual estava em disputa os destinos do mundo do pós-guerra. Hoje eles contam – além de tudo isso – com as máquinas de controle das mentes, pelas quais um novo real-virtual chega à consciência das pessoas, já programadas para o mercado, não para gerar um convívio humano minimamente solidário. A civilização industrial clássica, que pariu a democracia política e social, impelia as pessoas para a praça, a celebração púbica da mística nacional, o convívio em círculos contraditórios abertos. A civilização liberal-rentista, com as novas tecnologias informacionais “concretiza” o isolamento e “virtualiza” a fria -e às vezes doentia- comunhão nas redes, convívio linear quase sempre em linhas fechadas.

Quando Guedes disse – com tranquilidade assombrosa – algo como “não esperem de nós providências contra as desigualdades sociais”, as alianças que nos governam perderam qualquer necessidade de dissimular, pois elas já estavam garantidas por um duplo apoio ideológico: o primeiro, que vinha das religiões do dinheiro; e o segundo, que vinha da mídia tradicional. Esta fez e faz, qualquer negócio para manter o ritmo e a profundidade do que chamam de “reformas”, cujo conteúdo faz  prova cabal que Guedes foi honesto, não irônico: estas -as desigualdades- não só não são combatidas, mas são aprofundadas para redesenhar a sociedade: para que ela seja mais desigual, por aceitação e vocação. Centenas de jornalistas dignos buscam se equilibrar neste cenário devastador da verdade, onde vence -quase sempre-  a manipulação e a farsa miliciana, corrupta e corruptora.

Nunca foi tão necessário desejar tão fortemente um ano novo mais feliz. Quando as incertezas esmagam o pensamento crítico, quando as mentiras seduzem os conformados e os medíocres, quando a repetição fascista das mentiras ganha a alma dos inocentes, quando a coisa agora “vai ser -novamente- longa”, inclusive para a paciência de quem não desiste, anonimamente, nas fronteiras do mundo -entre o medo e a esperança-, quando somos chamados a estender as mãos para encontrar mãos que estão intimidadas, torna-se importante, mais do que desejar: exigir um “Feliz Ano Novo”! E eu o faço, lembrando os gritos de “mito!” na Hebraica e Carl Herz, que hoje é nome de rua em Berlim.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

Foto: Guilherme Santos /Sul21

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