Em audiência sobre a morte de Adenilson Munduruku, delegado da PF nega autoria do crime; indígenas clamam por Justiça

Por Caio Mota, Amazônia Real

Sob forte esquema de segurança, apenas visto em julgamentos de casos envolvendo chefes do crime organizado, a Justiça Federal de Itaituba realizou entre 11 e 14 de fevereiro as quatro audiências iniciais para o caso do assassinato da liderança indígena Adenilson Kirixi Munduruku, em 2012. A reportagem da Amazônia Real testemunhou a presença de ao menos 25 agentes do Comando de Operações Táticas (COT) da Polícia Federal (PF) e 15 policiais militares no primeiro dia de audiência. A presença ostensiva do aparato policial soou como uma intimidação para os indígenas e trouxe à memória as trágicas cenas da Operação Eldorado, quando o mesmo COT participou da ação na Aldeia Teles Pires, que resultou na morte de Adenilson com três tiros na perna e um na nuca.

“Quando vimos os policiais na frente do local da audiência sentimos igual quando a nossa aldeia estava sendo invadida. Nós sentimos que a gente estava sendo ameaçado novamente pelos policiais”, relatou a liderança Waro Biorebu Munduruku. “Muito policial para fazer parede para nós. Para a audiência acontecer para gente tem que ser livre. A gente não vai chegar pra brigar. A gente vai só para fazer depoimento e falar a realidade”, afirmou o cacique Emiliano Munduruku. Ele é uma das principais testemunhas do caso e estava próximo de Adenilson Kirixi antes de ser morto.

Em 7 de novembro de 2012, durante a Operação Eldorado e de outros órgãos federais de combate ao garimpo ilegal nas Terras Indígenas Kayabi e Munduruku, na divisa do Pará com Mato Grosso, Adenilson Kirixi Munduruku foi assassinado. O Ministério Público Federal acusa como autor do crime o delegado da Polícia Federal Antonio Carlos Moriel Sanchez. Ele foi o comandante da operação da PF durante as ações de destruição de balsas de garimpo. No depoimento por videoconferência, Moriel alegou não ter sido o autor do disparo. “Eu não sei se alguém atirou nele, eu não vi, mas também não posso dizer que não atirou”, afirmou o delegado, dizendo que seu nome foi apontado como autor pelos indígenas por ser o único nome conhecido pelas lideranças e responsável pela operação.

O MPF ingressou ainda com uma ação civil pública contra a União pelo crime. Tramitam na Justiça dois processos: um civil, que cobra da União R$ 10 milhões de indenização por danos morais; e outro criminal por homicídio qualificado. O procurador da República de Itaituba, Hugo Elias Silva Charchar, responsável pelos dois processos, reiterou os pedidos de condenação tanto da União quanto do delegado. Charchar acusa Moriel de homicídio qualificado e pede que ele seja levado a julgamento pelo Tribunal do Júri.

As audiências foram presididas pela juíza federal Sandra Maria Correa da Silva. A ação de danos morais pode ser decidida de forma monocrática pela juíza. Ela também decidirá se Moriel será julgado por um júri popular. Foram ouvidas 28 testemunhas. Na ação penal, cinco testemunhas foram convocadas pelo MPF e 11 pela defesa do delegado. Na ação civil pública, foram ouvidas seis testemunhas do MPF e seis da União.

A Justiça Federal deferiu pedido dos Munduruku para eles ingressarem na ação penal, na qualidade de assistente de acusação. O pleito foi deferido com fundamento na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

As audiências foram acompanhadas pelos indígenas presentes em uma sala do Rotary Club por meio de transmissão simultânea. A reportagem acompanhou a audiência de instrução nos quatro dias em que ela foi realizada. Estiveram presentes em Itaituba apenas os indígenas e o delegado da PF Luiz Porto, que além de testemunha de defesa de Moriel, era o responsável pelo esquema de segurança das audiências.

Os Munduruku ficaram muito incomodados quando, ainda no primeiro dia da audiência, um helicóptero sobrevoou a aldeia Praia do Índio, da qual muitos indígenas se deslocaram até o fórum. A aldeia fica a apenas dez minutos de distância, em carro, do prédio da Justiça Federal de Itaituba. A mobilização do povo Munduruku ficou concentrada na aldeia para garantir a participação de cerca de 150 indígenas nas audiências.

A maioria das lideranças – caciques, mulheres e crianças mobilizados – se deslocou da das aldeias da região do rio Teles Pires. Muitos dos que foram para Itaituba estavam presentes no dia da operação. “O objetivo da vinda da comunidade era pra fazer uma manifestação pacífica aqui, em frente ao local da audiência. Em nenhum momento a gente pensou em fazer uma manifestação agressiva. Viemos para mostrar que não é só as testemunhas que estão sofrendo com isso e sim toda a comunidade”, disse Waro Biorebu.

A primeira audiência, que estava marcada para iniciar às 13h, só começou por volta das 16h30, logo após o segundo grupo de indígenas com parte das testemunhas chegarem. Ainda havia um terceiro grupo com outras testemunhas que demorou mais dois dias para chegar em Itaituba, que fica no Oeste do Pará. Ao saírem da aldeia Praia do Índio, a caminhonete que monitorava a mobilização dos indígenas saiu perseguindo o ônibus do grupo. Quando chegaram ao prédio da Justiça Federal, os indígenas se depararam com o forte esquema de segurança. Barreiras de isolamento foram colocadas ao redor do prédio para impedir o trânsito de veículos e controlar a passagem de pessoas.

Indígenas entrando no prédio da Justiça Federal, em Itaituba (PA), para prestar depoimento. (Foto Caio Mota/Proteja Amazônia)

Intimidação continuou durante as audiências

Waro Jawun Munduruku, uma das testemunhas do caso, relatou ter sofrido ainda pressão durante as audiências. “A gente fica relembrando de tudo de novo, vem na cabeça tudo que aconteceu, todo aquele terror que aconteceu na nossa aldeia. E aí a gente fica confusa, a gente fica lembrando e eles ficam pressionando a gente”. Para ela, testemunhar depois de oito anos, prejudicou a comunidade que ficou traumatizada e com sentimento de injustiça.

Ao chegar ao prédio da Justiça Federal para depor, o cacique Emiliano Munduruku foi obrigado a deixar sua borduna sob pena de ter seu depoimento cancelado, pois foi considerado, pelos policiais, que estava armado. A juíza Sandra Corrêa alegou que os policiais que também iriam depor entrariam na sala desarmados, fato que não aconteceu. O delegado Luiz Porto da PF, que era responsável pela segurança das audiências, prestou depoimento armado com uma pistola e spray de pimenta. A denúncia foi feita pela acusação e registrada na ata da audiência.

“Cheio de policial na frente a gente fica já sentido, magoado, ameaçado. E cheio de policial com arma e nós não chega com arma de fogo. A gente chega com borduna; é costume da gente, flecha é costume da gente, não é de guerra. Ninguém vai desobedecer as autoridade e eles tem que respeitar também nós e não colocar policial federal, colocar policial cheio de arma”, enfatizou o cacique.

O fato de o delegado Luiz Porto ter sido um dos agentes da PF que participou da Operação Eldorado não gerou nenhum impedimento ou constrangimento da Justiça Federal por ele comandar a segurança das audiências, onde ele mesmo participou como testemunha.

A motivação para convocar dezenas de agentes do COT e da PM, fortemente armados, para conter uma mobilização do povo Munduruku que tinha uma maioria de mulheres, crianças e idosos foi questionada pela reportagem à Justiça Federal, que não respondeu às perguntas até o momento. A assessoria da juíza responsável pelo caso informou que ela não daria entrevista. Procurado pela reportagem, o delegado Porto afirmou que não pode dar entrevista por impedimentos institucionais. A assessoria de imprensa da Justiça Federal, em Belém, também foi procurada para responder sobre a convocação do aparato policial, mas não enviou respostas.

As assessorias de comunicação da Polícia Federal, em Brasília, e nas superintendências do Pará e o Mato Grosso, também foram procuradas, mas não responderam aos questionamentos da Amazônia Real sobre o caso.

Racismo institucional

Um dos relatos mais fortes durante as audiências foi o de Kirixi Kaboybu Munduruku. Ele é irmão de Adenilson Kirixi e ficou cinco dias preso pela PF. “Eles me prenderam dentro da minha casa. Éramos nós três, eu, meu pai e mais um. Ficamos deitados no chão feridos e sangrando com os braços amarrados no sol quente. A gente não podia nem limpar nossas feridas. Os piuns (um tipo de mosquitos da região amazônica) e as abelhas lambiam as nossas feridas e a gente sem poder mexer. Isso foi tortura total pra nós. Eu pensei que ia morrer ali”. Segundo ele, os policiais não permitiam que os indígenas falassem entre si na língua e que idosos e mulheres, incluindo uma que estava grávida, ficaram detidos no sol no dia da operação na aldeia.

O irmão da vítima assassinada enfatiza que a comunidade não foi consultada pela PF sobre a construção de uma base policial na região. Segundo a liderança, os indígenas realizaram várias denúncias à Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre invasão e garimpo realizados por não indígenas dentro do território Munduruku e que nada tinha sido feito pelos órgãos do governo. Para ele a entrada da PF na aldeia foi uma violação à Convenção 169 da OIT, que garante consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas.

“Se era uma Operação Eldorado (contra garimpo), por que eles estavam dentro da aldeia? Por que eles entraram dentro das casas? Por que que eles amarraram os guerreiros? Por que que eles tiraram as mulheres grávidas, tiraram as crianças e os homens de dentro das suas casas a força? Por que a polícia não estava preparada para dialogar com as lideranças? Essas são algumas das perguntas que a gente quer saber. Se a operação era no meio do rio por que que eles estavam dentro da aldeia? Por que eles fizeram esse total desrespeito?”, questionou enfaticamente a liderança Kurap Mug’um, que vive na aldeia Praia do Índio e esteve na mobilização do povo Munduruku.

Kurap afirmou que o garimpo é uma atividade que entrou dentro dos territórios indígenas pelos “pariwat” (pessoas não-indígenas). Para ela, a PF concentrou pouco esforço para combater de fato o garimpo na região. Oito anos depois da Operação Eldorado, a exploração de garimpo dentro do território Munduruku continua intensa. Segundo Kurap, a proposta do governo Bolsonaro de legalizar mineração nas terras indígenas está intensificando ainda mais os conflitos.

Para o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Maurício Torres, a Operação Eldorado é um “caso exemplar de racismo estatal e institucional”. Torres pesquisa há mais de 20 anos conflitos causados por grandes obras de infraestrutura e mineração na região da bacia do Tapajós. Ele esteve na aldeia Teles Pires, em 2016, para registrar as consequências da operação da PF a médio e longo prazo na região. Parte deste material produzido por Torres e sua equipe foi utilizado pelo MPF na ação de indenização contra a União.

“O Estado não é dotado do preparo adequado para lidar com a pluralidade étnica existente. As peculiaridades culturais do grupo com quem a PF interagiu não foram consideradas por uma polícia que não tem a noção de como fazer isso”, afirmou o professor. “Os protocolos da operação parecem não terem sido adotados considerando as noções de diálogo, de etiqueta, de acordo… enfim, é possível que se as particularidades dos Munduruku fossem consideradas, o horror ocorrido pudesse ter sido evitado”, ressaltou Torres, que foi convocado para depor, mas teve seu testemunho cancelado por problemas técnicos na videoconferência.

Falta de transporte para as audiências

Dos nove indígenas convocados para depor no processo civil, quatro não conseguiram chegar e um havia falecido. No processo criminal dos oito indígenas listados para testemunhar, três não puderam estar em Itaituba. De acordo com Biorebu, a viagem para o município de Itaituba em voadeira e ônibus no período de chuvas impossibilitou a vinda das testemunhas que estão idosas e com problemas de saúde.

“Para que eles estivessem presentes teria que ter transporte aéreo. Só assim eles teriam como chegar aqui e não sofreriam na viagem. Por isso que a gente sente uma injustiça com a gente”, afirma a liderança. A Associação DACE da região do Teles Pires chegou a abrir um financiamento coletivo pela internet para levantar recursos para mobilização dos indígenas até a cidade de Itaituba.

A Justiça Federal também foi questionada sobre a ausência das testemunhas indígenas e se haverá uma nova audiência para ouvi-los ou se dará condições para a viagem deles, mas a assessoria não respondeu, assim como não informou prazo para a data dos julgamentos.

Os dois processos

Nesses quase oito anos da realização da Operação Eldorado existem duas ações na Justiça federal sobre o caso. Em 2014, o MPF denunciou o delegado Moriel por homicídio qualificado. A outra ação ingressada pelo MPF, em 2016, é um processo civil que pede a indenização do povo Munduruku pelas violações cometidas durante a realização da operação.

Na ação ajuizada em de 16 de junho de 2014, o MPF de Santarém (PA) afirma que “em ato continuo, não satisfeito com os tiros desferidos nas pernas da vítima, o que por si só já seriam suficientes para travar qualquer ação do ofendido, o acusado efetuou um disparo com arma de fogo na região ociptal da cabeça da vítima (pelas costas), que perfurou o crânio saindo na região frontal”, demonstrando que Sanchez agiu de forma “consciente e deliberada”. Conforme o MPF, “os policiais que participaram da operação e que foram inquiridos não ‘souberam’ relatar o acontecido, alegando que suas atenções estavam voltadas a tentar acalmar os ânimos dos indígenas”. Portanto, o MPF pede a condenação do delegado por homicídio qualificado.

Na ação civil pública contra a União, na qual pede a indenização de R$ 10 milhões por danos morais, o MPF apresenta uma série de episódios de violência de física e psicológica dos policiais contra os Munduruku. Diz que “além das agressões praticadas contra os indígenas, a comunidade teve suas casas invadidas pela equipe operacional, e, segundo relatos, foram retirados utensílios próprios para agricultura, caça e pesca”.

“Em vista da ilicitude das condutas praticadas e das graves consequências delas resultantes, forçoso é que o Ministério Público Federal proponha a presente ação civil pública em face da União, tendo em vista sua responsabilidade objetiva pelos atos dos seus agentes, com o fito de obter a reparação dos danos morais ocasionados à etnia munduruku que elas integram, os quais restaram devidamente comprovados após instrução processual”.

Delegado disse que é amigo de Raoni

A defesa do delegado afirma que o tiro não foi disparado por Antonio Carlos Moriel Sanchez. Nas alegações finais da audiência, os advogados do réu chegaram a pedir que a juíza considerasse o caso como legítima defesa se ela entendesse que o delegado deva ser julgado por um júri popular. Moriel, durante seu depoimento, passou mais de 40 minutos falando de seu histórico de relações com povos indígenas atuando como delegado da PF.

Por várias vezes, Moriel mencionou o cacique Raoni Metuktire e mostrou uma foto em que ele aparece junto ao líder indígena, alegando serem amigos. Segundo o delegado em seu depoimento, ele possuía uma relação de respeito com as lideranças indígenas durante as operações que participou.

No depoimento, o delegado se defendeu dizendo que “foi atacado pelos indígenas” no momento que os agentes da PF iam destruir uma draga de garimpo que estava ancorada no rio Teles Pires, próximo da aldeia. Ele relatou não ter atirado em Adenilson e que soube do assassinato por meio de notícias um dia depois da operação durante sua viagem de volta para Brasília.

Moriel afirmou que não acompanhou o desfecho da operação, porque estava sem condições físicas e psicológicas de continuar liderando as atividades e também afirmou que ele próprio corria risco de vida. “Por conta de ter passado o dia todo molhado as minhas pernas todas tinham ficado muito ‘assadas’ aqui no interior. Eu mal conseguia andar por conta de que tinham quase feridas aqui no meio (das pernas). O meu ombro estava inchado, o rosto estava … sentindo muita dor e eu não me sentia em condições psicológicas haja vista aquela iminente agressão que eu havia sofrido, o risco de vida que eu havia sofrido”, explicou. Quando questionado pelo MPF sobre o que ele acredita que aconteceu durante a operação para uma pessoa ter sido encontrada assassinada, o delegado afirmou que existiam “diversos integrantes na operação de diversos órgãos portavam armas letais”.

A assessoria da Advocacia Geral da União (AGU), em resposta à Amazônia Real, afirmou que a “AGU contestou a ação, dentro do prazo legal, impugnando todos os pleitos formulados pelo Ministério Público Federal no Pará, inclusive o valor pretendido a título de indenização, requerendo ao final a improcedência total dos pedidos”. Para a AGU, a ação por indenização deve ser rejeitada pela Justiça.

O procurador do MPF de Itaituba, Hugo Elias Silva Charchar, reiterou os pedidos de condenação tanto da União quanto do delegado. Sobre a alegação de legítima defesa feita pelos advogados do delegado o procurador enfatizou que “não seria um caso de legítima defesa porque a vítima estava de costas da direção do tiro e ele (Adenilson) não poderia estar atacando quem estava nas suas costas naquele momento”.

Imagem: MPF reiterou os pedidos de condenação tanto da União quanto do delegado da PF Antonio Carlos Moriel Sanchez (Foto: Caio Mota/Proteja Amazônia)

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