“As instituições estão funcionando”. Por Patrick Mariano

Na Revista Cult

No dia em o país atingiu a marca de 135 mil casos e 9.190 mortes, 7 de maio, o presidente Jair Bolsonaro atravessou a Praça dos Três Poderes com alguns representantes de setores empresariais para encontrar o presidente do Supremo Tribunal Federal. De todo o inusitado da cena e dos personagens que a compuseram, destaca-se o pronunciamento do presidente da Corte, José Antonio Dias Toffoli.

Ao iniciar sua explanação, Toffoli disse basicamente que, dois meses após o início da pandemia no país, o Brasil pode dizer que conseguiu se conduzir muito bem nessa crise, apesar do que sai na imprensa. Os ministérios funcionaram, o SUS funcionou, as instituições funcionaram. Disse também que medidas importantes foram tomadas para que não houvesse a “destruição social” da sociedade, e que temos que olhar, primeiro, o lado positivo.

No mesmo instante em que o presidente do STF demonstrava otimismo, cenas de valas em cemitérios, filas, sofrimento e falta de leitos em algumas regiões do país já estampavam reportagens e constituíam a triste iconografia do momento atual. Além do vazio significante das palavras utilizadas, há um componente de alienação completa da realidade, que ajuda a compreender aquilo que Luís Alberto Warat denominou de senso comum teórico dos juristas.

No discurso de Toffoli, os juízos de constatação tomam o lugar de juízos de explicação. O senso comum então, passa a ser o “lugar do secreto”, segundo Warat. Eis o ardil: afinal, “sem segredos, nenhum poder enigmático consegue afirmar sua magia.” (Alexandre Morais da Rosa, Decisão penal: bricolage de significantes, 2006).  É por isso que os juristas do senso comum teórico “contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte, canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades”.

Deste modo, Toffoli tem sido contumaz em se valer de expressões e gestos, com o pacto entre os três poderes, para dizer muito e, ao mesmo tempo, não dizer nada. No entanto, é indissociável que o titubeio e a proximidade com o chefe do Poder Executivo passam longe de ser apenas conveniência. O presidente do STF, ao propor pacto entre os poderes para aprovação das reformas de Paulo Guedes no primeiro ano de governo, mandou um sinal claro aos trabalhadores: no que depender dele, nenhum questionamento sobre retirada de direitos e transferência do pagamento da crise econômica para os debaixo teria viabilidade na Corte.

Outra expressão costumeiramente utilizada por Toffoli é que o STF é um “poder moderador” que atua entre e por sobre as crises para dissipá-las. Ou seja, o tribunal deixa de ser uma Corte Suprema que deve zelar pela Constituição para ocupar papel político de composição e consenso. Assim, a Constituição da República de 1988, que deveria ser o norte principiológico da atuação da Corte, é deixada em segundo plano para dar espaço para que o STF exerça o “poder moderador”.

Na entrevista que concedeu nesta segunda (11)  à TV Cultura, Toffoli justificou a falta de reação do STF aos atos de hostilização praticados pelo Presidente da República e sua turba. Disse que não é soltando notinhas que o problema será resolvido. “Juiz fala nos autos e no foro”, argumentou. É exatamente assim que uma Corte Constitucional se transforma em “poder moderador”. Agressões, achincalhes e ações autoritárias são contemporizadas e amenizadas para não melindrar a aceitação e a autoridade do presidente da Corte pelo presidente da República.

Em julgamento ocorrido no plenário do STF, Toffoli deixou para soltar como informe, ao final da sessão, que um decreto de Garantia da Lei e da Ordem publicado pelo Presidente da República restringiria a locomoção de servidores do Judiciário em período determinado. Lewandowski e Marco Aurélio se insurgiram cobrando explicações ao presidente da Corte: como teria deixado tamanho constrangimento ocorrer? Mais uma vez, Toffoli substitui o papel institucional altivo que deveria ser ocupado pelo Poder Judiciário para atender ao poder moderador, o que significa, na prática, nada menos que a submissão do Judiciário aos atos de tirania do Poder Executivo.

Ainda no exercício do poder moderador, Toffoli proferiu decisão que beneficiou um dos filhos do presidente da República, mandando suspender por meses toda e qualquer investigação no país em casos semelhantes para, depois, votar de modo contrário ao que havia determinado.

Diante dos cadáveres de 12.484 brasileiros e brasileiras é que o poder moderador se expressa para dizer que “o Brasil tem se conduzido muito bem, apesar do que sai na imprensa”. E que, – diante da evidente e grave subnotificação de casos de Covid-19, das muitas valas abertas, de brasileiros padecendo em filas de postos de saúde, pronto-socorros ou em suas casas sem qualquer atendimento, – medidas importantes foram tomadas. Ante o drama, a dor e o medo de milhões de famílias brasileiras, o que presidente do poder moderador tem a dizer é que se tranquilizem, pois as instituições estão funcionando.

Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

Foto: Sergio Lima /AFP /Getty Images /TIB

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