Francisco de Assis e o Papa: Ecologia Integral. Por Gilvander Moreira*

O Papa Francisco inicia a Carta Encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas), de 18 de junho de 2015, sobre o cuidado da Casa Comum, exclamando: “Louvado sejas, meu Senhor!”, invocando o Cântico das Criaturas cantado por Francisco de Assis. Isso é eloquente por vários motivos: Primeiro, porque “Louvado sejas” dito diante do planeta Terra e de toda a biodiversidade revela admiração e encanto pela natureza que nos envolve e da qual fazemos parte. Segundo, pedagogicamente é mais promissor conclamar para o compromisso com a defesa da nossa única Casa Comum a partir do encantamento e da beleza e não a partir do medo e da insegurança que despertam tantas mazelas socioambientais que nos colocam no meio da maior crise ecológica de todos os tempos.

Uma convicção profunda permeia toda a Encíclica Laudato Si’, convicção que o papa Francisco, carinhosamente, propõe a todas as pessoas de boa vontade: “Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros” (Laudato Si’ n. 42). Isso mesmo: nós, seres humanos, somos os animais que mais dependem de todos os outros seres vivos. Logo, é estupidez o antropocentrismo que exalta o ser humano individualmente abrindo espaço para o sistema capitalista pisar, violentar e assassinar todas as outras formas de vida.

O papa Francisco adverte já no segundo parágrafo da Laudato Si’: “Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que “geme e sofre as dores do parto” (Romanos 8,22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra” (cf. Gênesis 2,7; Laudato Si’ n. 2). Ninguém deve ficar indiferente. Francisco dirige seu apelo a todas/os: “À vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta […] Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa Casa Comum” (n. 3). Que nada nos seja indiferente! Que beleza ver o papa Francisco olhando para além dos muros da Igreja Católica e conclamando ao diálogo todas as pessoas crentes ou não, todas as igrejas, todas as religiões. E diálogo com todos os seres vivos da Terra, acrescentamos.

Ao longo da Encíclica Laudato Si’, o papa Francisco inúmeras vezes se refere ao “ser humano”, a “nosso comportamento irresponsável”, “aos seres humanos que destroem a biodiversidade”, “a humanidade”, a “atividade humana” e a termos similares, para de alguma forma chamar a atenção de todos para a gravidade da crise ecológica que se agrava cotidianamente, chegando a gerar a pandemia no novo coronavírus. Da perspectiva dos Movimentos Sociais e das ciências sociais críticas ao capitalismo, é imprescindível ponderar a existência de classes sociais com interesses antagônicos e contraditórios, na sociedade. Os principais responsáveis pela devastação socioambiental são aqueles/as que fazem parte da classe dominante, os que detêm o poder econômico e político na sociedade. A classe trabalhadora não está isenta de responsabilidade, mas é muito mais vítima do que algoz nos crimes socioambientais que ora estão sendo perpetrados. Nesse ponto, o Papa Francisco foi mais contundente em sua fala durante o Discurso aos Movimentos Sociais proferido na Bolívia, em junho de 2015.

Que bom ouvir do Papa: “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma Ecologia Integral, vivida com alegria e autenticidade. […] Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (Laudato Si’ n .10). Para Francisco de Assis, qualquer criatura é uma irmã, inclusive a morte.

Além de resgatar os ensinamentos e o testemunho libertador de Francisco de Assis, é indispensável cultivarmos a memória de todos/as mártires e lutadores por justiça socioambiental, como Chico Mendes, mártir seringueiro, sindicalista e ativista político e ambiental que lutou em favor da preservação das seringueiras e das populações que delas dependem para sua subsistência; Zé Maria Tomé, da Chapada do Apodi, mártir da luta contra os agrotóxicos; Francisco Anselmo, mártir da luta contra a instalação de Usinas de álcool e açúcar no Pantanal; José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, casal de militantes socioambientalistas do Pará, mortos por madeireiros; Augusto Ruschi agrônomo, ecologista e naturalista e de muitos outros/as.

Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar, para aí crescerem as ervas silvestres” (Laudato Si’ n. 12). Ao resgatar essa perspectiva agroecológica de Francisco de Assis, o Papa nos dá o ensejo de dizer que sem agroecologia, agricultura familiar e reforma agrária não há salvação para a humanidade. O agronegócio é antiecológico, pois com o uso indiscriminado e criminoso de agrotóxicos, está envenenando a comida do povo[1], desertificando os territórios, expulsando o campesinato para as periferias das cidades e concentrando cada vez mais a estrutura fundiária do país em propriedades capitalistas.

O papa Francisco está preocupado em “unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral” (Laudato Si’ n. 13). Temos que alertar: a categoria “desenvolvimento sustentável”, em décadas passadas, parecia apontar para uma alternativa emancipatória. No entanto, há muito tempo essa categoria foi absorvida pelas empresas e tornou-se uma peça de propaganda enganosa. Strictu sensu, falar em desenvolvimento sustentável é contraditório, pois ‘desenvolvimento’ implica crescimento econômico, progresso, o que leva ao consumo de bens naturais. E ‘sustentável’ é uma categoria da área da ecologia e implica garantir a continuidade dos ciclos de matéria e energia, para as gerações presentes e futuras. Logo, ou se desenvolve e cresce economicamente ou se busca alternativas para garantir a sustentabilidade ecológica. Diante da agudização da crise ecológica, o ético e sensato nos parece ser manter a “comunidade de vida” do planeta Terra, o que passa necessariamente por estilo de vida simples e austero e pela diminuição do desenvolvimento econômico que destrói as condições de vida. Isso também por responsabilidade geracional. O próprio papa Francisco adverte na Encíclica: “Não é suficiente conciliar, a meio-termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. […] O discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo (tergiversação) e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem” (Laudato Si’ n. 194).

Enfim, Francisco de Assis e o Papa Francisco pedem de todos/as nós dedicação amorosa e compromisso inarredável na construção de uma sociedade onde as relações sociais sejam pautadas por ECOLOGIA INTEGRAL. Esse caminho é justo e necessário para garantirmos as condições ambientais que viabilizem a continuidade da vida humana na nossa única Casa Comum, o planeta Terra[2].

02/6/2020.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Palavra Ética: Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho/MG, dia 25/01/2020. Sociedade do Bem Viver (2º programa).

2 – Palavra Ética: Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, MG, dia 25/01/2020. Vale não vale nada – 14/03/2020.

3 – Laudato Si’ 5 anos: a Ecologia Integral em tempos de coronavírus e crise climática – LIVE com Átila Iamarino, Carlos Nobre, Dom Leonardo Steiner e Cleusa Andreatta.

4 – Economia Popular, Pereira da Viola, Wilson Dias, partilha de alimentos e MAM na I Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, MG. Vídeo 23 – 25/01/2020.

5 – Pereira da Viola e Wilson Dias na I Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, MG. Vídeo 21 – 25/01/2020.

6 – Vozes proféticas na I Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, MG: 1 ano do crime doloso da Vale e do Estado. Vídeo 9 -25/01/2020.


[1] Cf. no You Tube os dois Filmes-documentários de Sílvio Tendler O Veneno está na mesa, I e II.

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

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