Com uma população de 22.000 pessoas, índios da etnia já tem 102 casos de infecção confirmados
Por Joana Oliveira, no El País
Entre a última sexta-feira e este sábado, um período de 24 horas, nove indígenas da etnia Xavante morreram com sintomas de covid-19 no Mato Grosso, incluindo um bebê. Três delas já tiveram o diagnóstico confirmado e outras seis ainda aguardam o resultado dos exames, segundo informam ao EL PAÍS lideranças locais. Caso se confirme que o coronavírus foi o responsável por todas essas mortes o número de vítimas fatais pela doença entre os Xavante, que têm uma população de 22.000 pessoas, chegará a 21 desde o início da pandemia. Mais uma amostra de como a doença já se espalha entre os índios brasileiros, colocando em risco até os que vivem isolados, sem contato com outros grupos.
Já há entre os Xavante 102 casos da doença confirmados, além de 61 suspeitos, de acordo com o último boletim publicado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xavante, ligado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), na última quinta-feira (25/06). Esses números, no entanto, divergem das cifras oficiais da própria Sesai, que contabiliza cinco mortes e 84 infecções entre esses indígenas. O Ministério da Saúde informou que a divergência se deve ao tempo em que as notificações locais demoram para ser incluídas no sistema geral. O DSEI confirmou a ocorrência dessas nove mortes nas últimas 24 horas, por exemplo, mas o Ministério da Saúde ainda não.
O novo coronavírus já chegou em pelo menos quatro dos nove territórios da etnia que se distribuem ao longo de 14 municípios do Mato Grosso. O primeiro óbito entre esse povo foi o de um bebê, em 11 de maio, na terra Marãiwatsede. Ali, 12 indígenas foram infectados e dois morreram. Agora, o território mais afetado é a Terra Indígena de São Marcos, que concentra 64 dos 102 casos confirmados. “O vírus está se alastrando muito rápido. Esta semana, uma senhora teve que ser transferida para uma UTI em Cuiabá, onde faleceu”, conta ao EL PAÍS Clarêncio U’repaiwe Tsuwté, presidente do conselho distrital da comunidade.
Foi precisamente para alertar os indígenas de São Marcos sobre a gravidade da doença que o líder xavante Crisanto Rudzo Tseremeywá gravou um vídeo de um leito hospitalar, na última segunda-feira (22/06), com um aparelho de respiração. Ele e os pais foram infectados em junho. O pai continua internado em uma UTI, a mãe faleceu na quarta-feira (24/06). “Prestem muita atenção no que vou falar, se você está se sentindo mal, a saúde não está boa, seu peito está doendo, se está sentindo falta de ar, não espere muito, você deve buscar o tratamento. Quando a doença já estiver tomando conta, é muito difícil curar. Quando começa a fechar o pulmão é muito difícil para salvar, a nossa imunidade é muito baixa para essa doença”, alerta Crisanto, em seu próprio idioma.
Desde seu contato com os não indígenas, principalmente nos anos 1940, os Xavante desenvolveram problemas crônicos como diabetes e hipertensão, comorbidades que os tornam ainda mais vulneráveis ao novo coronavírus. “As famílias de lideranças estão muito assustadas, já que são os líderes que têm mais atividades fora das aldeias. Uma família enterrou quatro pessoas em quatro dias”, conta Ana Paula Sabino, que trabalha há 20 anos com os Xavante e atua no Instituto Socioambiental (ISA) na Frente Parlamentar pelos Direitos dos Povos Indígenas, junto a Joenia Wapichana.
Ana Paula também conta sobre uma moça Xavante grávida de 42 semanas cujo bebê não nascia e ela, por medo da contaminação, resistia a ir ao hospital. Quando finalmente foi levada, constaram que ela tinha covid-19 e que seu bebê havia morrido no útero. “Muitos não querem buscar ajuda médica, porque têm medo de sair da aldeia e não voltar mais. Preferem se tratar com os xamãs e os remédios caseiros”, diz Ana Paula, que critica a DSEI por não orientar a comunidade sobre a dimensão da pandemia. “Até duas semanas atrás, tratavam como se fosse uma gripezinha”, afirma. Em nota, o Ministério da Saúde informou que orienta os trabalhadores da atenção à saúde indígena a priorizarem o trabalho de busca ativa domiciliar de casos de síndrome gripal e síndrome respiratória aguda grave (SRAG), realizando a triagem dos casos para evitar a circulação de pessoas com sintomas respiratórios. A Sesai diz que enviou 1.920 testes de tipo sorológico para o DSEI Xavante.
Rafael Weree, Xavante e assessor parlamentar no Congresso para políticas indigenistas e um dos facilitadores da PL 1142, que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19 nos Territórios Indígenas, confirma os relatos de Ana Paula. “No início, os Xavante não acreditavam muito na gravidade da doença, mas agora que estão perdendo pessoas próximas, todo mundo está assustado. Não existe ação por parte da DSEI, não nos dão orientação”, diz ele, acrescentando que, em muitas aldeias, faltam remédios até para tratar outras doenças.
Rafael tem sentido de perto o impacto do coronavírus nas aldeias: já perdeu tios e tias para a covid-19 e, no último domingo, a avó de 103 anos. “É uma dor muito grande, porque ela era uma sábia, a matriarca da nossa terra indígena. No total, contamos 20 mortes em dez dias. Estamos enterrando duas pessoas por dia”, denuncia. Na quarta-feira, foi lançada, com apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a campanha S.O.S. Xavante, que visa captar recursos para instalar uma Unidade Avançada de Saúde próximo às aldeias Xavante e fornecer material sanitário e segurança alimentar para que esses indígenas possam manter-se em isolamento nas aldeias.
Diferente de alguns povos indígenas da região norte do país, onde muitos têm adentrado mais na floresta para se proteger do coronavírus, os Xavante não têm para onde fugir em um Estado dominado por plantações de soja e pastos para a pecuária. “A única coisa que podemos fazer é parar de ir na cidade comprar mantimentos, adotar o isolamento total”, diz Rafael. Clarêncio U’repaiwe Tsuwté, no entanto, cobra uma solução do Governo brasileiro. “A Constituição diz que se os povos originários são ameaçados por um desastre natural ou uma epidemia como essa, é obrigação do Estado nos realocar para outro território e garantir nossa segurança. No passado, eles já nos moveram por interesse próprio”, afirma.
Clarêncio se refere à ditadura militar brasileira, que, em 1966, usou aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para retirar os Xavante de Marãiwatsedé de suas terras originais e transportá-los até São Marcos, para permitir as atividades da empresa agropecuária Suiá-Missú, que se instalou na região com o apoio do Governo militar. A situação provocou uma epidemia de sarampo entre os indígenas, que matou entre 75 e 120 Xavante. Para Ana Paula, a situação se repete. “Essa região é um vale dos esquecidos. O que está acontecendo agora é um genocídio da mesma forma que ocorreu na ditadura”, lamenta.
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Meninos Xavante. Foto de Rafael Salazar