Presidente da Fundação Palmares não propôs medidas de proteção aos descendentes de escravos, diante da pandemia, e nomeou olavista para cuidar do patrimônio afro-brasileiro; ele já chamou movimento negro de “escória maldita” e ofendeu Zumbi
Por Márcia Maria Cruz, em De Olho nos Ruralistas
Em vez de propor políticas de atenção e proteção aos quilombos neste momento de avanço da epidemia da Covid-19, o jornalista Sérgio Nascimento de Camargo leva adiante a política de desmonte de direitos da população negra — em curso no governo Bolsonaro — ao fazer da Fundação Cultural Palmares espaço para o combate ideológico. Desde os primeiros casos de morte pela doença em territórios quilombolas, em abril, não houve por parte dele qualquer posicionamento público. Tampouco foram propostas pela fundação políticas de auxílio às comunidades durante a pandemia.
Enquanto o número de casos e de mortes por Covid-19 não para de crescer no Brasil, o jornalista deixa claro o alinhamento a Bolsonaro ao voltar seus esforços para a cruzada cultural que vem implementando na Fundação Cultural Palmares desde que assumiu.
Sérgio Camargo é o personagem da 12ª reportagem da série Esplanada da Morte, que retrata, desde o dia 28 de julho, o papel de ministros e de outros executivos do governo Bolsonaro na ampliação de casos de Covid-19 e na perpetuação — desde o dia 1º de janeiro de 2019 — de uma política da morte.
Enquanto ele não se posiciona em favor de políticas públicas para as comunidades quilombolas, as organizações se mobilizam para tentar frear o novo coronavírus. Feito de maneira autônoma, o monitoramento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) com o Instituto Socioambiental aponta 4.102 casos confirmados e 152 mortes pela Covid-19 nas comunidades, conforme boletim divulgado na quarta-feira.
Nesta sexta-feira (14) foi publicada troca no comando da Coordenação de Articulação e Apoio às Comunidades Remanescentes dos Quilombos, do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro. A coordenadora Tauiny Lasmar Moura dos Santos foi substituída por Victor Hugo Diogo Barboza, aluno de Olavo de Carvalho, conforme destaca em currículo enviado à fundação.
AUTOR DE VÍDEO NAZISTA FOI QUEM INDICOU O DIRIGENTE
Camargo foi indicado o cargo pelo secretário Roberto Alvim, demitido da Secretaria de Cultura após divulgar vídeo em que imitava discurso nazista de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler. Mesmo com a saída de Alvim e diante de tentativas na Justiça de tentar impedi-lo, o jornalista assumiu o cargo em fevereiro, quando o novo coronavírus assustava autoridades de saúde em todo o mundo. Desde que assumiu, Camargo voltou seus esforços para desconstruir as políticas de igualdade racial.
Resultado de lutas dos movimentos negros e do ordenamento político e jurídico da Constituinte de 1988, a Fundação Cultural Palmares foi criada em 22 de agosto de 1988. Leva o nome do quilombo mais famoso da história do Brasil, comandado por Zumbi, um dos heróis — tecnicamente falando, ele está no Panteão dos Heróis, na Praça dos Três Poderes — da pátria.
A indicação de Alvim foi endossada por Bolsonaro, em 27 de novembro de 2019. Mas a nomeação foi suspensa, poucos dias depois, em 4 de dezembro, pelo juiz federal substituto Emanuel José Matias Guerra, da 18ª Vara Federal de Sobral (CE). Na ocasião, o juiz afirmou que a indicação contrariava “frontalmente” os motivos determinantes para a criação da Fundação Palmares. Em 12 de dezembro, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região manteve a suspensão, em caráter liminar.
A nomeação foi liberada dois meses depois pelo Superior Tribunal de Justiça. O STJ derrubou, em 12 de fevereiro, a liminar e autorizou a nomeação. Os movimentos negros recorreram, mas, no último dia 05, a Corte Especial do STJ negou recurso da Defensoria Pública da União, mantendo Camargo na presidência da fundação.
CAMARGO DISSE QUE ESCRAVIDÃO FOI TERRÍVEL, ‘MAS BENÉFICA’
Sérgio Camargo coleciona, nos perfis nas redes sociais, ataques aos movimentos negros. Em 19 de novembro, publicou em perfil no Facebook que o Dia da Consciência Negra celebra “a escravização de mentes negras pela esquerda” e, portanto, “precisa ser abolido”. No dia 27 de agosto, nova investida: “A escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes. Negros do Brasil vivem melhor que os negros da África”.
Uma reportagem do Estadão divulgou áudio em que Camargo, durante uma reunião, chamou o movimento negro de “escória maldita”. “Essas polêmicas que ele cria, neste ativismo de direita contra o povo negro, a serviço do governo Bolsonaro, acabam criando situação de insegurança por parte das comunidades quilombolas, que ficam desprotegidas”, diz o deputado federal Bira do Pindaré (PSB/MA), representante dos quilombos na Câmara.
O dirigente vem de família com tradição na mobilização da questão étnico-racial. Ele é filho do poeta, escritor e ativista Oswaldo de Camargo, cujo histórico de militância vem desde 1955. Autor de “Raiz de um negro brasileiro” e “O negro escrito – apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira”, Oswaldo foi o coordenador de literatura do Museu Afro Brasil, em São Paulo, e participou da primeira edição dos Cadernos Negros, uma importante revista de literatura que revelou autores como Conceição Evaristo.
O padre Marcos Silva, missionário redentorista que trabalha com comunidades quilombolas da Paróquia São João Batista, em Bom Jesus da Lapa, analisa as falas do dirigente:
— A mentalidade do atual presidente da Fundação Palmares não é de quem conhece a situação da vida dos quilombolas, suas dificuldades e privações. Ele discursa do alto, e muito alto que chego a pensar sair da órbita terrestre. Discurso desligado da realidade e descomprometido com a vida de tantos irmãos e irmãs.
ELE ENDOSSOU VETOS A MEDIDAS EMERGENCIAIS NOS QUILOMBOS
Os discursos de Camargo, segundo o padre Marcos Silva e outros líderes ouvidos pelo observatório, contribuíram para o aumento do índice de mortes por Covid-19 em comunidades quilombolas, que sofrem historicamente com as dificuldades de acessarem com eficácia o sistema de saúde brasileiro. “No momento que vivemos a pandemia do novo Covid-19 a realidade fica mais complexa e o que vemos é a ineficiência do olhar de quem poderia promover e investir nesse momento em programas emergenciais de prevenção e atendimento”, afirma o padre.
A omissão do governo também cria situação de insegurança para os quilombos, de acordo com o deputado Bira do Pindaré: “Embora a gente não possa afirmar que ele tenha envolvimento direto com a questão da pandemia, mais relacionada com a pasta da Saúde, ele acaba de alguma forma contribuindo, na medida em que, durante todo este período, ao invés de focar, preocupar-se com as comunidades quilombolas, que são campo prioritário de sua atenção, da força institucional do órgão, ele se dedicou o tempo a criar e movimentar ataques contra o próprio interesse das comunidades quilombolas”.
Ele se refere aos ataques a Zumbi dos Palmares, ao Dia da Consciência Negra e, recentemente, ao movimento Vidas Negras Importam. Chegou a definir Zumbi como “um filho da puta que escravizava pretos”.
Não houve por parte de Sérgio Camargo articulação para criação de políticas emergenciais para o enfrentamento à pandemia. Ao contrário, ele endossou vetos do presidente ao Projeto de Lei 1142/2020 que propunha medidas de suporte aos povos do campo. “Camargo não contribuiu em nada”, reforça Bira. “Não teve nenhuma atitude diante disso. Há uma completa falta de empatia por parte do presidente da fundação para com as comunidades quilombolas”.
Os vetos foram publicados, em 8 de julho, atingindo os quilombolas e outros povos do campo. O parágrafo 1º do artigo 9º assegurava a distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias quilombolas. O parágrafo 4 do artigo 10 determinava à União a criação de programa específico de crédito para quilombolas para o Plano Safra 2020.
Bolsonaro vetou, ainda, o parágrafo quinto do artigo 10 que garantia a inclusão das comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares como beneficiárias do Programa nacional de Reforma Agrária. Por fim, o artigo 19, que facilitava, em áreas remotas, o acesso ao auxílio emergencial nas próprias comunidades.
LICENCIAMENTO EM QUILOMBOS MIGROU PARA O INCRA
Na gestão de Sérgio Camargo a Fundação Cultural Palmares perdeu importância na regularização fundiária dos territórios quilombolas. Publicada no Diário Oficial no dia 8, a Portaria nº 1.223 ratifica a transferência da Fundação Cultural Palmares para a Diretoria de Governança Fundiária do Incra a coordenação do licenciamento ambiental em terras ocupadas por remanescentes de quilombos, criando um núcleo específico de licenciamento na Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ).
Givânia Silva, da coordenação geral da Conaq, aponta o desmonte das políticas públicas para as comunidades quilombolas. A reformulação das atribuições da DFQ trazida pela portaria nº 1.223 aumenta de forma considerável a influência de ruralistas sobre a gestão fundiária nos territórios quilombolas. Um processo que, segundo Givânia, se inicia com a própria vinculação do Incra à Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, sob a direção do ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Luiz Antônio Nabhan Garcia.
O artigo. 3º do Decreto nº 4.887, de 20/11/2003, reserva à Fundação Cultural Palmares a competência pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro geral. O reconhecimento é fundamental para a regularização fundiária das comunidades. No entanto, nos dois anos de governo de Bolsonaro, as titulações estagnaram. Em 2019, foram expedidos títulos para os quilombos Invernada dos Negros, em Campos Novos (SC), e Invernada Paiol de Telha, em Reserva do Iguaçu (PR). Em 2020, não foi expedido nenhum.
A Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas mostra que, em 2019, foram abertos dezesseis processos de titulação de quilombos. Entre janeiro e maio de 2020, apenas um. Os números são bem inferiores à média de 77 novas análises territoriais entre 2016 e 2018, durante o governo Temer, e apenas uma fração dos 148 processos anuais abertos pelo Incra entre 2004 e 2009, durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva.
PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NÃO QUIS DAR ENTREVISTA
A Fundação Palmares passa por momento de esvaziamento de suas atribuições constitucionais, de liderança na promoção de igualdade racial no país, conforme o então presidente Zulu Araújo exaltou em discurso, em 2009, reafirmando compromissos com a promoção da cidadania e da diversidade — valores não exatamente caros ao governo Bolsonaro.
Na comemoração de 21 anos da fundação, Zulu destacou o papel da fundação “na luta pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e na defesa dos quilombolas, na valorização, preservação e difusão das manifestações culturais afro-brasileiras e na campanha pela cotas na universidade e no registro da capoeira como Patrimônio Cultural Brasileiro”.
Nos primeiros atos como presidente, Camargo excluiu sete órgãos colegiados: o Comitê Gestor do Parque Memorial Quilombo dos Palmares; a Comissão Permanente de Tomada de Contas Especial; o Comitê de Governança; o Comitê de dados abertos; a Comissão Gestora do Plano de Gestão de Logística Sustentável; a Comissão Especial de Inventário e de Desfazimento de Bens e o Comitê de Segurança da Informação.
De Olho nos Ruralistas solicitou entrevistas a Sérgio Camargo. Não houve retorno.
–
Foto: Olayinka Babalola via Unsplash.com / MPF