Duplamente afetados: povos indígenas no Para e Amapá enfrentam a pandemia, fome e invasão de seus territórios em isolamento social

A mobilização e articulação do Cimi Regional Norte II reuniu quase 100 mil reais em doações destinadas as ações de enfrentamento à covid-19

Por Adia Spezia, no Cimi

Com seis meses de isolamento social e de avanço do novo coronavírus às aldeias, o desafio de encontrar medidas para enfrentar a pandemia e a invasão dos territórios permanece intenso. Ainda em março, as equipes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte II, que corresponde aos estados do Pará e Amapá, por medida de segurança, se distanciaram dos territórios indígenas, mas não dos povos.

Com a decisão de paralisar as atividades de forma presencial nos territórios, mesmo estranhos à realidade imposta com o isolamento, a maior preocupação levantada pelas equipes do Cimi nos dois estados foi a subsistência nas aldeias. O levantamento de quantas cestas básicas seriam necessárias para amenizar a chegada da fome junto com a pandemia nos territórios foi o primeiro passo. Sem condições de arcar com todas as despesas financeiras, pois também se fazem necessários itens de higiene e proteção individual, a estratégia foi criar uma rede e fortalecer as articulações com organizações parceiras, com o objetivo de somar os esforços no enfretamento à covid-19 junto aos povos indígenas e fazer o monitoramento do vírus nas aldeias.

Ao todo, o Regional Norte II do Cimi conta com sete equipes, e junto com essa rede fez chegar quase duas mil cestas básicas aos povos que vivem nas aldeias e em contexto urbano. Dada a urgência, a prioridade na entrega das cestas básicas “foram as famílias que tinham anciões, mulheres com crianças e gestantes”, explica Haroldo Pinto, coordenador do Regional.

Os alimentos também chegaram aos estudantes indígenas da Universidade Federal do Pará (UFPA), que não puderem retornar aos territórios. A presidente da Associação do Povos Indígenas Estudantes na UFPA (APYEUFPA), Virginia Arapaso, resume a importância desse gesto para os estudantes. “Gratidão ao Cimi pela assistência aos que ficaram aqui em Belém. Agradeço imensamente a todos pelas doações, contribuiu muito conosco”.

Kits de higiene e limpeza com máscaras, álcool gel e sabão líquido foram enviados para os povos com que o Cimi tem atuação nos dois estados. Medicamentos, oxímetros, termômetros, equipamento de proteção individual (EPIs), kits com pratos, copos e talheres foram enviados às aldeias que solicitaram auxílio à Rede. Já a ampliação do sistema de abastecimento de água e a construção de banheiros sanitários deu-se a partir das demandas apresentadas pelas próprias comunidades. A ala indígena do Hospital de Campanha em Marabá recebeu a doação de respirador e termômetro infravermelho. Segundo Paulo Dutra, do Cimi Regional Norte II, essa doação veio do Papa Francisco.

Os povos passaram a adotar suas próprias medidas de proteção, criaram as barreiras sanitárias e equipes de saúde para monitorar o vírus e as invasões de seus territórios por madeireiros, grileiros e garimpeiros, o que aumentou durante a pandemia. A comunicação por meio de aplicativos de trocas de mensagens foi intensificada, por onde chegam as denúncias das invasões, mas também são enviados os informativos com orientações e cuidados em relação à doença.

À medida que o vírus avança nos territórios, a estratégia adotada por boa parte dos povos foi ir para o interior das áreas, para a mata. Como descrevem as lideranças, “se isolar é dificultar a contaminação pelo vírus”. As práticas ancestrais, com o uso da medicina tradicional, a valorização dos pajés e a agricultura tradicional para fortalecer a autossustentação das aldeias também contou com o apoio do Regional e da rede de apoiadores. Enxadas, terçados, machados, foices, materiais de pesca, anzóis, linhas malhadeiras e combustível foram enviados às comunidades para facilitar a pesca e o cultivo do roçado. Já os remédios tradicionais estão sendo enviados às aldeias por meio das equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

As doações mobilizadas pelas equipes do Regional Norte II do Cimi chegam a quase 100 mil reais, valor destinado às ações de enfretamento à covid-19 junto aos povos indígenas em contexto urbano e nos territórios. Seu Ezidio, do povo Amanaye, conta que as doações chegaram a seu povo quando eles mais precisavam. “Por conta dessa situação nós ainda estamos em isolamento, meu povo agradece muito e vamos pedir a Deus que abençoes a todos que tem nos ajudado”.

As doações chegaram nas aldeias e aos indígenas em contexto urbano pelo esforço e solidariedade de organizações como a Sociedade de Direitos Humanos do Estado do Pará (SDDH), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Norte 2, Frades da Ordem Franciscana Menor (OFM), Associação e Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus (ALSF), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dioceses e REPAM. A Fundação Nacional do Índio (Funai) em Marabá foi acionada pelo Cimi e contribuiu com a entrega das doações nas aldeias.

A covid-19 nos territórios

Quanto mais próximo dos centros urbano vivem os povos indígenas, maior tem sido os desafios no enfretamento ao novo coronavírus. Expulsos de seus territórios e com atendimento de saúde precarizado, as comunidades têm denunciando a pouca atuação da Sesai, a falta de teste e o estado precário das Casas de Saúde do Índio (CASAIs). Seis meses se passaram e o governo federal ainda não adotou nenhum Plano Emergencial de combate à pandemia junto aos povos.

Na Terra Indígena (TI) Trocará, do povo Assurini, por exemplo, “a covid-19 deixou seu rastro de morte entre as lideranças. O cacique Puraque, sua irmã Iranoa Assurmi, Vanda Assurini e Sacamirame Assurini perderam a batalha para a doença”, conta Paulo.

A situação é ainda pior entre os indígenas do povo Warao. Imigrantes venezuelanos, algumas famílias contam o apoio e solidariedade do grupo criado pelo bispo Auxiliar de Belém, Dom Antonio de Assis Ribeiro. Outros Warao estão em abrigos da prefeitura de Belém com assistência do governo do estado. Porém, muitos moram em casas alugadas, “inclusive 23 famílias que vivem em Ananindeua (PA) estão em uma área onde foi planejado a construção de um porto, a área alaga durante o inverno”, conta Haroldo. O terreno foi cedido pela Associação de Moradores do Residência Cidadania e por ser as margens do Maguari tornasse um risco a parte, já que o rio dá acesso as onze ilhas que estão dentro da área territorial de Ananindeua.

Na Região Médio Tapajós e Alto Tapajós, onde se encontram os povos Munduruku, Apiaká e Kayabi o avanço da covid-19 chegou em muitas aldeias. No Baixo Tapajós, os povos Arapiun, Munduruku, Kumaruara e Tupinambá tem enfrentado o avanço do vírus e os invasores em seus territórios.

No Oiapoque, quase todas as aldeias foram atingidas pelo coronavírus, e ocorreram pelo menos cinco óbitos indígenas, a maioria deles entre os Karipuna. “A CASAI local está em péssimas condições e não consegue oferecer bom atendimento aos pacientes, não raro são encontrados casos de covid-19”, relata a equipe do Cimi Norte II no Oiapoque. Ela ainda lembra que a realização dos cultos evangélicos nas aldeias também vem contribuindo com aglomerações.

Não diferente tem sido a realidade dos indígenas que vivem na TI Parque do Tumucumaque, em Macapá (AP). Preocupante é a descrição do Regional. Com acesso exclusivamente por via aérea e agravada com a pandemia, o maior número de saídas do isolamento tem sido para a capital, Macapá. As saídas vão desde a obrigatoriedade legal – prova de vida, documentos civis, carteiras de trabalho, benefícios sociais, auxílio maternidade e programas governamentais – até acesso a saúde, compras de mantimentos e educação escolar e acadêmica.

As lideranças estão preocupadas com a adoção de tratamentos da medicina Karaiwa (não indígena), com ivermectina, azitromicina e prednisona, e por essa razão as aldeias intensificaram o uso da medicina tradicional na prevenção e cura. Paulo conta que “a região é a mais abandonada no estado no Amapá, além das melhorias no transporte está sendo construída uma proposta de cooperação técnica entre ALSF e o DSEI, assim como investimentos nosso na saúde local”. A Unidade Apoio Primário Indígena (UAPI) tem ganho uma atenção a parte do Regional.

Diante da realidade enfrentada também na sua região, a equipe do Cimi em Marabá protocolou oficio junto ao governo do estado do Pará e ao Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) listando a realidade destes povos e cobrando uma ação emergencial para atender os povos, em especial os Surui/Aikewara que se encontram em situação bastante grave. Além do Cimi, o documento foi assinado por três Universidades, o bispo de Marabá Dom Vital Corbellini e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). “A ação teve repercussão e logo uma equipe de saúde passou a atender os Surui/Aikewara”, conta o coordenador do Regional.

Este tem sido o caminho usado pelas lideranças para denunciar os maus tratos, invasões dos territórios e o descaso com a saúde indígena. As denúncias têm sido realizadas junto ao Ministério Público Federal e à Comissão de Direitos Humanos.

Campanhas

Para o enfrentamento da covid-19 junto aos territórios indígenas o apoio de pessoas físicas, organizações parceiras e agências de cooperação nacional e internacional têm sido fundamentais. Em todo país o Cimi tem organizado redes de solidariedade e criado campanhas de arrecadação de recursos. Sem um Plano Emergencial por parte do governo federal para barrar o avanço do vírus e refrear a morte de indígena, os povos contam com a solidariedade de todos.

Quem recebe as doações faz questão de agradecer, como seu Luis Warao que vivem com sua família no Pará. “Agradeço pelas doações, em especial as cestas de alimentos, vamos comer, agradeço a todos. Muito obrigado”. Expulsos de seus territórios, os povos que vivem nos centros urbanos enfrentam diariamente a fome neste contexto de pandemia.

Com o objetivo de estimular doações e ações que deem condições aos indígenas de permanecer no isolamento social, o Cimi mantém em seu site uma campanha de arrecadação de recursos. Os valores são revertidos em cestas básicas, kits de saúde e higiene e também destinados à manutenção das barreiras sanitárias e do trabalho de formação e informação nos territórios. Se desejar apoiar o trabalho da entidade e sua presença junto aos povos indígenas, saiba como abaixo:

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A maior preocupação levantada pelas equipes do Cimi nos dois estados foi a subsistência nas aldeias. Foto: CITA

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