Casos de Covid-19 explodem no território Sateré-Mawé, no Amazonas

Por: Steffanie Schmidt, em Amazônia Real

Uma decisão do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Parintins contribuiu para que os casos do novo coronavírus mais que quintuplicassem na sua jurisdição, sobretudo na Terra Indígena Andirá Marau. Em 31 de maio, o órgão retirou funcionários e a ajuda logística de embarcação e combustível da barreira sanitária montada no rio Andirá, sob a alegação de que este não é papel da instituição. Até aquela data, o bloqueio ajudava a deter o avanço da Covid-19 entre os indígenas do povo Sateré-Mawé, registrando apenas 30 casos confirmados e uma morte. Na terça-feira (6), o número chegou a 164 indígenas contaminados e 5 mortes. A TI Andirá Marau abrange os municípios de Barreirinha, Maués e Barreirinha, no Amazonas.

A ausência de medidas de bloqueio expôs ao coronavírus as comunidades da Terra Indígena Andirá Marau, na região do Baixo Rio Amazonas (AM). O povo Sateré-Mawé vem denunciando a situação de risco pelo menos desde junho. Em 2 de junho, lideranças do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM) protocolaram uma nota de repúdio denunciando a retirada da barreira sanitária pelo Dsei Parintins.

O número de casos recentes do novo coronavírus na área indígena sob responsabilidade do Dsei Parintins aumentou 107,5% desde 1º de setembro. Somente na semana passada, 35 casos foram confirmados entre indígenas, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculado ao Ministério da Saúde.

Para a liderança Obadias Garcia, presidente do CGTSM, a retirada da equipe do Dsei coincidiu com a queda nos casos de Covid-19 no Amazonas, aumentando o fluxo de pessoas. “O povo começou a sair sem controle, sem máscara e sem teste de covid. Ficou uma total desorganização. Aí o resultado foi o desastre”, afirma.

A barreira sanitária era formada por uma força-tarefa de órgãos federais, municipais e organizações indígenas. Ela começou a funcionar em 28 de março na entrada da área indígena pelo rio Andirá, próximo à Aldeia Ponta Alegre. Nesse local, os indígenas já mantinham um posto de vigilância para questões de segurança do território, em uma operação conjunta entre Funai, Dsei Parintins, Prefeitura de Barreirinha e indígenas Sateré-Mawé. Uma outra justificativa do Dsei para abandonar a barreira foi que a região enfrenta ainda a ameaça de garimpeiros e traficantes de drogas.

Diante da gravidade da situação, a Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Coipam) apresentou denúncia ao Ministério da Justiça e à Segurança Pública, ao Departamento de Polícia Federal no Amazonas, à Procuradoria Geral da República no Amazonas, ao Comando Geral da Polícia Militar e ao Dsei Parintins, ainda no início de junho.

Atualmente, o município de Parintins é o que detém o segundo maior número de casos confirmados de Covid-19 no interior do Amazonas, perdendo apenas para Coari. Nas últimas 24 horas foram notificados 54 casos, com 54 pessoas internadas; um total de 5.448 de contaminados e 128 óbitos, desde o início da pandemia. No dia 24 de setembro, a Prefeitura do município determinou um novo toque de recolher: das 20 às 5 horas entre segunda-feira e sábado, e das 16 às 5 horas aos domingos. Praias e bares estão fechados.

Já Barreirinha confirmou 6 novos casos da Covid-19 segundo dados mais recentes, notificados nesta terça-feira (06), somando 1.044 casos confirmados até o momento e 14 óbitos. Maués informou um óbito ocorrido entre os dias 06 e 07, totalizando 37 até o momento, mas não divulgou novos casos recentes. O município acumula um total de 1731 contaminados pela doença até o momento. Os casos do novo coronavírus na região do Baixo Rio Amazonas ajudam a explicar o aumento de casos no estado amazonense.

Lideranças históricas contaminadas

O tuxaua-geral da TI Andirá Marau, Amado Menezes, de 64 anos, que assinou a nota de repúdio, está hospitalizado com coronavírus desde 23 de setembro no hospital de referência da região, Jofre Cohen, em Parintins. Ele mora na aldeia Ponta Alegre, uma das mais numerosas da região do Rio Andirá, e onde aproximadamente 30 indígenas foram contaminados nas três últimas semanas, de acordo com o presidente do CGTSM, Obadias Garcia.

Por ocasião da nota de repúdio, em entrevista aos veículos Parintins Press e Parintins 24h, o tuxaua Amado Menezes questionou o gestor do Dsei. “Não tem amor pela causa indígena, se tivesse não tinha retirado o povo dele e deixou os indígenas na mão. Ele não está trabalhando de acordo com a saúde indígena, ele está prejudicando, maltratando o povo indígena aqui e na região do rio Marau onde retirou o pessoal também”, criticou.

O boletim mais recente do Dsei Parintins (6 de outubro) informa que são 164 indígenas infectados na região. No entanto, o boletim não especifica os casos por etnia, já que o Dsei também abrange o povo Hexkariana. Cinco óbitos foram registrados, sendo dois deles lideranças históricas no rio Andirá e no rio Marau.

No dia 28 de setembro, um dos líderes Sateré-Mawé da região do rio Andirá, Plácido Dias de Oliveira, 80, morreu de Covid-19. Ele era tuxaua da aldeia Boa Vista e um dos fundadores do CGTSM. A região do Marau, dentro da área do município de Maués, perdeu seu líder, o tuxaua Otávio dos Santos, 67, da aldeia São Benedito, no dia 16 de abril, também vítima da doença.

A justificativa do Dsei

Por meio do Ofício nº 185/2020 enviado à Funai, o coordenador do Dsei Parintins, José Augusto dos Santos Souza, comunicava a retirada de sua equipe da barreira no dia 31 de maio pela necessidade de realocá-los nos 13 Pólos-Base e nas Casas de Saúde Indígena (Casais) que estariam desfalcados com o afastamento de funcionários para quarentena por contato com casos suspeitos e, em alguns casos, contaminação. 

Membros do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé e indígenas da região são críticos da gestão atual do Dsei Parintins desde o período anterior à pandemia. Eles  questionam a entrega das Unidades Básicas de Saúde – em alguns casos, prédios foram iniciados, mas não concluídos – e a falta de investimento em transporte eficiente, comunicação via internet ou via rádio na área indígena. Sem isso, fica prejudicada a atuação das 26 equipes multidisciplinares que atuam nos 13 pólos base em sistema de revezamento a cada 30 dias. Eles alegam que alguns técnicos chegam a comprar, do próprio bolso, baterias e outros equipamentos para consertar o sistema de radiofonia.

Já no contexto da pandemia o questionamento é quanto à política de atuação na contenção do novo coronavírus. Eles apontam para a intransigência e a falta de cooperação com outros órgãos em atuação na localidade, além de motivação política, orientada por Brasília, para a retirada da barreira.

Em liminar concedida no mês de junho e referendada em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o governo federal adotasse uma série de medidas para conter a pandemia de Covid-19 entre indígenas, incluindo plano de atuação e adoção de barreiras sanitárias.  

“Já ocorreu óbito e já tem pessoas hospitalizadas e isso preocupa muito a realidade do povo. O hospital de Parintins está entrando em colapso e em Barreirinha não é diferente. É preciso que a barreira volte a funcionar”, afirmou o secretário-geral do CGTSM, Jecinaldo Sateré.

No dia 3 de setembro, 45 tuxauas estiveram reunidos na escola agrícola São Pedro, no rio Andirá, para solicitar apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Prefeitura de Barreirinha municipais no reforço da barreira. Eles definiram um protocolo de segurança sanitária. A entrada deverá ser comunicada previamente ao tuxaua, liderança local, e à Funai. E só terá autorização para entrar quem testar negativo para a doença.

O Dsei Parintins informa que não recebeu convite para a reunião, se manifestou contrário a qualquer tipo de aglomeração. O coordenador do Dsei Parintins, José Augusto dos Santos Souza, foi além e disse que a reunião realizada tinha cunho eleitoreiro. “Outra coisa, o momento não permite aglomerações, reuniões em aldeias como essa que aconteceu, risco máximo de propagação do vírus entre os líderes indígenas, a maioria idosos”, disse ele.

Segundo Santos Souza, em um acordo feito verbalmente com a Funai a promessa era de auxiliar a barreira sanitária por 30 dias, que acabou se estendendo para 60. “Não é função do Dsei ficar fiscalizando quem entra e quem sai. Estamos cumprindo nossa parte com equipes atuando dentro da área, contratando equipe de reforço e de resposta rápida, além de fecharmos parcerias para conseguir fazer o pronto atendimento no local”, explicou.

O coordenador do Dsei Parintins já sinalizou que não pretende integrar a nova força-tarefa na barreira e esclareceu que somente podem entrar na Terra Indígena pessoas que cumpram a quarentena, façam o teste rápido e que sejam servidores de órgãos autorizados a operar na área.

A Amazônia Real procurou a Funai para ouvir a respeito do assunto, mas o órgão não respondeu até a publicação desta matéria.

Comunidades fizeram nova barreira

Nos últimos dias, as próprias comunidades indígenas decidiram reorganizar, por conta própria e sem apoio oficial, a barreira sanitária. Está proibida a entrada de não indígenas. Estão liberados apenas as equipes de saúde e os itens de primeira necessidade, como alimentos e produtos de limpeza.

O fluxo de pessoas entre aldeias e cidade é bastante comum, principalmente por conta de parentes que trabalham ou estudam nas sedes dos municípios próximo à TI Andirá Marau e voltam para a área indígena aos finais de semana e em datas comemorativas. E na parte urbana de Parintins restaurantes, praças, mercados e até praia, inclusive na área indígena, presenciaram aglomerações, assim que os casos de Covid-19 começaram a baixar. 

“Teve ainda aqueles que ficaram presos na cidade e, quando reabriram a barreira, retornaram para as aldeias, o que pode ter influenciado na contaminação também. Em uma pesquisa da Secretaria de Educação, percebemos um número grande de professores que atuam nas comunidades, principalmente na região do rio contaminados”, afirmou o técnico em educação da Secretaria Municipal de Educação de Parintins, Ednelson Sateré.

No início dos anos 2000, um estudo já constatava intensos fluxos migratórios tanto no interior da TI Andirá Marau como em direção às cidades próximas. Publicado em 2011, o artigo científico “Demografia de um povo indígena da Amazônia brasileira: os Sateré-Mawé” mostrava que mais da metade de 7,5 mil indígenas entrevistas já haviam feito algum movimento migratório. Um número que cresce para 87% entre os Sateré-Mawé que moram na área urbana.

Durante o tempo em que a barreira sanitária foi efetiva, houve um certo controle na entrada e saída de pessoas. “Outras invasões de produtos como bebidas, drogas, e também de madeireiros e pescadores acabaram sendo coibidos com o posto de vigilância que se tornou fixo como barreira sanitária”, afirma o professor Joede Sateré. Mas o bloqueio não era tarefa fácil de ser cumprida nem mesmo pelos próprios indígenas. 

“A alimentação indígena já é muito dependente de alimentos de fora, alimentos industrializados, e essa dependência agora nos pega numa situação difícil. A economia indígena uma parte é baseada em agricultura da família, mas a outra são benefícios previdenciários”, explica o secretário do Conselho Geral da Tribo Sateré Mawé, Jecinaldo Sateré. No início da pandemia, um acordo com as agências bancárias permitiu que os saques de benefícios fossem feitos por meio de procuração.

Saúde precária

“A situação da saúde indígena é critica, é grave. O Dsei Parintins foi negligente em vários momentos ao não fortalecer a barreira sanitária. O governo Bolsonaro diz que liberou milhões para combate à pandemia na área indígena, mas não houve nenhum tipo de ação preventiva. Todos têm que se unir em torno dessa problemática, senão não sobreviveremos”, afirma Jecinaldo Sateré.

Na falta de conclusão da entrada das dez unidades básicas de saúde reclamadas pelos indígenas de Andirá Marau, a atenção primária vem sendo feita por meio da ação em parceria com ONGs que atuam na região. A Expedicionários da Amazônia montou Unidades de Atendimento Primário Indígena (UAPI), em parceria com o Dsei, que fornece os técnicos, para atuação em oito unidades dentro da TI. Nesse locais são atendidos os casos de menor gravidade de covid-19.  

“O Dsei Parintins não dá publicidade das suas ações, não divulga os casos diários de indígenas contaminados, de óbitos. Procuramos acompanhar por meio dos dados da Prefeitura de Parintins, que faz com base nos casos que atendem e por meio da nossa própria rede de contatos”, afirma o advogado Sateré-Mawé, Tito Menezes. 

Outra ajuda que chegou à localidade foi feita pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que fez doação de pequenas quantias em dinheiro, em média R$ 5 mil, para ajudar no dia a dia do funcionamento das Casas de Saúde Indígena (Casai).  

Sobre as Unidades Básicas de Saúde em construção, o coordenador do Dsei Parintins, José Augusto dos Santos Souza, afirma que sete unidades tiveram a obra concluída e já foi aberto processo de licitação para compra de equipamentos. As outras três não foram concluídas porque o prazo de contrato da empresa encerrou. Foi aberto um procedimento administrativo contra a empresa. Souza afirmou que presta conta das ações à Sesai, que publica as informações em seu sítio eletrônico.

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