Resta ver como esse pacto de Brasília resistirá aos problemas futuros da economia. Não se trata de favas contadas, porque pela frente há uma recessão prolongada, um aumento da miséria e do descontentamento geral.
No GGN
Vamos entender melhor a natureza do pacto que está se formando no país. Bem-sucedido, transformará definitivamente Brasília no centro único de poder, com uma centralização jamais vista desde o regime militar.
Trata-se de um ensaio de consolidação do poder do chamado Estado Profundo, que já vinha sendo desenhado desde que houve a desmoralização do poder do voto, com o golpe do impeachment.
Vamos tentar entender os principais personagens desse jogo:
Peça 1 – O Estado Profundo
São as instituições que dominam o Estado, independentemente do partido político do momento. A governabilidade de cada presidente eleito passa por pactos com essas corporações, através de funcionários de carreira aliados.
Mesmo com a instituição de concurso público, esses poderes são ocupados por dinastias que se perpetuam, sempre voltadas para seus próprios umbigos, convivendo apenas com seus iguais, sem familiaridade maior com a diversidade do país, com as características de uma sociedade democrática.
Especialmente nas áreas militar, jurídica e diplomática, há essa entropia de um país sem povo, que habita Brasília.
Como são poderes organizados nacionalmente, há uma força centrífuga permanente, de centralização na cúpula, impedindo voos autônomos na base. O poder da cúpula é diretamente proporcional à capacidade de manter a base disciplinada.
Dentro do sistema de freios e contrapesos do modelo democrático, as instâncias hierárquicas das corporações públicas são peças de equilíbrio. Mas o grande moderador é o voto – “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. É o voto que permite a renovação dos quadros, impede a estratificação das lideranças corporativas e o controle de todos os atos públicos pelo Estado profundo.
É no by-pass ao voto que se tentará consolidar esse pacto Estado Profundo-mercado-Bolsonaro, através da aposta em um Bolsonaro domesticado como candidato à reeleição, e a inviabilização política de quem ousar ficar no seu caminho.
Peça 2 – o período PT
No período pós-Constituinte, Fernando Henrique Cardoso logrou manter um pacto com o Estado profundo. Lula manteve o controle, consolidando laços com o setor real da economia, trabalhadores, lideranças empresariais, movimentos sociais.
Mas não evitou que tornasse alvo da primeira demonstração de força das corporações, no “mensalão”, conduzido por três figuras oriundas do corporativismo público: os Procuradores Gerais Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, e o Ministro do STF (egresso do Ministério Público Federal) Joaquim Barbosa. Foi o primeiro ensaio de guerra das corporações com o PT. Mas não foi suficiente para o partido aprender.
Craque na montagem de táticas brilhantes de sobrevivência e políticas sociais fundamentais, Lula cometeu erros estratégicos relevantes.
* Políticas macroeconômicas que foram enfraquecendo cada vez mais o setor industrial, que poderia ter sido seu grande aliado, fortalecendo a financeirização da economia e o ente mercado.
* Mudança na remuneração do alto funcionalismo público, atraindo uma geração nova, totalmente despida de vocação pública, e tentando emular hábitos e ambições do espírito yuppie do mercado financeiro.
* Não perceber que a ascensão social, promovida pelo próprio PT, geraria nas novas classes um sentimento de emular a classe média tradicional. Venceram pela meritocracia e não pelas oportunidades abertas pelas políticas públicas.
* Incapacidade de promover reformas centrais em três áreas críticas: mídia, Justiça e mercado.
* “Republicanismo” na nomeação de juízes para os tribunais superiores.
* Depois das ameaças do “mensalão”, escudou-se em um pacto político de alto risco, com o loteamento de estatais, especialmente a Petrobras, e a concentração das alianças políticas e empresariais em um terreno minado, das empreiteiras de obras públicas.
O PT era o outsider no Sistema. Tentou ganhar seu espaço democraticamente buscando na representatividade junto ao país real. Mas se perdeu no caminho e na incompreensão sobre as formas de conviver com o Estado profundo.
Peça 3 – a polarização política com a aliança ultraliberal
A Lava Jato foi o instrumento utilizado para a implosão da cidadela petista. Deu-se gás para um grupo de procuradores e delegados provincianos. Garantiu-se o apoio ilimitado da mídia. Permitiram-se todos os abusos até que sobreveio o impeachment.
Essa aliança ultraliberal, dando sustentação à Lava Jato, é o fio que amarra todos os episódios posteriores, o impeachment do governo Dilma, o interregno de Michel Temer e, mais à frente, o apoio a Bolsonaro.
A hegemonia ideológica do mercado é garantida pelo financiamento de mídia, partidos e políticos, pela perspectiva de empregos futuros para a alta burocracia pública e pela cooptação do Judiciário através de escritórios de advocacia próximos e convites para palestras remuneradas.
Obviamente, tem que haver uma justificativa “legitimadora”, um álibi intelectual para essa adesão incondicional à destruição do Estado e sua abertura aos grandes negócios públicos. O álibi intelectual foi o documento Ponte para o Futuro organizado por intelectuais ligados ao mercado e alta tecnocracia pública.
A influência do mercado se dá através do martelar incessante dos grupos de mídia em mantras liberais, praticando a retórica do “terrorismo” econômico. Se a Lei do Teto for revogada, o país acaba. Se as taxas de juros longas o aumentam meio ponto, é sinal de fim do mundo. Se a reforma administrativa acabar com a estabilidade do emprego, o país estará salvo. Toda privatização é virtuosa, independentemente de análise de casos.
O desmonte das políticas sociais e a reabertura dos grandes negócios na área pública começaram com o governo Michel Temer e associados – representando o centrão. Bolsonaro é apenas uma continuidade trapalhona.
Mas a liberdade conferida à Lava Jato promoveu uma enorme confusão institucional, colocando sob ameaça as cúpulas dos poderes que constituem o Estado profundo. E a eleição de Bolsonaro ampliou essa confusão. Daí a necessidade da freada de arrumação para refazer o pacto.
Peça 4 – os abusos da Lava Jato
Assim que Bolsonaro foi eleito, montei o quadro abaixo tentando organizar os pedaços do sistema político brasileiro, após a implosão.
No quadro, importam dois grupos especiais.
O primeiro, as instituições que compõem o chamado Sistema, o pacto histórico tradicional que garantiu a democracia precária brasileira pós-Constituinte. Compõem a coalizão a chamada Mídia 1 (sistema Globo), Congresso, Supremo Tribunal Federal, Alto Comando das Forças Armadas, e (até aquela época) a Procuradoria Geral da República.
Nos demais quadros, novos-velhos atores políticos que surgem no embalo da confusão midiática, institucional e popular criada pela Lava Jato.
No quadro, previa os futuros fatores de conflito, sempre que o álibi “delenda Lula” ficasse enfraquecido.
◆ Base x Cúpula
◆ Democracia x Ditadura
◆ Pauta de costumes
◆ Luta de classes.
Era essa a salada geral. A Lava Jato trouxe pela primeira vez a insubordinação ao sistema Judiciário. Com Bolsonaro, pela primeira vez entraram em cena outros atores políticos, não ligados a partidos, e dispostos a levar o freio aos dentes e a romper com a hierarquia das instituições – o que seria o caos generalizado.
Com esse quadro, Bolsonaro tentou montar sua estratégia golpista. De um lado, aumentando sensivelmente a presença militar na administração. De outro, estimulando os radicais através do Gabinete do Ódio.
São esses movimentos que fizeram o Estado profundo se mover.
Houve encontros entre Ministros do STF e Alto Comando Militar que passaram a convicção de que os militares não iriam se meter em uma aventura política.
Com essa garantia, procedeu-se ao cerco sobre Bolsonaro.
Peça 5 – a pizza
As duas armas centrais foram o inquérito sobre o gabinete do ódio e as investigações do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro sobre Flávio Bolsonaro. E o golpe final foi a decisão de Celso de Mello de divulgar o vídeo da reunião ministerial e o obrigar Bolsonaro a depor sob vara.
Aí se percebeu que o dispositivo militar de Bolsonaro não passava de um Exército de Brancaleone, ele estava a um passo do impeachment e seus filhos a meio metro da cadeia.Toda a valentia de Bolsonaro acabou. E ele teve que reconstruir sua estratégia.
Nessa revisão, há uma limpa na salada política. Atores novatos, como os youtubers, são afastados do jogo. Afastam-se todos os terraplanistas verborrágicos.
Mas Bolsonaro é mantido. Primeiro por se render à real politik do Estado profundo. Depois, por exercer um papel essencial da falsa legitimação da democracia mitigada brasileira: o político com votos.
No plano político, Bolsonaro trouxe o Centrão de volta, abrindo cargos políticos e Ministérios com porteira fechada.
Nas outras frentes, acenou para o Supremo e para a advocacia com a indicação do novo candidato a Ministro do STF. E se reconciliou com o presidente da Câmara Rodrigo Maia que, por sua vez, aproximou-se do STF para conseguir a reeleição, ao lado do presidente do Senado, David Alcolumbre. Ao mesmo tempo, enquadrou seus dois filhos mais tresloucados, Carlos, que é desequilibrado, Eduardo, o típico fanfarrão de academia. E colocou na linha de frente das negociações o mais vulnerável deles, Flávio, mas, por outro lado, o único que fala lé-com-cré, atuando como representante comercial e político da família.
Aproximando-se de Maia, conseguiu colocar de lado o Ministro da Economia Paulo Guedes, um trapalhão incorrigível. E, no momento, equilibra-se entre a renda básica e os acenos ao mercado, com a Lei do Teto e as tais reformas.
O banquete antropofágico que selou a aliança teve a presença de próceres do Supremo, do Tribunal de Contas, do Congresso.
Desenha-se, por aí, o mais ameaçador pacto contra a democracia, porque envolvendo o Estado profundo, o Supremo, o Congresso cooptado e o trunfo político de Bolsonaro: a renda básica permitindo recuperar a popularidade perdida.
Peça 6 – a divisão do butim
O pacto está sendo desenhado no dia a dia, e, se bem-sucedido, será a maior ameaça já conhecida à democracia brasileira e aos direitos sociais.
Consistirá dos seguintes movimentos.
1. Bolsonaro garantirá a legitimação de quem foi eleito pelo voto, dentro do conceito de democracia mitigada, Tentará a reeleição recorrendo a práticas populistas, mas persistindo no desmonte de todas as políticas públicas.
2. O Supremo facilitará o trabalho do Estado profundo, atuando como agente moderador de alguns excessos –na questão do meio ambiente e nos ataques do gabinete do ódio. Mas será essencial para manter a oposição manietada e Lula fora do jogo. E também como avalista final de todas as loucuras ultraliberais e do desmonte de todas as redes de proteção social. Algumas das destruições planejadas serão irreversíveis. Na linha de frente, o Judiciário prosseguirá no lawfare às vozes dissidentes. Tudo isso seguindo os procedimentos formais de uma democracia mitigada.
3. Tribunal Superior Eleitoral, Polícia Federal e Tribunal de Contas da União também poderão ter papel relevante na inviabilização da oposição, da mesma maneira que a Polícia Federal hoje em dia.
4. O centrão terá à sua disposição Ministérios inteiros, de porteira fechada.
5. Se passar a reforma administrativa proposta, o governo terá à sua disposição milhares de cargos para barganha política.
6. O mercado terá o desmonte do Estado, o esvaziamento das políticas sociais e os grandes negócios com as privatizações, através do mantra das “reformas”.
7. As Forças Armadas terão aumento no orçamento e um amplíssimo mercado de trabalho no setor público para militares da ativa e da reserva. Militares ocupando cargos estratégicos na máquina pública, abrirão mercado para lobistas atuando junto ao setor privado – como ocorreu no período militar.
De seu lado, Bolsonaro terá plena liberdade para prosseguir com as seguintes políticas:
1. Desmonte da política educacional.
2. Esvaziamento dos órgãos de financiamento da ciência e tecnologia.
3. Abandono de todas as políticas inclusivas, de saúde ou de educação, e entrega de verbas públicas a instituições religiosas ou particulares especializadas em explorar a deficiência.
4. Desmonte das políticas culturais.
5. Desmonte dos sistemas de fiscalização ambiental.
6. Abertura de mercado para milícias, indústria do lixo, indústria de armas, cassinos e outros setores associados.
No Pacto da Pizza, as corporações terão privilégios preservados. A conta do funcionalismo público será bancada pela rapa, os que atuam na prestação de serviços aos cidadãos. Cada vez menos o cidadão será objeto central das políticas públicas, com o desmonte final do Estado social.
No momento, ainda é um ensaio de pacto. Aqui se apresentou o desenho final, caso seja bem sucedido.
Resta ver como esse pacto de Brasília resistirá aos problemas futuros da economia. Não se trata de favas contadas, porque pela frente há uma recessão prolongada, um aumento da miséria e do descontentamento geral.
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Foto: Luis Moura /Estadão