No UOL
Quando ouvi pela primeira vez, em 19 de maio de 2016, as conversas gravadas pelo ex-presidente da Transpetro e delator Sérgio Machado com três peemedebistas fundamentais – Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney -, a atenção se concentrou nas expressões mais fortes e que gerariam intensa repercussão na época, como “o grande acordo nacional”, “com o Supremo com tudo” e o plano de “estancar a sangria” gerada pela Operação Lava Jato.
Essas incríveis conversas que tive a oportunidade de ouvir inúmeras vezes, em looping, por horas, entre perplexo e fascinado, representaram um acesso privilegiado a bastidores do impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
Os diálogos seriam enfim revelados ao país quatro dias depois, em 23 de maio de 2016, em manchete da “Folha de S. Paulo”, onde eu trabalhava na época. Naquele mesmo dia, Jucá pediu demissão do cargo de ministro do Planejamento do presidente Michel Temer.
Dilma havia sido afastada da Presidência, por votação no Senado, na manhã do dia 12 daquele mês – eu só obtive as gravações depois do afastamento.
Sempre achei, desde o começo, que um trecho das conversas não havia recebido o destaque que merecia nas análises dos observadores políticos, nas ruas e nas redes sociais. Tratava-se de uma revelação lateral mas muito preocupante feita por Jucá numa das conversas com Machado. O então senador disse que estava conversando – ou consultando, sentindo a temperatura – com “alguns ministros do Supremo” e de comandantes militares a respeito do impeachment. E, principalmente, disse que recebeu um aval dos militares.
“Conversei ontem com alguns ministros do Supremo. Os caras diz ‘ó, só tem condições de [inaudível] sem ela. Enquanto ela estiver ali, a imprensa, os caras querem tirar ela, essa porra não vai parar nunca’. Entendeu? Então… Estou conversando com os generais, comandantes militares. Está tudo tranquilo, os caras diz que vão garantir. Estão monitorando o MST, não sei o quê, para não perturbar.”
Era estarrecedor esse tipo de conversa porque, depois dos 21 anos da longa noite dos arbítrios, ilegalidades e crimes cometidos pela ditadura militar, lá estava de novo parte da elite política brasileira abrindo espaço para militares opinarem sobre assuntos políticos civis. Nós sabemos como esse filme acaba.
Passei dias me perguntando: quem eram os comandantes? Eles souberam da movimentação dos peemedebistas e nada disseram a Dilma? Não consideraram alguma lealdade à “comandante-em-chefe” das Forças Armadas para permanecer, no mínimo, à margem do processo? O que significa “monitorar” o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)? Essa atividade foi feita pela inteligência militar?
Importante lembrar que a conversa gravada entre Jucá e Machado é do começo de março de 2016, portanto semanas antes do rompimento do PMDB com o governo Dilma, que só ocorreria no final daquele mês e selaria o destino político da presidente.
A conspiração contra Dilma me parece bem demonstrada no trecho em que Jucá afirma que os militares iriam garantir que não houvesse perturbação – isto é, iriam impedir que protestos de rua atrapalhassem o processo do impeachment no Congresso. O contexto do diálogo (“querem tirar ela”) deixou bem claro para mim que esses generais deram o sinal verde para a traição de Temer e do PMDB.
Infelizmente Romero Jucá nunca esclareceu – e, a bem da verdade, até onde me lembro, também nunca foi perguntado sobre isso em público – quem seriam esses comandantes e esses ministros do STF. Jucá faria um bem imenso à memória nacional se decidisse, um dia, falar abertamente. Espero que ele não carregue para a eternidade esse importante capítulo da história do país. Jucá, um animal político absolutamente informado sobre tudo em Brasília, testemunha e protagonista de episódios que marcaram a República nos últimos 30 anos, prestaria um grande serviço se contasse direitinho essa parte de sua vida.
Foi o que, aparentemente, começou a fazer o ex-presidente Temer. Quatro anos depois do impeachment, conforme a “Folha de S. Paulo” divulgou no último dia 12, Temer lança agora uma espécie de livro de memórias, fruto de conversas que manteve com uma pessoa de sua confiança, o escritor e filósofo Denis Rosenfield.
O filósofo é um visceral e antigo crítico do MST, tendo escrito, desde os anos 90, inúmeros artigos na imprensa contra o movimento dos trabalhadores rurais sem terra. Chegou a escrever um livro que trata o MST como uma “ameaça à democracia”. Isso naturalmente o aproxima do pensamento da cúpula militar direitista. Ele também defendeu abertamente a queda de Dilma.
Em dezembro de 2015, por exemplo, Rosenfield disse ao site “Congresso em Foco” que o impeachment era “aconselhável e constitucional” e afirmou que o país “afundaria” em três anos se algo não fosse feito. No governo Temer, Rosenfield chegou a ser citado como possível ministro da Defesa, o que não se confirmou. Era mencionado na imprensa como “conselheiro pessoal” do presidente.
Pois bem, a “Folha de S. Paulo” informou – no que foi confirmada pelo “Estado de S. Paulo” nesta segunda-feira (2) -, que no livro Temer revelou ter mantido interlocução com as Forças Armadas antes do impeachment de Dilma e com ninguém menos que o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, e o general Sérgio Etchegoyen, que no seu governo se tornaria o chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional).
Seriam esses os mesmos militares que, nos idos de março de 2016, haviam dito a Jucá que iriam “garantir” o impeachment? É muito provável que sim, já que Jucá era braço direito de Temer e um dos principais, se não o principal, articulador político do PMDB em Brasília – muitas pessoas já não confiavam no deputado Eduardo Cunha para essa tarefa.
Mas também não se pode afirmar com certeza. De novo, a explicação caberia a Jucá e ao próprio Temer. E, claro, imediatamente aos dois generais. Um deles, Etchegoyen, já veio a publico e negou, em entrevista ao colunista do UOL Chico Alves, que tenha participado de algum complô. Mas nada falou sobre supostas conversas com Jucá, preocupações sobre o MST e “garantias” militares.
De qualquer forma, não resta dúvida de que o relato de Temer está em perfeita sintonia com as revelações que Jucá fez a Sérgio Machado. Agora já temos dois figurões da República dizendo basicamente a mesma coisa, que adversários de Dilma conversaram com o meio militar e que altos generais se meteram, de um jeito ou de outro, no processo de impeachment de uma presidente da República.
Os pedaços de informação que vieram à tona até agora a respeito do papel dos militares na crise política indicam, acima de tudo, que essa história – a história das circunstâncias e forças políticas que levaram ao impeachment de Dilma – está longe de ser inteiramente desenhada. Está “em progresso”, como se diz hoje em dia. Temer, com seu livro, dá um pequeno e tímido passo que confirma o caminho que Jucá já havia sinalizado em 2016, quando foi gravado sem saber.
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Michel Temer assiste à sessão da Câmara que aprovou a admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff ao lado de Henrique Eduardo Alves, Eliseu Padilha, Romero Jucá e Rodrigo da Rocha Loures. Imagem: Divulgação Folhapress – 17.abr.2016