O neto de parteira Guarani e Kaiowá passou em medicina

Por Ana Mendes, no Amazônia Real

Jemerson Franco da Silva, um jovem indígena Guarani e Kaiowá de 22 anos, estudou durante três anos para passar em medicina. “Ninguém acreditava em mim, só a minha vó e minha família”, afirma ele, que disputou vagas no mesmo curso em diversas universidades durante os últimos anos.

“Eu sabia que não iria passar de primeira, mas queria testar”, completa, contando sobre a dificuldade em ocupar uma vaga na universidade pública, um lugar historicamente elitista. 

“As cotas são fruto de muita luta e mesmo com cotas temos poucos indígenas na universidade”, complementa. Jemerson entrou por cotas raciais no início deste ano na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. 

Cotista com orgulho e consciência política, Jemerson é o primeiro jovem da Terra Indígena Amambai, no Mato Grosso do Sul, a passar no curso de medicina na universidade pública, mas não é o primeiro Guarani e Kaiowá a cursar medicina. Ele conta que uma das suas grandes inspirações foi a jovem indígena Dara Ramires Iemes, de 25 anos, que também cursa medicina na UFSM. Ela, que ingressou no curso em 2015, é da aldeia Tey Kuê, em Caarapó.

“Ela postava vídeos na internet e eu me estimulava vendo aquilo.”, afirma. Agora, Jemerson quer incentivar outros parentes. “Quero mostrar pra eles que é possível”.    

Estudando com a ajuda de aplicativos no celular desde o último ano do Ensino Médio, Jemerson teve também outra grande inspiração, essa dentro da própria casa: a avó Lúcia Assis Moraes, a dona Lulu. 

Dona Lulu tem 75 anos e, além de ajudar a pagar as passagens para o jovem fazer o vestibular, também ensinou o amor pela saúde e pelo cuidado com os outros.

A avó de Jemerson é parteira. Ela faz parte do Coletivo Kuña Puru’a Rye Guasu, apoiado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. “Eu vejo que a medicina tradicional Guarani e Kaiowá não é muito diferente da medicina do não indígena. O médico tem que escutar o paciente, conversar com ele. Minha avó sempre fez isso”, diz o neto.  

Jemerson tem o desejo de unir o conhecimento que irá aprender na universidade com o conhecimento tradicional que cotidianamente aprende com a sua avó e com outros homens e mulheres indígenas que tem o domínio das plantas e das rezas. 

“A medicina tradicional não fica parada no tempo, ela se atualiza junto com o mundo”, afirma o estudante, contando sobre como, na sua aldeia, a avó e outras erveiras confeccionaram o próprio álcool para combater o novo coronavírus durante a pandemia. “A gente não deixou de usar o álcool e a máscara fornecida pela equipe de saúde, mas fizemos o nosso também”.

Dona Lulu ensina o neto sobre o tipo de cuidado que o corpo Guarani e Kaiowá precisa. Diferentemente dos brancos, para combater as doenças os indígenas, além de usar os remédios da mata e da medicina convencional, também cantam e rezam. “Uma vez uma mulher grávida foi ao hospital parir e queriam fazer uma cesárea, minha vó foi chamada e pra criança nascer ela cantou. Então, o parto pôde ser natural”, conta. 

O canto é um remédio para os indígenas. “Ele serve para as pessoas que já estão doentes, mas também para evitar que a doença chegue”, explica Jemerson. 

Cantando, os Guarani e Kaiowá enfrentam a pandemia da Covid-19. É o que explica Dona Lulu que recentemente, com o incentivo do neto, fez uma conta no Instagram para mostrar as ervas que utiliza na feitura dos remédios tradicionais. “Eu faço o meu álcool em gel, mas ele só funciona com o canto”, ela revela. 

Por conta da pandemia, Jemerson tem aulas remotamente. Chegou a viajar para Santa Maria, no início do ano, mas voltou após 20 dias.

 O desafio das aulas à distância é a instabilidade da internet na aldeia. Entretanto, o lado positivo é que o menino está ao lado da avó e continua aprendendo com ela. “Agora mesmo ela já tá me ensinando sobre novos remédios,” conta. 

No dia 19 de outubro, ele foi homenageado na Câmara de Vereadores de Amambai pelo esforço e por ser o primeiro indígena do município a passar em medicina. 

“Depois de me formar eu quero voltar pra minha comunidade e aplicar o conhecimento aqui”, afirma Jemerson, vislumbrando o futuro promissor.  

Ana Mendes – É documentarista. Atua como fotojornalista multimídia para os principais veículos da mídia independente brasileira, tais como Repórter Brasil, Amazônia Real, Agência Pública e The Intercept Brasil. Nas suas documentações, utiliza a metodologia da fotografia compartilhada e do ‘bem querer’ elaborada pelo fotógrafo J.R Ripper, com quem trabalha há muitos anos. Essa metodologia consiste em compartilhar o material bruto (fotos e vídeos) com as comunidades e povos fotografados na expectativa de selecionar um material condizente com a autoimagem daquela coletividade. Em 2019, o ensaio Pseudo Indígenas, no qual Ana faz intervenções em tinta, nanquim e carvão em imagens dos povos Guarani-Kaiowá e Akroá-Gamella foi vencedor de um dos mais importantes prêmios nacionais de fotografia, o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger. Ana faz parte do IMAGENS HUMANAS, um projeto de J.R Ripper. Para conhecer mais o trabalho dela, acesse: www.imagenshumanas.com.br ou instagram @anamendes_anamendes

Por conta da pandemia, Jemerson Franco da Silva tem aulas remotamente no Rio Grande do Sul. Na fotografia ele está a avó Dona Lulu (Foto por cedida por Poty Reñoi) 

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