Nosso repórter conta como os moradores têm dificuldades para dormir, conseguir combustível, água potável e até dinheiro em espécie diante do apagão de energia que já dura cinco dias
Por Dyepeson Martins, na Agência Pública
Em um dia comum, a temperatura de quase 40 graus e as medidas restritivas para conter a proliferação da covid-19 seriam mais do que suficientes para evitar a aglomeração de pessoas nas ruas do Amapá. Contudo, apesar da preocupação com a saúde e o desconforto provocado pelo calor, a população precisou escolher entre correr os riscos de contaminação ou atender necessidades básicas, como comer e dormir.
A escolha desagradável se deu por conta do cenário de caos que se instalou no estado na última terça-feira (2), após o apagão que deixou 89% da população sem energia elétrica — algo entre 765 mil pessoas. Conseguir água potável, combustível, sinal de celular e dinheiro em espécie é um desafio para as pessoas que moram em Macapá e nos outros 12 municípios afetados pela maior crise no sistema elétrico dos últimos anos na região.
O apagão aconteceu dois dias após o Governo do Amapá manter — por mais sete dias — algumas medidas restritivas no estado em função do aumento de casos e internações por covid-19.
“Ou a gente corre risco de pegar o corona ou corre risco de ficar com fome”, disse a autônoma Deura Costa, que estava há mais de sete horas em uma fila para tentar sacar dinheiro em um dos poucos caixas-eletrônicos que funcionam na capital. “Tenho em casa minha mãe de 81 anos e um neto de dois anos, mas na minha geladeira não tem nada”, lamentou.
O relato da autônoma reflete a realidade de milhares de moradores desesperados para conseguir dinheiro e comprar, além de comida, materiais de higiene e itens indispensáveis neste período, a exemplo de lanternas, pilhas e cubas de isopor para armazenar alimentos. Cartões de débito e crédito podem ser usados em alguns supermercados que funcionam a base de gerador na região central de Macapá e Santana, cidade localizada a 17 quilômetros da capital. Mas para fazer uma compra simples – de um quilo de arroz, por exemplo – é necessário ter paciência e enfrentar uma fila imensa.
Passar tantas horas na busca por um serviço é uma realidade que todos precisaram se adaptar, inclusive eu. Para abastecer o carro que usei na produção da reportagem, passei cinco horas na fila de um posto de combustível, onde conheci um jovem de 25 anos, que preferiu não se identificar. Sem máscara e em tom de revolta com a atual situação, ele disse ter esquecido da pandemia para sobreviver. “A gente tá mais preocupado em não morrer de fome e de sede do que com o vírus”, ressaltou.
Por conta do longo tempo de espera, os motoristas preferem ficar com os veículos desligados para ir empurrando os carros e motos para frente até chegar na bomba de combustível. “É um jeito de evitar o desgaste do carro nesse liga e desliga e ainda economizar o pouco combustível que a gente tem”, explicou o vendedor Carlos Gonçaves, de 43 anos, que utiliza o carro para o trabalho. “A gente não consegue táxi e nem motorista de aplicativo. E se acabar a gasolina de casa e a gente precisar ir, sei lá, para o hospital?”.
Para quem já está dentro do hospital a preocupação é outra. A rede particular funciona com geradores e a rede pública foi energizada em uma medida de emergência adotada pela Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA). Mesmo assim, o fornecimento ainda é problemático.
“Só hoje foram quatro vezes [que o fornecimento de energia foi interrompido]. Ela vai e volta [a energia elétrica] e a gente fica preocupado com os pacientes”, contou uma enfermeira do Hospital de Emergências de Macapá, onde também são atendidas pessoas diagnosticadas com covid-19.
“No dia [que iniciou o apagão] foi difícil para todo mundo. A gente ‘tava’ fazendo manualmente o oxigênio porque o equipamento estava desligado”, explicou a enfermeira, sobre o processo para ambuzar oxigênio por meio de um equipamento manual para estabilizar um paciente.
Em frente ao Hospital de Emergências também encontrei a Luceide Serrano. Mesmo tendo 70 anos e, com isso, fazendo parte do grupo de risco de contaminação em meio a pandemia, ela não conseguiu ficar em casa por conta da preocupação com irmão, internado por causa da covid-19.
“Ele precisa de uma UTI e até agora não conseguimos”, contou a aposentada sobre a busca por uma vaga no Hospital Universitário (HU), onde são concentrados os atendimentos de alta complexidade para os pacientes diagnosticados com o novo coronavírus.
“Eu não sei se a energia tá comprometendo o atendimento dele, eu não sei. Mas a gente fica preocupado, né?”, indagou a idosa, reclamando da falta de informações para os familiares dos pacientes.
O último boletim do Governo do Estado indica mais de 52 mil casos confirmados de covid-19 e 751 mortes. Atualmente, em isolamento hospitalar nas redes pública e privada são 202 pacientes, sendo 128 casos confirmados e 74 suspeitos.
À noite, a iluminação no hospital é da porta para dentro. Nas ruas ao redor, a escuridão é quase que total se não fosse pelos faróis dos carros, lanternas e velas dos moradores. Com uma dessas velas nas mãos, Eliezer Bezerra me recebeu na porta da casa dele, no Centro de Macapá. Aos 65 anos, ele diz só ter presenciado uma situação semelhante na infância. “Naquela época era tudo muito difícil. Mas agora?”.
Eliezer, como os outros moradores, tem dificuldade em dormir à noite. No Amapá, ar condicionado e ventilador são necessidades, não luxo. O clima quente e úmido faz qualquer pessoa suar muito em um lugar sem refrigeração. Mesmo com todas as janelas de casa abertas, ter uma noite confortável é impossível. “Tô me acostumando a dormir só de ‘manhãzinha’, quando fica menos quente”, relatou o aposentado.
Hotéis que possuem gerador esgotaram todas as vagas ainda na primeira noite de apagão. A administração de um dos hotéis com o qual entrei em contato, me informou ter montado “um serviço diferenciado para abrigar novos hóspedes”. Pagando uma taxa diária de R$ 100, uma pessoa pode dormir em um colchonete — que precisa ser comprado pelo hóspede – em um salão com dezenas de outras pessoas, mesmo em período de pandemia. Até a oferta deste serviço está esgotada.
“Não daria para pagar um serviço de hotel para toda a minha família, mesmo que tenhamos um salário razoável”, lamentou a dona de casa Zânia Ferreira. “Melhor ficar no calor em casa, do que ficar aglomerado e pegar covid-19 depois”, disse a mulher, que faz parte do grupo de risco por ter feito um transplante de rim e, consequentemente, tem imunidade baixa por causa das medicações para que o organismo não rejeite o órgão transplantado.
Sem água, sem bateria e sem sinal
As tomadas dos supermercados e dos dois shoppings de Macapá que funcionam com sistemas isolados estão cada vez mais disputadas. Uma única tomada chega a ser usada por até cinco pessoas, que se acomodam do jeito que podem: sentadas no chão, escoradas em colunas e, quando não há alternativa, o jeito é ficar em pé esperando o celular carregar.
“Foi o jeito que encontrei para tentar entrar em contato com a família e meus amigos”, contou o professor Clauber Rosivan, de 38 anos. Ele passou uma manhã inteira em um shopping no Centro de Macapá na esperança de, após carregar o telefone, conseguir o sinal da operadora para fazer ligações. “São poucas pessoas com quem eu consegui falar. Poucas mesmo. Dá uma aflição não saber se todos estão bem.”
Poucos moradores estão tendo o fornecimento regular de água da Companhia de Água e Esgoto do Amapá (CAESA). Mesmo assim, a água da torneira não é a ideal para o consumo. Por isso, milhares de pessoas — sem transporte próprio — precisam andar quilômetros para comprar garrafões de água mineral em distribuidoras e minimercados.
“A nossa água encanada vem meio barrenta, então não tem outro jeito. Tenho um neném em casa e ele precisa de água mineral”, destacou a dona de casa Ediane Gemaque, que precisou ir para outro bairro andando na busca por água para ela e a família.
O apagão
O apagão foi consequência de um incêndio em uma subestação da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), por volta das 21h de terça-feira (2), na Zona Norte de Macapá. Os três transformadores da subestação foram danificados, provocando a interrupção no fornecimento de energia elétrica.
Na sexta-feira (6), o governador Waldez Góes (PDT) assinou um decreto que estabeleceu situação de emergência no Amapá. O Ministério de Minas e Energia (MME) lançou três planos para normalizar o fornecimento de energia elétrica em até dez dias. A curto prazo, um dos transformadores – o menos danificado – passa por reparos e, caso o resultado seja positivo, é previsto o restabelecimento de até 70% do fornecimento. Os testes iniciaram na noite de sexta-feira e no sábado alguns bairros de Macapá tiveram o fornecimento restabelecido. Porém, com os problemas de comunicação no estado, não é possível precisar a quantidade de bairros onde houve a normalização.
Um segundo transformador foi transportado do município de Laranjal do Jari – município a 170 quilômetros de Macapá – para a capital. Os testes, segundo o MME, devem iniciar neste domingo. Um terceiro transformador será adquirido de Boa Vista (RR) e deve ser instalado em até 30 dias.
Conforme o plano apresentado pelo Governo Federal, o funcionamento de dois transformadores será suficiente para garantir 100% do fornecimento de energia elétrica.
Moradores que conseguem ligação para a CEA são informados que será iniciado um “rodízio de fornecimento” de energia de seis em seis horas nos bairros do estado. O Governo do Amapá montou o Comitê de Crise para amenizar os impactos provocados pelo apagão. São abastecidos a cada 6 horas os geradores dos hospitais, além de um abrigo de idosos e o sistema penitenciário, ainda segundo o Governo do Amapá.
Fornecimento nunca foi bom
A CEA é uma empresa de economia mista, tendo como o principal acionista o Governo do Amapá. O processo de federalização iniciou em 2013. Desde então, o Governo Federal é o responsável pela presidência, diretorias de administração e financeira, além de indicar os gestores de Gestão e Planejamento e Expansão.
A federalização foi uma saída para a empresa que estava ameaçada de caducidade após contrair uma dívida de quase R$ 1,2 bilhão com a União no acumulado de uma década. Foi necessário um empréstimo com a Caixa Econômica Federal para o pagamento da dívida.
Mas o fornecimento de energia elétrica na região nunca foi satisfatório para a população. São frequentes as interrupções, principalmente, no período chuvoso. Moradores convivem com eletrodomésticos queimados por causa das quedas de energia, além de outros problemas.
“Nunca foi bom. Três, até quatro vezes por semana a gente fica sem energia em casa. A gente fica uma, duas horas e, às vezes, até mais”, disse a jovem Thais Pelaes, que mora na Zona Sul do município de Santana. “Nunca foi fácil, mas agora essa situação já tá precária demais.”
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