Piketty expõe o escândalo das desigualdades globais

Estudo do Observatório Mundial das Desigualdades revela: abismo entre os 5% mais ricos e os 50% mais pobres cresce em quase todos os países. E surgem, sob o ultracapitalismo, múltiplas fraturas sociais, com queda acentuada da classe média

Por Thomas Piketty, no Le Monde, traduzido na Carta Maior

Graças ao esforço conjunto de 150 pesquisadores de todos os continentes, o Observatório Mundial das Desigualdades [World Inequality Database] acaba de colocar online dados inéditos sobre a distribuição de renda em diferentes países do mundo. O que eles nos ensinam sobre o estado das desigualdades mundiais?

A principal novidade é que esses dados abrangem quase todos os países. Graças a pesquisas realizadas na América Latina, África e Ásia, já há 173 países com dados submetidos a tratamento, representando 97% da população mundial. Os novos dados também permitem analisar para cada país a evolução detalhada de toda a distribuição, dos mais pobres aos mais ricos.

Concretamente, já sabíamos que o aumento das desigualdades produziu-se de cima no curso das últimas décadas, com a explosão do famoso 1%. A novidade é oferecer uma comparação sistemática da situação das classes populares nas diferentes partes do mundo. Constata-se assim que a participação dos 50% mais pobres varia consideravelmente dependendo do país: oscila entre 5% e 25% da renda total. Em outras palavras, para uma mesma renda nacional, o padrão de vida dos 50% mais pobres pode variar de um fator que vai de 1 a 5. Isso mostra o quão urgente é ir além do PIB e dos agregados macroeconômicos para privilegiar o estudo das distribuições e grupos sociais concretos.

Patrimônio e renda

Deve-se notar também que as desigualdades são fortes em todos os países. A parcela dos 10% mais ricos representa entre 30% e 70% da renda total. É sempre significativamente mais elevada do que aquela dos 50% mais pobres. A diferença seria ainda mais acentuada se olhássemos a distribuição do patrimônio (o que se possui) e não da renda (o que se ganha em um ano). Os 50% mais pobres não possuem quase nada (geralmente menos de 5% do total), inclusive nos países mais igualitários (como a Suécia). Os dados disponíveis sobre patrimônio continuam todavia insuficientes e serão atualizados em 2021.

Em relação à distribuição da renda, há variações muito fortes entre países, inclusive no interior de determinada região e para um mesmo nível de desenvolvimento. Isso mostra que as políticas podem fazer a diferença. Na América Latina, podemos observar que Brasil, México e Chile são historicamente mais desiguais do que Argentina, Equador ou Uruguai (onde políticas sociais mais ambiciosas foram implementadas por várias décadas), e que a diferença entre esses dois grupos de países aumentou nos últimos vinte anos. Na África, as desigualdades mais extremas são encontradas no sul do continente, onde nenhuma redistribuição real de terras e da riqueza ocorreu desde o fim do apartheid.

De modo geral, o mapa das desigualdades mundiais reflete ao mesmo tempo os efeitos da antiga discriminação racial e colonial e o impacto do hipercapitalismo contemporâneo e de processos sociopolíticos mais recentes. Em vários dos países mais desiguais do planeta, como Chile e Líbano, os movimentos sociais dos últimos anos têm alimentado a esperança de profundas transformações.

O Oriente Médio aparece como a região mais desigual do planeta, tanto por um sistema de fronteiras que concentra recursos em territórios petromonárquicos, como por um sistema bancário internacional que permite transformar a renda do petróleo em renda financeira eterna. Na ausência de um novo modelo de desenvolvimento regional mais equilibrado, social-federativo e democrático, o temor é que as ideologias totalitárias e reacionárias em ação continuem a ocupar o terreno, como na Europa há um século.

Choque de desigualdade

Na Índia, onde as diferenças entre o topo e a massa da população atingiram níveis nunca vistos desde o período colonial, os nacionalistas hindus acreditam poder acalmar as frustrações socioeconômicas alimentando tensões identitárias e religiosas, cujo efeito é agravar a discriminação enfrentada pela minoria muçulmana, ameaçada de empobrecimento e marginalização duradoura.

Nota-se também a progressão contínua das desigualdades na Europa Oriental desde os anos 1990. Logo após a queda do comunismo, o choque de desigualdade foi muito mais brutal na Rússia, que em poucos anos tornou-se a capital mundial dos oligarcas, dos paraísos fiscais e da falta de transparência financeira, depois de ter sido o país da abolição total da propriedade privada. Mas, quase trinta anos depois, a Europa Oriental parece estar gradualmente se aproximando do nível de desigualdade observado na Rússia. A estagnação dos salários e a magnitude do fluxo de lucros para fora desses países alimentam uma frustração que o Ocidente do continente tem dificuldade em compreender.

A nível mundial, constata-se, é verdade, que a participação dos habitantes 50% mais pobres do planeta aumentou significativamente, passando de 5% da renda mundial total em 1980 para cerca de 9% em 2020, graças ao crescimento dos países emergentes. Esta progressão deve, porém, ser relativizada, na medida em que a participação dos 10% mais ricos do planeta se manteve estável em torno de 53% e a dos 1% mais ricos passou de 17% para 20%. Os perdedores são as classes médias e populares do Norte, o que alimenta a rejeição da globalização.

Resumindo: o planeta está atravessado por múltiplas fraturas de desigualdade, que a pandemia irá agravar ainda mais. Só um esforço acumulado de transparência democrática e financeira, hoje muito insuficiente, permitiria desenvolver soluções aceitáveis para o maior número.

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