A população tradicional geraizeira, do norte de Minas Gerais, está na luta pela preservação local desde a década de 1970
Caroline Oliveira e Vanessa Nicolav, Brasil de Fato*
Entre o céu e a terra, a vida segue o seu rumo, no entender geraizeiro. Nos Gerais, Deus está em cada tempo vivo: na colheita de certas ervas medicinais que respeita as fases da lua, no roçar do chão durante a primeira hora de claridade do dia, no ajeitar das sementes entre a terra arada de acordo com as estações do ano, na colheita tão esperada por só arrancar o alimento crescido. Na rua, no entanto, ganhou espaço o diabo, como brinca João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, ao passar pelos Gerais e os “geralistas”, como chama os geraizeiros, em seu livro. Mas o diabo não está no meio do redemoinho. Do lado avesso, é seu próprio fazedor. “É o diabo!”, que, para Adelina Xavier de Moraes, significa o aumento de problemas decorrentes da mineração.
A comunidade onde vive Dona Adelina é uma das que estão ameaçadas de extinção pela construção do mega projeto minerário da Sul Americana de Metais S/A (SAM), controlado pela empresa chinesa de investimentos Honbridge Holdings, sediada nas Ilhas Cayman e com escritório central em Hong Kong.
“Eu estou vendo que ele está botando eu porta afora da minha casa, e eu não quero. Eu estou bem. Não estou bem só mais ele, o minério. Mas eu estou bem em minha casa. Eu como a hora que eu quero. Eu bebo o que quero. Recebo os meus amigos. O que não tem de bom aqui é só o minério”, relata.
Remoção involuntária da população, com a consequente desestruturação de vínculos territoriais e sociais; alteração do modo de vida tradicional das comunidades; problemas de saúde e segurança; destruição do cerrado nativo e de nascentes de água são alguns dos problemas que se avizinham no horizonte com a chegada do projeto de mineração, alerta o Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), que, junto da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Coletivo Margarida Alves (CMA), atuam ao lado dos geraizeiros em defesa do território.
A partir desta quarta (9), o Brasil de Fato lança série de reportagens em três partes sobre a mineração e o monocultivo de eucalipto no território geraizeiro de Vale das Cancelas, em Minas Gerais*.
Com 81 anos, Dona Adelina passou toda a vida naquela terra, uma das 73 comunidades do território tradicional geraizeiro de Vale das Cancelas, no norte de Minas Gerais, dividido entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis. Entre os três municípios, no norte de Minas Gerais, a formação do geraizeiro se deu onde os pés batem e, por isso, se entrelaça à história e às características do próprio local.
Nasceram como aqueles que vivem nos Gerais, nativos da região, circulando desafogadamente entre as chapadas e as grotas, as partes altas e baixas dos Gerais, entre os vales, com o gado na solta e o pequi e mangaba cultivados em terra comum. Nasceram livres, em contraposição aos mineiros, que têm o chão sobre a cabeça e cuja sina é rasgar a terra por dentro.
O clima é semiárido, mas nem por isso o leitor deve pensar em um solo rachado, seco e com vegetação seca. A escassez de chuvas e a temperatura média alta não impedem a fruta de leite e a guariroba de crescerem no local. A região é de grande diversidade e, com um pouco de água, os geraizeiros plantam de tudo: abóbora, abobrinha, maxixe, feijão, milho, amendoim, rufão, maracujá, manga, mamão, tomate, cebolinha e por aí vai. É este sertão que está sendo ameaçado.
Décadas depois, o redemoinho do diabo se tornou o vulcão de destruição, assim batizado pela geraizeira Marlene Ribeiro de Sousa, em parte pela presença do monocultivo de eucalipto que se expande na região desde a década de 1970 e mais recentemente pela presença da SAM, que cobiça cobrir expressivo quinhão de Vale das Cancelas, onde nasceu o território tradicional geraizeiro, abarcando os três municípios.
O fato de ser uma comunidade tradicional, assim reconhecida pela lei mineira 21.147, não impede a construção de um empreendimento deste tamanho na região, dado que o processo de regularização fundiária ainda não foi concluído pela Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) de Minas Gerais. Até o momento, trata-se de uma comunidade tradicional, mas que ainda não tem reconhecida a delimitação de seu território.
Com o empreendimento, o objetivo é transformar a região em um novo polo minerário, assim como ocorreu em outras regiões de Minas Gerais, como de Conceição do Mato Dentro, Brumadinho e Quadrilátero Ferrífero, onde está localizado o município de Mariana.
O redemoinho, também conhecido como diabo de poeira, levanta um pé de vento e não tem grão que consiga se prender ao chão. O vulcão, pelo contrário, sedimenta, faz pequi, mangaba, cemitério, roça e casa virarem uma coisa só. Em Mariana foi assim, e em Brumadinho também.
Em Barão de Cocais, para não se sedimentarem com o possível rompimento da barragem Norte/Laranjeiras, da mina de Brucutu, da Vale do Rio Doce, 35 pessoas abandonarão suas casas.
“Nós somos geraizeiros. Nós moramos aqui não é de agora”, reivindica Dona Adelina, que tem sua casa ameaçada pela mineradora em Vale das Cancelas.
— O que a senhora acha da ideia de progresso deles?
— Nada. Eu acho que aquilo é destruição. A água sujava, peixe morria, morria tudo. Vieram matar meus peixes, do capeta. Mataram até o bicho da água.
Maria Leide Soares dos Santos Moraes, de 41 anos e nora de Dona Adelina, conta que existe pressão da mineradora sobre os moradores para que aceitem o projeto.
“Tem vez que eles vêm e falam coisas que a gente não entende. Parece que amanhã as máquinas já vão chegar para trabalhar. Aí a gente fica com medo, porque eles falam que vai sair, vai sair, mesmo quando a gente não esperar. A gente fica assustada”, afirma Moraes.
Seu marido, filho de Dona Adelina, Domingo Lisboa de Moraes, de 47 anos, afirma que na comunidade de Lamarão, ninguém aceita a chegada da mineradora. Como já deixou bem claro sua mãe: para os amigos, sempre uma xícara de café à disposição; para eles, nem isso; ninguém quer morar debaixo da barragem.
“A preocupação que a gente tem é dessa mineradora trazer morte causada para tudo, não é só para os seres humanos, mas para os animais, nascentes de água, para o Cerrado. É doença. Não é coisa desse mundo, não. É coisa de outro mundo”, afirma Domingo.
A vizinha de Dona Adelina, Domingo e Maria Leite, Eva Rosa de Souza, compara a pressão da mineração na região e a possível instalação do empreendimento como uma invasão.
“Para mim é tipo invadir, porque a gente não está querendo vender e eles ficam entrando, descabeçeando as pessoas”, define.
Mesmo com outro lugar para ir, ninguém quer sair de sua terra, onde criaram e nutriram suas raízes. “A gente já se acostumou no território da gente. A gente planta uma coisinha, a gente cria uma galinha, um porco. É pouca, mas é lutando que a gente possui. E a gente mudando daqui, a gente não sabe o que vai ser mais pra frente”, afirma Souza.
Até o momento, não há um projeto da SAM ou dos governos federal e mineiro de reassentamento dessas famílias caso o complexo minerário se concretize. Sendo despejadas para outros locais ou permanecendo próximo à mineradora, os impactos sociais para essas comunidades também são danosos.
O Brasil de Fato entrou em contato com a SAM. Em nota, a empresa afirma que tem “imenso respeito pelas pessoas”. Mesmo com os moradores reforçando que não querem o complexo minerário no local, a empresa diz que “a construção de um relacionamento de qualidade e confiança com as comunidades é feita por meio de parceria e diálogo constantes”.
Do minério à vida sedimentada
O projeto da SAM atinge 8 mil hectares, 11 comunidades e os municípios de Padre Carvalho, Grão Mogol, Josenópolis, Fruta de Leite e Salinas. Entre as comunidades está a de Lamarão, de Dona Adelina, no município de Padre Carvalho, que pode deixar de existir, junto com Batalha, Córrego do Vale e São Francisco, além de três cemitérios.
Segundo Bruno Milanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do grupo de pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (Poemas),a chegada de um projeto com este pode desestabilizar as comunidades, impactando diretamente o modo de vida mais tradicional dos geraizeiros e resultar na “destruição daquele modo de vida com impactos sociais muito agudos”.
“Com a chegada muito rápida de um grande contingente de trabalhadores, normalmente vai existir abuso de drogas, maior chance de exploração sexual, maior taxa de violência, violência contra mulheres, gravidez em adolescentes”, enfatiza. Nesse sentido, os geraizeiros podem perder o sentimento de pertencimento ao local, levando à eliminação de sua cultura.
Por outro lado, os geraizeiros que possuem um pedaço de terra e trabalham com a agricultura têm seu modo de viver e produzir desestabilizados. O discurso é de geração de emprego, “como se aquelas pessoas não fizessem nada”.
“Na verdade, está tirando pessoas de um determinado trabalho, trabalho rural, impondo que se coloque em um trabalho precário, de empresas terceirizadas e mal remunerado”, ressalta.
Do lado de quem sofre os impactos da mineração na pele, o geraizeiro Valdir Gouveia, de 58 anos, sente a comunidade geraizeira como um “atrapalho para eles”.
“Se deixar a mineradora entrar igual eles querem, eles só vão prejudicar nosso lugar porque eles vão falar que eu tenho mais 58 anos que eu não sirvo para trabalhar na mineradora. Então, esse negócio de desenvolvimento da mineradora é só mentira, é só enganação”, afirma Gouveia, “ainda mais depois das tragédias de Mariana e Brumadinho”, ressalta.
Disputa pela água
Com funcionamento de 24 horas por dia, o projeto estima consumir 6,2 milhões de litros de água por hora, de uma região que já sofre com a seca, seja por ser semiárida e ou pela crescente monoculturização do plantio de eucalipto e pinus.
Para Milanez, “é muito problemática” a tentativa de desenvolvimento de mineração naquela região.
“A demanda hídrica da mineração do setor mineral é muito alta. Então é muito contraditório incentivar ou estimular a implantação de projetos que vão competir por água junto às comunidades locais que vivem ali”, ressalta.
Para isso, a SAM já possui uma autorização da Agência Nacional das Águas (ANA) para retirar 54 milhões de litros de água da barragem de Irapé, da Usina Hidrelétrica controlada pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig).
Somente com esta quantidade de água, é possível abastecer 400 mil habitantes do municípios de Montes Claros por dois anos. Além da outorga da ANA, a SAM também pretende construir uma barragem ao lado do Rio Vacaria, alagando 757 hectares de quatro comunidades e nove cemitérios.
“Aquela água não é da mineradora, pertence às comunidades. Mas está sendo usada por determinado grupo, diminuindo o acesso à água de um grupo social específico, para ter um uso exclusivo e de baixa qualidade”, aponta Milanez.
De acordo com o pesquisador, o impacto da mineração não é só local. A alteração da paisagem, fazendo deixar de existir o relevo do solo, implica na mudança do sistema hídrico, atingindo comunidades que estão a 15 quilômetros do complexo, além da contaminação dos recursos hídricos por produtos químicos, como arsênio e mercúrio, e rejeitos.
“É pouco nobre usar essa água para transportar minério, que depois vai ser despejada no mar, com poder ainda de causar poluição local também na área de despejo”, enfatiza.
Desenvolvimento questionável
O investimento de R$ 11 bilhões pode levar a uma produção estimada de 27,5 milhões de toneladas de polpa de minério por ano, por cerca de 20 anos, que é a vida útil estimada do projeto. O minério da região apresenta um teor de 20% de ferro, o que é considerado baixo.
Portanto, 80% do produto a ser extraído é classificado como material estéril, ou seja, sem valor comercial. Para armazenar esse volume de rejeito serão necessárias duas barragens, ocupando, juntas, uma área de 2.596 hectares: a maior barragem de rejeitos do Brasil, tendo 104 vezes o tamanho da área da Barragem da Mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, e 99 vezes mais em termos de volume de rejeitos.
Segundo o professor da UFJF, Bruno Milanez, o modelo minerário brasileiro é mantido basicamente para atender às demandas do mercado internacional, sendo o segundo maior produtor do mundo.
Do outro lado, a China absorve 70% do minério de ferro global. Entre 2001 e 2011, o valor da Produção Mineral Brasileira (PMB) teve um aumento de 550%: de US$ 7,7 bilhões para US $50 bilhões. De lá para cá, o valor caiu e atingiu em 2018 US$ 34 bilhões, segundo o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).
No território brasileiro, conforme explica Milanez, no entanto, “se a mineração traz impactos negativos do ponto de vista ambiental e social. Mesmo no ponto de vista econômico, que é a grande bandeira levantada, os ganhos reais são questionáveis”.
Por ser um recurso não renovável, quando há o esgotamento da reserva, as empresas fecham, “vão embora e todo aquele contingente de pessoas que a empresa mandou para lá se vêem em um contexto de crise econômica”.
Complementarmente, o mineroduto, denominado Projeto Lotus I, irá passar pelos municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho, Fruta do Leite, Salinas, Novorizonte, Taiobeiras, Curral de Dentro, Berizal e Águas Vermelhas, em Minas Gerais.
Depois seguirá pela Bahia, nas cidades Encruzilhada, Cândido Sales, Vitória da Conquista, Ribeirão do Largo, Itambé, Itapetinga, Itaju do Colônia, Itapé, Ibicaraí, Barro Preto, Itabuna e, por fim, Ilhéus.
Só perde, em extensão para o Minas-Rio da Anglo American, que tem 529 km e liga Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, a São João da Barra, no Rio de Janeiro, onde está localizado o Porto de Açu. De lá, o minério é exportado principalmente para a China.
Tanto a Sul Americana de Metais quanto a Lotus Brasil Comércio e Logística afirmam que irão investir em capacitação de profissionais e gerar empregos na região, cerca de 6.200 no pico de obras da implantação e 1.100 na operação.
O discurso é endossado pelos prefeitos de Fruta de Leite, Grão Mogol, Josenópolis e Padre Carvalho, que assinaram, em fevereiro deste ano, uma carta de apoio ao projeto. Em novembro de 2019, também firmaram com a SAM um protocolo de cooperação que prevê ações de desenvolvimento regional, como inovação tecnológica.
Nas palavras do prefeito de Grão Mogol, Hamilton Goncalves Nascimento (PPS), em entrevista ao Diário do Comércio, “há mais de 10 anos, esse projeto está ‘capengando’ nos órgãos ambientais sem uma solução”.
“Ele é importante para uma região carente como a nossa, gerando emprego e renda (…). Existem outros projetos na região presos na burocracia federal e estadual. Precisamos ter uma solução porque a espera faz com que todos percam dinheiro”, defende o prefeito.
Milanez explica que a mineração gera dependência e concentração de renda ao inibir outras atividades locais, devido à competição pelos recursos e enfatiza que “a própria oscilação do preço gera uma dinâmica instável da economia local.”
“Em 2012, quando o preço do minério despencou, as cidades mineradoras entraram em colapso até porque boa parte da receita dos municípios vem nos royalties da mineração”, lembra.
Sem contar com os problemas envolvendo as barragens. Entre 2000 e 2019, foram oito ocorrências de falhas no sistema de barragens. Pelo menos 300 pessoas já morreram e cerca de cinco mil ficaram desalojadas.
“Apesar da mineração causar mal à saúde econômica, social e ambiental de Minas Gerais, o estado continua insistindo em… me faltam palavras às vezes, mas em repetir o mesmo erro”, lamenta o docente.
O Brasil de Fato também entrou em contato com as prefeituras dos municípios atingidos pelo complexo minerário e que abarcam a população geraizeira, Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, mas, até a publicação desta reportagem, não houve retorno. O prefeito eleito para o próximo mandato, Diêgo Antonio Braga Fagundes (PTB), também foi procurado pela redação, que também não respondeu aos questionamentos até o momento.
A Sul Americana de Metais
A luta dos geraizeiros para preservar suas terras e seu modo de vida já dura desde 2006, quando a SAM iniciou os estudos técnicos na região para viabilizar a exploração do minério de ferro.
Quatro anos depois, o processo de licenciamento do Projeto Vale do Rio Pardo entrou, no dia 29 de janeiro de 2010, no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama): um complexo minerário localizado em Vale das Cancelas e o segundo maior mineroduto do mundo, de 482 quilômetros.
O objetivo do empreendimento é transportar o minério até o Porto de Ilhéus, no sul da Bahia, passando por 21 municípios, e de lá para o destino final: China.
No dia 7 de fevereiro de 2016, no entanto, a Diretoria de Licenciamento do Ibama decidiu pela inviabilidade do projeto. Segundo o relatório, o avanço do projeto traria “impactos negativos e riscos ambientais aos quais” poderiam “estar expostas as comunidades vizinhas ao empreendimento e o meio ambiente como um todo”.
Em outubro de 2018, o próprio Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), sugeriu ao Ibama a transferência para a esfera estadual da análise da viabilidade ambiental e o licenciamento da mina, deixando ao órgão federal apenas a jurisprudência sobre o mineroduto.
Novamente, no entanto, o Ibama negou o pedido, afirmando que o projeto deve ser analisado e licenciado em sua totalidade pelo órgão federal, por atingir mais de um estado, como preconizam o Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam) e a Lei Complementar 140/2011.
Na época do pedido da Semad, Germano Luiz Gomes Vieira era chefe da secretaria e presidente do Copam. Meses antes, Vieira assinou a Deliberação Normativa 217, que abriu espaço para rebaixar o potencial de risco de barragens, levando o processo de Licença Prévia, Licença de Operação e Licença de Instalação apenas a uma etapa, em alguns processos.
Fracionamento do projeto da SAM
Com a negativa do Ibama, o Projeto Vale do Rio Pardo foi transformado, então, em Projeto Bloco 8: área de mineração, usina de tratamento de minério, mina de rejeitos, barragem de água, mas sem o mineroduto.
Segundo as organizações que atuam no local em apoio aos geraizeiros, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), houve o fracionamento do projeto inicial a fim de facilitar o licenciamento para dar início à exploração.
Enquanto a SAM solicitou a autorização para a construção e operação do complexo minerário à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), a Lotus Brasil Comércio e Logística entrou com o processo de licenciamento do mineroduto no Ibama.
Assim, segundo Felipe Soares, do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), se a SAM conquista o licenciamento da mina, o Ibama é pressionado a licenciar o mineroduto, visto que um não funciona sem o outro. “Assim, eles pressionam o Ibama, porque depois da cava é preciso escoar o minério de alguma forma, e a forma pensada por eles é o mineroduto”.
Ao Brasil de Fato, a SAM se posicionou por meio da porta-voz e diretora de Meio Ambiente e Relacionamento, Gizelle Andrade. Ela relaciona o papel da Lotus à terceirização da logística, que “é extremamente comum em projetos de mineração e foi decidida com base em critérios técnicos”.
Ela afirma ainda que “o negócio da Lotus é estratégico ao projeto da SAM” e que a mineradora “possui 5% de participação na Lotus, um percentual mínimo para garantia de segurança ao negócio da SAM”.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), no entanto, a Lotus Brasil Comércio e Logística foi criada pela SAM em parceria com a Lotus Fortune Holding Limited, uma semana antes do pedido de licenciamento do complexo minerário à Semad, no dia 21 de novembro.
Em ação civil pública, MP e MPMG argumentam que “não se tratam de empresas distintas a empreenderem atividades com ligação ocasional, mas de empresas que compõem o mesmo grupo, controladora e controlada, atuando conjuntamente como se um único empreendedor fosse, na execução das atividades interdependentes do mesmo empreendimento que o grupo visa explorar, dando ensejo, inclusive, para tanto, ao fracionamento do procedimento de licenciamento ambiental, que deveria ser, novamente, analisado de modo conglobado pelo Ibama”.
Em julho deste ano, o juiz federal Marco Frattezi Gonçalves, do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, decidiu que o Ibama não pode ficar “à margem do licenciamento da cava da mina, devendo o licenciamento do empreendimento, como um todo, ser mantido” na esfera federal.
Por isso, determinou a suspensão dos procedimentos do licenciamento no âmbito da Semad e, só assim, o prosseguimento dos estudos ambientais. Em nota, a Semad confirmou a transferência de todo o projeto, tanto do mineroduto quanto do complexo minerário, ao Ibama, como determinou a sentença judicial. Quanto ao Ibama, os questionamentos não foram respondidos até a publicação desta reportagem.
Até o momento, a SAM não atingiu nenhuma das três etapas do licenciamento. A primeira é o Licenciamento Prévio, na qual o órgão licenciador aprova a localização e o projeto, a viabilidade ambiental e estabelece as condicionantes. Na segunda, durante o Licenciamento de Instalação, aprova-se a instalação do empreendimento. E, na última, a Licença de Operação, permite-se, enfim, o funcionamento.
Enquanto isso, os projetos agroecológicos de Maria das Dores Ferreira, de 33 anos, também da comunidade Lamarão, seguem a todo vapor. No projeto da SAM, toda a área de sua roça é vista como uma das barragens a serem construídas.
Vira e mexe, representantes da empresa também ligam para Dôra, como também é conhecida, assim como fazem com a família de Dona Adelina, para dizer que o projeto minerário está andando.
“Tem a Gizelle que de vez em quando liga falando que eles estão trabalhando, que os projetos deles estão andando. Os projetos deles estão andando? O meu também, os meus projetos também estão andando. Eu vou deixar meus projetos parados por causa dos projetos deles? Claro que não. É tipo uma pressão. Acredito que deve ser isso, porque vai ligar para a pessoa só para falar que os projetos estão andando?”, questiona Dôra.
*Esta reportagem especial foi produzida com o apoio da Fian Brasil
Edição: Rodrigo Chagas e Leandro Melito
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Imagem: Adelina Xavier de Moraes, de 81 anos, vive no território geraizeiro desde que nasceu; nunca saiu do norte de Minas e nem pretende – Vanessa Nicolav