“Políticas homicidas”: Sociedade de Medicina e Cirurgia do RJ lamenta morte do cirurgião Ricardo Cruz e acusa governantes de irresponsabilidade criminosa

Tania Pacheco

A Carta da SMCRJ é o documento mais contundente divulgado até o momento pela comunidade médica sobre a pandemia. Vale lê-lo enquanto homenagem ao cirurgião humanista Ricardo Cruz, sem dúvida, mas vale igualmente, como propõe a entidade, honrar a sua morte também através dessa importante denúncia, levando a ações das quais ele sem dúvida participaria, se vivo estivesse.

Homicídio é palavra reconhecidamente forte. Para alguns, talvez toque mais que genocídio, que muitos têm dificuldade em ‘diagnosticar’ e/ou aceitar. E é homicídio que a SMCRJ denuncia no documento que reproduzimos na íntegra abaixo, ao mesmo tempo em que “lamenta, estranha e repele o silêncio, a inação e a abulia da quase totalidade das entidades médicas do país e as conclama à ela se unirem pela demanda por políticas públicas de combate à pandemia, baseadas na evidência científica dos fatos”.

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Carta da Sociedade de Medicina e Cirurgia do RJ pela morte o cirurgião Ricardo José Lopes da Cruz

“A Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro lamenta profundamente a morte do Dr. Ricardo José Lopes da Cruz, ocorrida em 7 de dezembro de 2020.

Nascido em 10 de abril de 1954, Ricardo Cruz graduou-se em Medicina na UFRJ em 1977. Fez residência médica em Cirurgia Geral no Hospital de Ipanema e em Cirurgia de Cabeça e Pescoço no Instituto Nacional do Câncer, completando a sua formação na área de Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial no Departamento de Cirurgia Plástica da PUC-Rio, sob a liderança de Ivo Pitanguy.

Criou o Serviço de Cirurgia Buco-Maxilo-Facial do Hospital Federal de Ipanema, que chefiou por vinte anos. Foi médico do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Instituto Nacional do Câncer por seis anos, além de ter trabalhado no Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto Fernandes Figueira por doze anos.

Mantendo sua atividade de altíssima qualificação e exímia qualidade no SUS, criou em 2003 o Centro de Atenção Especializada em Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO), atendendo a pacientes com deformidades congênitas, do desenvolvimento e adquiridas do esqueleto craniofacial, com mais de mil cirurgia realizadas desde então. Ultimamente, vinha se preparando para a realização de transplantes de face.

Era membro do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, da Associação Brasileira de Cirurgia Cranio-Maxilo-Facial (que presidiu por duas vezes) e da Academia Nacional de Medicina, entre outras associações e entidades. Além disso, era membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro.

O Dr. Ricardo Cruz estava internado há várias semanas na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Samaritano, onde recebeu cuidados e atenções que certamente muito poucos dos quase 180 mil outros brasileiros que morreram de COVID-19 até hoje puderam receber – inclusive o uso de oxigenação extracorpórea por membrana de troca, procedimento de complexa tecnologia, de elevado custo e de disponibilidade rarefeita, principalmente (mas não apenas) no Sistema Único de Saúde.

Por exposição profissional, os médicos estão entre os grupos populacionais mais afetados pela pandemia: no último Dia do Médico, a SMCRJ homenageou aqueles até então falecidos. Mas a morte de Ricardo Cruz tem um significado especial, que vai além da perda precoce de um dos mais brilhantes cirurgiões de sua geração e das que lhe são próximas.

Ricardo morre após dez meses de pandemia, quando a percepção errônea da sociedade de que a transmissão está em vias de se extinguir levou a um relaxamento das normas de distanciamento social, com o consequente aumento da transmissão comunitária do SARS-CoV-2. Percepção errônea esta estimulada e coonestada por uma política homicida (repitamos: homicida) por parte de autoridades municipais, estaduais e federais (em final, meio ou começo de mandato), que trocam votos e apoios por uma proposta indulgente e sedutora, que pode ser popular e atraente, mas que é (repitamos, ainda) simplesmente homicida.

Ricardo Cruz morreu apesar de ser submetido a um tratamento caro, sofisticado e disponível a uma minoria dos brasileiros, aí incluídos os usuários de planos de saúde de alto custo. Isto demonstra a miopia, a desumanidade, a negligência e a criminosa irresponsabilidade histórica de políticos e mandatários que propõem aumento de números de leitos de UTI ou extensão do horário de funcionamento de aparelhos de tomografia computadorizada, trocando essas aparentes benesses de apelo popular (ofertadas a uma população já exaurida por dez meses de confinamento forçado) pela liberação de eventos e de situações que inevitavelmente agravaram, agravam e agravarão a transmissão da doença. O que levará ao aumento do número de casos e, portanto, e mesmo com uma (necessária) suficiência de vagas, a um indesculpável aumento de mortes.

Nosso colega não morreu porque lhe faltou leito, ou porque a assistência demorou a chegar. Morreu pela inexorabilidade de uma doença que, se não mata sempre, sempre mata. A sua morte expõe a miopia criminosa oculta na barganha do relaxamento no distanciamento social (leia-se: aumento da transmissão) pelo aparente bom negócio de um incremento no número de leitos (ou de tomógrafos, ou outros cala-bocas ilusórios e enganosos) oferecidos a uma população cansada, sem rumo – e sem liderança. Não importa o quantitativo de leitos de UTI oferecidos: quanto maior o número de admitidos a essas unidades, maior será o número final de mortos. Ricardo Cruz não morreu por falta de leito, ou de assistência, ou de cobertura. Morreu de COVID.

Até o momento, não há qualquer outro meio de impedir a transmissão do vírus que não o distanciamento social, em que pese a promessa próxima da vacina. Neste sentido, e mudando de unidade federativa, mas não abandonando a crítica e denúncia do populismo negligente e midiático, é criminosamente irresponsável acenar-se à população com uma vacina ainda não registrada nos órgãos competentes (portanto, sem autorização de uso), sequer com uma avaliação de eficácia divulgada – mas com data início de campanha de vacinação já estabelecida e espetacularmente clangorada.

Fundada em 1886 com o objetivo precípuo de discutir questões de saúde pública, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro lamenta, estranha e repele o silêncio, a inação e a abulia da quase totalidade das entidades médicas do país, e as conclama à ela se unirem pela demanda por políticas públicas de combate à pandemia, baseadas na evidência científica dos fatos, e dissociadas de considerações políticas, partidárias ou ideológicas que possam vir a prejudicar o enfrentamento da maior crise sanitária que esta mais que centenária associação jamais presenciou.”

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Cristina Ayres Pereira.

Comments (6)

  1. Bolsonaro é tudo o que foi dito e muito mais até, mas, a responsabilidade da propaganda do vírus não pode ser inflingida dome a ele. Ele manda todos irem para as ruas, que o Brasil não pode parar, sim, mas não tem como ele OBRIGAR a ninguém a fazer isso. Sendo ass, temos wue dividir a responsabilidade risso com a população que não acredita na fatalidade do vírus, que acredita que no verão o vírus não se propagara e que acreditam que estão imunes. Ou seja, pessoas tão ignorantes e sem conhecimento quanto o ilustre messias e falso profeta. Quem paga no final, são as pessoas que tem um mínimo de inteligência e consciência, além de preocupação com o próximo.nQue Deus nos ajude.

  2. Penso que o problema de Bolsonaro não seja exatamente psíquico. A pessoa com transtornos mentais pode se tratar. O problema dele é de caráter mesmo. É um homem mau e perverso. Seus discursos sempre foram permeados por morte, eliminação do divergente, despeezo à minorias, homenagens à torturadores e apologia à ditaduras. Sempre foi assim. O notório envolvimento dele e de toda a família com grupos de milicianos e matafores também apontam nesta direção. Acho que esta nota é muito importante mas penso que poderia até ser mais enfática. Enquanto sociedade civil, acho muito importante que mais manifestações como esta ocorram mais frequentemente.

  3. Concordo que Bolsonaro é o presidente mais burro, grosseiro e perverso que o país jå teve, além de sofrer de transtorno psíquico grave. É preciso, porém, considerar que burrice e loucura são seletivas.
    Bolsonaro e sua gangue, além da capacidade de atrair o que há de mais podre na política, conseguiram manipular instituições importantes, como as forças armadas, e calar até parte da comunidade médica. Qualquer reação a esse governo genocidade não pode esquecer essas alianças peversas.

  4. Um documento importante, contundente, histórico, me atrevo a dizer. Que lição tirar? Voto tem custo, normalmente elevado. É preciso cuidado, apesar de que, no Brasil, é muito fácil votar errado. Tenho arrependimento, melhor, remorso, de ter me permitido ser enganado.

  5. Já disseram que Bolsonaro será lembrado como o Presidente mais burro e incapaz da história desse país, e acrescente-se a isso, também, como genocida.
    Tenho estranhado a inação da sociedade civil frente aos desmandos e absurdos desse governo, em particular, no que se refere à pandemia, das entidades e associações médicas; espero que o manifesto acima desencadeie uma reação apropriada e eficaz contra esse estados de coisas.

  6. Bolsonaro tem transtorno psíquico grave. É urgente afastá-lo da presidência e encaminhá-lo para tratamento psíquico intensivo. Psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e médicos não podem se omitir, devem tomar medidas para que esse enfermo mental não continue a causar tragédias para o provo brasileiro.

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