por Marco Weissheimer, em Sul21
No dia 29 de abril de 1999, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, publicou um editorial intitulado “Desfecho melancólico”, tratando da decisão da Ford de instalar-se na Bahia, por não ter aceitas as condições apresentadas ao governo Olívio Dutra para instalar uma montadora da empresa no Rio Grande do Sul. O editorial em questão, entre outras coisas, afirmou: “A sociedade riograndense, que lutou muito e fez grandes sacrifícios para conquistar as montadoras de automóveis, merece compensações à altura das expectativas frustradas.” No dia seguinte, o mesmo jornal acrescentou: “O maior prejuízo que o Rio Grande irá sofrer com a desistência da Ford (…) nunca chegará a ser avaliado inteiramente, tal o seu vulto”.
O episódio envolvendo a decisão da Ford de cancelar a instalação de uma unidade montadora no Rio Grande do Sul, durante o governo Olívio Dutra (1999-2002), transferindo o projeto para Camaçari, na Bahia, foi marcado, entre outras coisas, por uma guerra midiática e simbólica que reverbera até os dias de hoje. A guerra, no caso, foi dirigida contra o governo de Olívio Dutra e contra a figura pessoal do governador e de outras lideranças petistas que tinham frustrado, nas eleições de 1998, os planos de reeleição de Antonio Britto (MDB). A Ford virou carro chefe da direita gaúcha, e também em nível nacional, para atacar governos e candidaturas do PT e de outros partidos de esquerda em períodos eleitorais. Duas décadas depois, o tema seguiu sendo usado em debates eleitorais, como ocorreu contra a candidatura de Manuela D’Ávila (PCdoB) à Prefeitura de Porto Alegre. No dia 11 de janeiro deste ano, porém, uma notícia caiu como uma bomba: a Ford anunciou o fechamento de suas fábricas em todo o Brasil. A memória do governo Olívio Dutra veio imediatamente à tona e, com ela, as lembranças do bombardeio midiático que sofreu.
“Foi um moedor de carne diário. Poucos davam espaço pro contraditório. Acho que foi algo igual, claro que em proporções diferentes, que ocorreria mais tarde contra Lula e Dilma”, assinala o jornalista Guaracy Cunha, que foi secretário de Comunicação do governo Olívio. “Foram momentos duros para todos nós. Só quem passou lembra como foi difícil superar e tocar em frente para fazer um dos melhores governos que o Rio Grande do Sul já teve”, acrescenta.
Para Denise Mantovani, o caso da saída da Ford do Rio Grande do Sul, durante o governo Olívio Dutra, e o tratamento dado pela mídia, “sobretudo a mídia hegemônica local, representada pelo Grupo RBS” é um exemplo de “como a noticia não é neutra e, em geral, está relacionada a interesses da empresa nem sempre explícitos.” Na época, ela era a de coordenadora da área de jornalismo do governo do Estado. Ela resume assim o que vivenciou no caso:
“Foi um massacre midiático a barreira criada para sufocar as posições defendidas pelo governo do Estado nas negociações com a multinacional. A lógica que se impôs naquela cobertura foi hegemonizada principalmente pela narrativa do principal grupo empresarial de comunicação do RS, o Grupo RBS. Era uma versão única propagada diariamente desde às 5h da manhã até o último programa de rádio ou canal de televisão, sustentado pelas páginas de colunistas e reportagens no jornal. Colunistas políticos, analistas, comentaristas de rádio, jornal, e televisão em sua esmagadora maioria atacavam a conduta do governo. Não adiantava dizer que a decisão de sair do RS veio da multinacional como forma de impor ao governo condições leoninas num contrato que contrariava o interesse público e destinava recursos públicos para uma multinacional privada”.
Vivia-se na época, lembra a jornalista, a chamada “guerra fiscal”, em que alguns governantes destinavam enorme volume de recursos públicos para algumas empresas multinacionais, como a Ford. “Não havia contrapartidas para a população. Nem os empregos diretos na época tão usados pelos comentaristas na mídia eram verdadeiros”, observa.
O principal grupo de comunicação da Região Sul do país, a RBS, defendia que o governo Olívio Dutra deveria concordar, a qualquer custo, com as condições que a Ford exigia. A GM, lembra Denise Mantovani, aceitou o ajuste no contrato com o Estado e permanece no Rio Grande do Sul até os dias de hoje. O governo do Estado na época, afirma ainda a jornalista, nunca se negou a debater e a participar dos programas jornalísticos dos canais de comunicação. “Fomos a todos os veículos que nos convidaram para refletir sobre o tema. Mas em alguns veículos ou em alguns programas, a desproporção era brutal e muito desigual. Para cada fonte do governo ou parlamentar da base de apoio, o contraponto era de várias ‘outras vozes’ emitindo a mesma opinião e perspectiva. Era quase sempre um ’10 a 1′, com praticamente todas as outras fontes e debatedores representando somente um lado da controvérsia, em geral, a favor da destinação de recursos públicos para empresas privadas”.
Essa desproporção também aparecia nas opiniões e comentários dos jornalistas mais conhecidos do público. “Esse artifício dava a impressão de ‘neutralidade’ para a noticia, já que somos levados a acreditar que jornalistas não emitem opinião, somente reproduzem os fatos. Isso no caso da Ford era falso, e tinha o objetivo de fazer com que os leitores e ouvintes acolhessem as posições políticas das empresas de comunicação como se fossem comentários vindos de uma ‘opinião isenta’. Esse episódio mostrou como é difícil um profissional da comunicação manter-se livre e autônomo em suas opiniões diante de temas cruciais para seus patrões”, diz Mantovani.
Na avaliação da coordenadora de Jornalismo do governo Olívio, “a luta ideológica, a defesa dos interesses do capital potencializada pela demonização do governo e do PT levou à imposição de uma visão em favor da multinacional e contra os interesses da sociedade gaúcha, uma vez que o aporte de recursos exigidos pela Ford implicaria a retirada de recursos públicos que deveriam ser destinados a setores essenciais para a população.” O episódio da Ford, defende, foi um exemplo de como a falta de pluralidade de ideias e opiniões circulando nos meios de comunicação favorece a manipulação do pensamento.
Para Denise, vinte anos depois, estamos vivendo a confirmação de um fato: “o capitalismo não se preocupa com o bem estar da população onde suas empresas se instalam (as multinacionais são exemplos disso, seja no setor automotivo, como no setor ambiental, educacional, etc). Elas agem como empresas colonialistas, o objetivo é o lucro. Tiram tudo o que podem, exploram até o esgotamento e, depois, simplesmente anunciam que vão embora e desempregam 5 mil pessoas”.
Hoje, observa por fim, “vi colunistas numa linguagem duvidosa falando sobre a ‘profecia’ do Olívio quando governador sobre a saída da Ford do Brasil.” Para ela, “mais uma vez, uma tentativa de minimizar a responsabilidade de gestor público que teve Olívio Dutra e seu governo”. “E uma forma de se ‘desresponsabilizar’ pelo papel histórico que tiveram esses veículos de comunicação e seus colunistas na defesa ferrenha dos interesses de uma multinacional contra os interesses da população do seu Estado”.
Uma parábola sobre o capitalismo predatório
Para Miguel Rossetto, que viveu o caso Ford como vice-governador, o anúncio feito pela multinacional no início da semana é “a parábola perfeita deste capitalismo predatório em que estamos sequestrados no Brasil, em que grandes empresas sugam absolutamente tudo do Estado e da sociedade para depois, quando for do seu interesse, abandonar o país, população e trabalhadores a sua própria sorte”.
Em um artigo publicado no Sul21 (“A saída da Ford do Brasil e o capitalismo predatório” (11/01/2021), Rossetto lembrou que a empresa reivindicava “um conjunto de privilégios como benefícios fiscais exagerados e recursos diretos do caixa do Estado, sem compromisso de permanecer operando, sem compromisso com fornecedores locais e sem compromissos com numero de empregos”. “Conseguiu isto na Bahia, com apoio do governo Fernando Henrique Cardoso, que trabalhou contra a Federação, promovendo a guerra fiscal entre os estados, com gigantescos privilégios federais e estaduais. Agora, anuncia que vai embora, o que comprova ao fracasso destas políticas”, aponta.
Rossetto registra ainda a ironia que acompanha o desfecho do caso. No dia em que comunica sua saída do Brasil, a Ford anuncia o investimento de 580 milhões de dólares na Argentina. Ou seja, entre a dupla Bolsonaro e o ultraliberal Guedes e o esquerdista Alberto Fernandes, a Ford optou pela Argentina. “A saída da Ford e sua ida para a Argentina, da Mercedes e outras empresas, revela a brutal e desastrosa desindustrialização do país e o aumento insustentável do desemprego.”
Em nota divulgada nesta terça-feira (12), a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) registra outra ironia que atravessa a decisão da Ford: “Recentemente, acompanhamos a aprovação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) na Argentina, que além de tributar os super ricos, receberá investimentos de US$ 580 milhões da montadora estadunidense. A opção da Ford pelo vizinho sul-americano demonstra que o IGF não afasta investidores, mas sim a inoperância e a falta de políticas efetivas para fomento do ambiente de negócios no país”.
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Caso Ford alimentou bombardeio midiático contra governo Olívio Dutra e contra imagem do governador. Foto: Guilherme Santos/Sul21