Apoio de Bolsonaro a garimpo coloca em risco a vida de duas líderes Munduruku

Em entrevista exclusiva, Alessandra e Kabaiwun Munduruku contam das ameaças de morte, de fugas com os filhos e de como o garimpo acirra tensão entre os indígenas mas enriquece apenas os brancos

Por Elpida Nikou e Joana Moncau*, em Repórter Brasil

A mensagem chegou mais de uma vez. Tanto pelo Whatsapp quanto pelo rádio que é usado para a comunicação entre as comunidades. O recado era claro: a paciência tinha se esgotado e eles não iriam mais tolerar aqueles que estivessem à frente da luta. Iriam matá-los. Embora não fosse a primeira vez que Kabaiwun Munduruku recebia uma ameaça de morte, desta vez era diferente.

Mesmo tendo apenas 33 anos, Kabaiwun (antes conhecida por Leusa) já sentiu a vida sob perigo diversas vezes por sua atuação como liderança indígena. Ela tem sido uma importante resistência frente às inúmeras ofensivas que o território do seu povo sofre, especialmente contra o garimpo. Os Munduruku são uma das maiores etnias do país, com territórios ao longo do Tapajós, na bacia que liga a floresta Amazônica ao Cerrado, nos estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso. Além de sofrer com a extração ilegal de madeira e dos grandes projetos do governo, a região é hoje um dos principais alvos de extração de ouro no país. As denúncias de Kabaiwun para impedir esses projetos provocaram a indignação de um grupo de Munduruku a favor do garimpo em território indígena.

Apesar das diversas ameaças, foi a primeira vez que Kabaiwun juntou alguns pertences e, com seus cinco filhos e seu neto, deixou sua casa em seu território. “Minha mãe chorou”, lembra Kabaiwun, amargamente, de quando teve de deixar seus pais para trás na aldeia. “Foi muito difícil para mim, deixar minha comunidade. Mas decidi sair para pensar no que mais posso fazer. Tenho filhos, tenho uma terra para cuidar e não posso parar a luta”. 

Kabaiwun não é a única a receber ameaças. “Vejo carros me seguindo, eles tentaram entrar em minha casa ano passado. Estou muito triste, mas não posso ficar calada. Não posso fechar os olhos para toda essa destruição. Não posso parar”, disse Alessandra Korap Munduruku, outra líder indígena Munduruku que sente que sua vida está em risco.

Hoje, essas duas mulheres estão entre as principais porta-vozes da defesa do território Munduruku. Os conflitos internos entre os mais de 14 mil indígenas da etnia – divididos em mais de uma centena de aldeias – por conta do garimpo no território são antigos. No entanto, a atual conjuntura deu força e projeção ao grupo de indígenas dedicados à extração mineral. 

O pano de fundo do acirramento dessas tensões é claro. Ao mesmo tempo em que o preço do ouro tem atingido recordes históricos durante a pandemia, o governo federal segue defendendo a mineração em terras indígenas – até o momento, a atividade é praticada às margens da lei. Em fevereiro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) enviou ao Congresso o projeto de Lei 191/2020, que pretende legalizar essa atividade. 

Uma minoria, formada principalmente por homens

Kabaiwun nasceu e foi criada no Alto Tapajós, onde viu a febre pelo ouro começar a arder. “Os jovens de hoje só querem ouro. É muito triste, e a cada dia aumenta”. Ela diz que a ganância está ganhando cada vez mais gente nas comunidades e lamenta que a cultura do seu povo esteja se perdendo. Por isso, dedica-se a informar sobre os impactos do garimpo. 

“Agora os que defendem o garimpo mostram a cara, antes se escondiam para fingir que não estavam fazendo mal para o povo. Eles não têm mais medo”, lamenta Kabaiwun. “Alguns parentes já foram enganados, contaminados pela ideologia dos pariwat [brancos] de que tem que explorar o território junto com eles para ganharem uma porcentagem”. 

Ela ressalta, porém, que se trata de uma minoria, principalmente formada por homens: “É um pequeno grupo de indígenas aliciados pelos empresários que exploram nosso território. Nós mulheres estamos aqui para dizer que isso não pode acontecer, porque é a vida dos nossos filhos que está em jogo”. E reforça: “Acho que, se as mulheres não estivessem na luta, todos os homens estariam lá negociando o território, infelizmente”. 

Apesar de considerado minoritário, o grupo indígena pró-garimpo tem tido apoio aberto do governo federal. Em agosto de 2020, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chegou a receber em Brasília um grupo de sete garimpeiros Munduruku que foram levados de Jacareacanga (PA) em avião da Força Aérea Brasileira. Após uma conversa a portas fechadas, o Ministério da Defesa chegou a suspender operações de combate ao garimpo ilegal na região. O Ministério Público Federal (MPF/PA) abriu uma investigação para apurar o uso da FAB no transporte do grupo, visto que o objetivo do voo era reprimir crimes ambientais.

“Levar [a Brasília] os Munduruku que querem negociar o território foi uma estratégia deles. Eles estão vindo mesmo para dividir nosso povo”, afirma Kabaiwun. “Isso não deveria estar acontecendo porque existe um Protocolo Munduruku e, de acordo com ele, o governo deveria estar nos consultando dentro do território, não fora.” Assinado em 2014, o protocolo foi produzido com o MPF e tem diretrizes sobre como devem ser realizadas consultas sobre projetos a serem implantados nos territórios desse povo.

Como resposta à ação de Salles, os Munduruku realizaram uma assembleia na aldeia Waro Apompu (na TI Munduruku) na qual se posicionaram contra o garimpo, contra o PL 191 e solicitando que se retomassem as fiscalizações contra o garimpo nas TIs Munduruku e Sai Cinza.

Para Alessandra, toda essa pressão que seu povo tem sofrido é um dos fatores que impediu que os Munduruku mantivessem o isolamento para se proteger da covid-19, que já matou ao menos 21 indígenas dessa etnia, entre eles lideranças. “Os pariwat [brancos] quando querem fazer projeto vão atropelando todos os direitos dos povos indígenas, como se não tivesse covid”.

‘Levam direitos como se fosse favores’

A falta de acesso aos direitos básicos também tem impulsionado a adesão ao garimpo, como observa o geógrafo Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Uma pessoa que está se afogando não tem autonomia para decidir se segura ou não na mão de alguém que estende o braço, ela não tem opção”, afirma o geógrafo. 

Para Torres, é fácil abandonar um grupo com carências básicas de saúde, educação, transporte e dizer que é uma escolha para eles aceitar ou não explorar ouro em seus territórios. “Porque esses garimpos chegam levando como favor aquilo que é um direito. Se eles são privados do que é um direito, os Munduruku são coagidos a aceitar o que é favor. É o caminho que criou máfias no mundo inteiro”.  

“Eles estão caindo em uma armadilha tão grande, que estão colocando o próprio inimigo dentro do território”, lamenta Alessandra sobre aqueles que aderiram ao garimpo. Para a líder Munduruku, os brancos entram no território, com seus advogados, para convencer os indígenas de que explorando ouro eles teriam liberdade e o próprio dinheiro. “A gente sempre diz que não é assim, que vai ser pior para gente”.

A corrida pelo ouro

A mineração no vale do Tapajós é um negócio bilionário. Em reportagem publicada em novembro de 2019, a Repórter Brasil apurou que os donos de garimpos de Itaituba investiram entre R$ 300 milhões e R$ 600 milhões apenas em maquinaria nos seis anos anteriores. Para se ter uma dimensão da extensão desse mercado, só em Itaituba são cerca de 60 mil garimpeiros e mil pistas de pouso para garimpo. 

A Agência Nacional de Mineração estima que existam, na Bacia do Tapajós, 850 garimpos legalizados e outros 2 mil ilegais que seriam responsáveis pela comercialização de cerca de 30 toneladas de ouro por ano. O faturamento dos garimpos ilegais no Brasil varia entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões anuais.

Mas, para Kabaiwun, os Munduruku não ganham nada com o garimpo. “Os pariwat [brancos] estão explorando nossos parentes, nenhum parente está ficando rico. Eles só levam bebida e prostituição para dentro do território, essa invasão não serve para nós. É como a gente fala, quem perde somos nós”. 

As máquinas usadas para escavar os rios em busca de ouro podem custar entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. “Hoje, na Amazônia, acho mais correto falar em mineração do que em garimpagem. Porque, especialmente nos territórios Munduruku, é realizado algo típico de mineração complexa, que exige alto investimento”, explica Gabriel Dalla Favera de Oliveira, procurador do MPF de Santarém. “Já são mais de 20 focos de mineração irregular só no interior da TI Munduruku e há indícios de mais de 100 equipamentos pesados de exploração”.

O perito criminal Gustavo Geiser, da Polícia Federal de Santarém, explica que normalmente os donos de garimpo vêm de outras regiões e que, nos seus quase 15 anos de atuação na fiscalização de garimpos ilegais em terras indígenas, nunca se deparou com nenhum caso de indígena que fosse proprietário de garimpo. “Não acreditamos que os indígenas tenham patrimônio para ter sociedade ou comprar uma máquina própria, porque é muito cara”, afirma. 

Além do garimpo ilegal, o território Munduruku está entre as terras indígenas do país mais visadas por grandes mineradoras. Na última década, segundo levantamento da Agência Pública, entre os povos que tiveram processos minerários em suas terras, os Munduruku foram os que obtiveram o maior número, sendo mais da metade para explorar ouro. Outro levantamento, do Observatório da Mineração, aponta que a gigante Vale tem 52 requerimentos para explorar a Terra Indígena Munduruku. 

“Essas empresas falam que vão respeitar, que não vão [atuar] em nenhuma terra demarcada, mas eles já estão lá, estudando, [fazendo o] mapeamento”, denuncia Alessandra. “Antes já era difícil, e agora com este governo –  em que até os territórios que são demarcados, homologados e registrados estão correndo risco – muitos pariwat já estão lá dentro, imagine os territórios que não são demarcados”. A TI Sawré Mbuyu, autodemarcada em 2014, ainda não está homologada. 

Apesar das altas cifras envolvidas, está enganado quem pensa que essa destruição é compensatória em termos financeiros. O MPF apontou que os prejuízos decorrentes da extração de minério superam em 12 ou mais vezes o valor obtido com a exploração minerária por conta da devastação ambiental. “E, nesse caso, evidentemente, o prejuízo é todo revertido em desfavor das comunidades afetadas e indiretamente da sociedade brasileira. Sequer há a transferência indireta para sociedade porque não se recolhe imposto, já que é uma atividade ilegal e escusa”, explica o procurador do MPF. 

De acordo com relatório do projeto Monitoring of The Andean Amazon Project, entre 2017 e 2019, mais de 3 mil hectares do território Munduruku foram destruídos para dar espaço ao garimpo ilegal. No primeiro quadrimestre de 2020, segundo o Greenpeace, houve um aumento de 58% no desmatamento para garimpo na TI Munduruku comparado ao mesmo período do ano anterior. 

“Cada árvore que está sendo derrubada, que está sendo morta ali, era uma vida, que dá alimento para nossos filhos. Ouro não serve para nada, ninguém come ouro, a gente come é fruta, a gente come buriti, açaí…”, lamenta Kabaiwun. 

Se o ouro não é comestível, o  mercúrio usado nos garimpos acaba entrando na cadeia alimentar. Em laudo da Polícia Federal, a estimativa é de que os garimpos ilegais despejem, por ano, cerca de 7 milhões de toneladas de sedimentos no rio Tapajós, grande parte composto por mercúrio – que contamina peixes e que, no corpo humano, gera várias doenças. Como muitas das lideranças Munduruku já imaginavam, a corrida pelo ouro está envenenando seu povo.

*Colaborou Felipe Garcia

Reportagem produzida com o apoio da International Women’s Media Foundation’s Howard G. BuffettFund for Women Journalists.

A terra indígena Munduruku teve um aumento de 58% no desmatamento causado pelo garimpo nos primeiros quatro meses de 2020, em comparação ao ano anterior (Foto: Greenpeace)

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