Os recém-editados decretos presidenciais permitem que cidadão circule portando uma arma desde que declare ir a um local de treinamento ou manutenção —qualquer local, sem vínculo obrigatório com associação ou clube
Por Carolina Ricardo e Beatriz Graeff, no El País
Jair Bolsonaro foi eleito com promessas de facilitar o acesso a armas de fogo para a população, tentando lastrear essas propostas em alguma relação com a segurança pública. Um dos primeiros atos normativos de seu Governo mirou exatamente esse objetivo e desde então foram editadas mais de 30 normas sobre o assunto. No entanto, a suposta preocupação com a segurança logo se desmascarou no discurso ideológico impulsionado pelo presidente, traduzido nos bordões “povo armado jamais será escravizado” e “não é sobre armas, é sobre liberdade”, entre outros. Além de revelar um deslumbramento quase infantil pelos movimentos pró-armas dos Estados Unidos, trata-se de uma tentativa de apropriação cultural que não encontra e nunca encontrou eco na sociedade brasileira.
Pesquisa de opinião realizada pelo Ibope em março de 2019 mostrou que 73% dos brasileiros são contrários à flexibilização de porte para cidadãos comuns e 61% são contrários a mais facilidade para possuir arma em casa. No mesmo sentido, pesquisa do Datafolha em julho de 2019 registra que 66% dos brasileiros avaliam que a posse de armas deve ser proibida, e 70% rejeitam o projeto do presidente Bolsonaro de facilitar o porte de armas, chegando a 78% de rejeição entre as mulheres.
Assim, atendendo ao interesse de um pequeno grupo de apoiadores, a atual política armamentista abre caminho para a criação de um estoque impressionante de armas e munições concentrado nas mãos de alguns grupos restritos e está alicerçada sobre premissas contrárias às evidências. Vamos abordar um exemplo emblemático.
Na República das bananas, Jair Bolsonaro criou legalmente o “porte de arma abacaxi”. Esse é o apelido pelo qual youtubers entusiastas do direito às armas têm se referido ao instituto criado por decreto presidencial que possibilita que alguns grupos de pessoas autorizadas a possuir armas exclusivamente para fins de prática de tiro desportivo, caça ou coleção possam circular pelas ruas carregando consigo uma arma municiada.
Para obter o “porte de arma abacaxi” tornando-se, digamos, um atirador desportivo, o interessado precisa preencher os requisitos para obtenção de registro junto ao Comando do Exército, que incluem comprovações de idoneidade e atestados de capacidade técnica e aptidão psicológica, assim como comprovar que é filiado a uma associação ou clube de tiro e que treina pelo menos seis vezes por ano, de acordo com as novas normas. Por fim, basta ter consigo, em todos seus deslocamentos armado, o certificado de registro de arma de fogo e a guia de tráfego.
Cumpridas essas condições, os recém-editados decretos presidenciais assegurarão ao cidadão a possibilidade de circular pelas ruas portando uma arma municiada sem ser importunado por qualquer autoridade policial, desde que declare a intenção de se dirigir a um local de treinamento, instrução, competição ou manutenção ou declare estar retornando do local. Em tempo: trata-se de qualquer local de treinamento, instrução, competição ou manutenção, sem vínculo obrigatório com a associação ou clube a que é filiado.
Caso o cidadão sinta que não é capaz de realizar os trâmites exigidos, apesar de todos os esforços do Governo federal para reduzir a discricionariedade e desburocratizar os processos de registro e aquisição de armas de fogo, as associações e clubes de tiro estão preparadas para apoiar os interessados, por meio de despachantes que poderão ser contratados para garantir que o processo seja concluído sem dores de cabeça, no menor prazo possível. E não será difícil achar um clube que te atenda em qualquer cidade em que você quiser andar armado: entre 2019 e 2020 houve um crescimento de 890% no número de entidades de tiro desportivo registradas pelo Exército Brasileiro.
Além de todos os questionamentos sobre a legalidade desse “porte abacaxi” que burla o Congresso, da motivação desse ato que contraria evidências científicas e do custo coletivo desse pacote de benefícios entregue para um seleto grupo identificado como CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), existe uma questão que permanece sem resposta.
Qual é a justificativa para liberar a aquisição de até 60 armas de fogo, sendo 30 de uso restrito (inclusive fuzis), para atiradores desportivos, independentemente da sua profissionalização, pois assim são classificados ao comprovar apenas que possuem recursos para pagar a filiação a uma associação e que realizam seis treinos de tiro em um ano? Vejam bem: seis treinos em um ano. Um treino a cada dois meses. Sessenta armas. Nenhum atirador desportivo sério acredita que um atirador iniciante precisa acessar essa quantidade de armas. É um deboche da sociedade brasileira.
É vergonhoso o destaque que o presidente dá a seu projeto armamentista em meio ao conjunto de inações que caracterizam seu Governo. E é inaceitável a quantidade de tempo e energia mobilizada por essa pauta classista, em meio à crise sem precedentes na qual o mundo está mergulhado.
As instituições de controle democrático precisam reagir a tempo e evitar que nos transformemos na república das bananas e abacaxis. Que o Brasil possa, o mais cedo possível, retomar o trilho do longo caminho que ainda temos que percorrer para consolidar no país políticas de segurança comprometidas efetivamente com o bem-estar de toda a população e com a garantia dos direitos fundamentais.
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Carolina Ricardo é diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
Beatriz Graeff é antropóloga e pesquisadora na área de Segurança Pública e Sistema de Justiça Criminal.
Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo