“Sim, é viável erradicar a extrema pobreza e a pobreza infantil. Temos recursos para isso”. Entrevista especial com Pedro Nery

Os desafios sociais evidenciados pela pandemia de Covid-19 exigem um pacto novo tão ou mais profundo que o de 1988, defende o economista

Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line

Apesar da considerável redução da pobreza no Brasil em decorrência do Auxílio Emergencial, em janeiro deste ano “a pobreza extrema quase triplicou em relação ao ‘período áureo’ do auxílio – de 4,5% para 13%. Está acima do que era antes da pandemia. A taxa de pobreza deve ter alta semelhante”, adverte Pedro Nery em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Dar continuidade à redução da pobreza, menciona, é um dos principais desafios do país. “Além da pandemia e dos nossos problemas crônicos, esta estrutura é desafiada pelas mudanças tecnológicas deste século, que permitem novas formas de ocupação que não se moldam ao sistema anterior. É fundamental que o Bolsa Família seja ampliado, tanto em cobertura quanto em valor dos benefícios, ou que um novo benefício neste sentido seja criado. É um caminho de renda básica”, insiste.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Nery diz que o Auxílio Emergencial permitiu, além da redução da pobreza, “um novo entendimento na sociedade sobre quem são os pobres e sobre a importância de benefícios como o auxílio ou o Bolsa”, ao assistir não somente a população de baixa renda, mas também os trabalhadores informais, totalizando quase 70 milhões de pessoas. “Talvez nunca tenhamos chegado tão perto de mudar de forma mais significativa nossa rede de proteção social. E, por fim, famílias mais pobres puderam usar o auxílio para gastos que vão ajudá-las para além da pandemia. É o domicílio que vai ter uma geladeira melhor, o menino que agora vai poder usar um equipamento para estudar, revestimentos que diminuem a insalubridade. Meu ponto é: o auxílio não acabou deixando só uma dívida pública alta, ele deixa heranças também”.

Ele destaca as dificuldades para erradicar a pobreza que atinge um a cada quatro brasileiros, mas reitera a viabilidade de cessar a extrema pobreza. “Temos um desafio enorme, a restrição fiscal realmente existe, a questão da dívida não é brincadeira. E além da agenda de renda básica, existe uma agenda de emprego que demanda recursos. Então precisamos de um pacto novo tão ou mais profundo que o de 1988, no sentido de rever a atuação do Estado quando tributa e quando gasta”.

O “desenho” de um novo programa de distribuição de renda, frisa, é o maior desafio a ser enfrentado no momento. Na avaliação do economista, a instituição de uma renda infantil incondicional é o melhor caminho a ser seguido. “Em relação a uma renda universal, acho que o benefício universal infantil se destaca com duas diferenças. Uma é o custo, naturalmente um benefício para todos será mais caro, ou terá que ser menor. A outra razão é relativa à importância deste grupo. Famílias com crianças são muito mais vulneráveis à pobreza”.

Pedro Fernando Nery é doutor, mestre e bacharel em Economia pela Universidade de Brasília – UnB. Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência. Agraciado com o Edgardo Buscaglia Award on Empirical Research in Law and Economics (2013), conferido pela Associação Latino-Americana e Ibérica de Direito e Economia – Alacde. É autor do livro Reforma da Previdência – Por que o Brasil não pode esperar? (Elsevier, 2019), com Paulo Tafner.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Estudos realizados no ano passado mostraram a eficácia do Auxílio Emergencial na redução da pobreza e das desigualdades sociais no Brasil. O que essa experiência nos ensina acerca de como esse problema poderia ser enfrentado no país daqui para frente e sobre que modelo de programa social poderia ser instituído?

Pedro Nery – O programa mostra à sociedade onde estão os mais pobres do Brasil. Em um país desigual como o nosso, é fácil perdermos de vista quem são aqueles que estão em pior situação. O auxílio tinha como pré-requisito não apenas a baixa renda, mas também a ausência de emprego com carteira assinada. E quase 70 milhões de pessoas preencheram estes requisitos. Por isso é muito importante que a proteção social seja robusta para as famílias com desempregados, trabalhadores informais ou fora da força de trabalho. O Bolsa Família, assim, é mais efetivo, por exemplo, do que a Previdência urbana ou o salário mínimo – pois são voltados a quem tem emprego formal. Veja, não quer dizer que não sejam políticas importantes. Mas são políticas que têm dificuldade de chegar a quem precisa ainda mais. Queremos chegar nas mulheres, na população negra, na mãe de crianças pequenas.

Além da pandemia e dos nossos problemas crônicos, esta estrutura é desafiada pelas mudanças tecnológicas deste século, que permitem novas formas de ocupação que não se moldam ao sistema anterior. É fundamental que o Bolsa Família seja ampliado, tanto em cobertura quanto em valor dos benefícios, ou que um novo benefício neste sentido seja criado. É um caminho de renda básica.

IHU On-Line – Na última entrevista que nos concedeu no ano passado, o senhor fez uma estimativa de que, sem o Auxílio Emergencial, a tendência é que o desemprego suba para um nível mais alto do que na recessão de 2015-2016 e a pobreza e as desigualdades voltem a aumentar. Já há novas estimativas para este ano? O que essa projeção significa em termos trabalhistas e sociais?

Pedro Nery – Já está subindo. A Fundação Getulio Vargas – FGV Social estimou em janeiro que a pobreza extrema quase triplicou em relação ao “período áureo” do Auxílio Emergencial – de 4,5% para 13%. Está acima do que era antes da pandemia. A taxa de pobreza deve ter alta semelhante.

Isso é péssimo, e tem consequências duradouras. Pobreza extrema é um nível de potencial privação calórica. Estamos falando de crianças com dificuldade para desenvolver seu intelecto ou grávidas com gestação de elevado estresse. Para além do problema ético, em longo prazo vai nos custar caro.

IHU On-Line – As informações divulgadas até o momento sobre a nova rodada do Auxílio Emergencial indicam que haverá uma redução no número de beneficiários, que será da ordem de 40 milhões de pessoas, e serão pagas quatro parcelas de 250 reais entre março e junho. O que esse programa representa na atual conjuntura?

Pedro Nery – É importante, certamente é melhor do que nada. Mas o corte, como veiculado no noticiário, se dará por meio da exclusão de dezenas de milhões que vivem em famílias beneficiadas pelo Bolsa Família. A lógica aqui é a seguinte: temos uma dificuldade de conseguir os recursos, então o Auxílio Emergencial vai ser para quem a gente tem certeza que perdeu renda na pandemia, não para quem já era pobre antes.

Então haverá uma resistência muito grande. A popularidade do presidente tende a continuar caindo, porque as famílias continuarão sentindo falta do auxílio. O Bolsa Família é muito pouco perto do que foi o auxílio emergencial. Tirar essas famílias da nova rodada pode ter consequências políticas.

E há o rumo da judicialização. Isso parece meio fora do radar agora: é possível que o novo auxílio vá parar no Judiciário. Porque pessoas com mesmo nível de renda vão ser tratadas de forma diferente. Se você já era pobre antes, fica no Bolsa Família, com o benefício baixinho. Se você virou pobre na pandemia, toma o auxílio. Então a Maria e o João podem ter a mesma renda, mesmo número de pessoas na família, mas eu não vou dar o benefício para Maria porque acho que tenho que ajudar somente quem foi afetado pelo isolamento social, e não, digamos, quem já vivia no isolamento econômico.

Será um desafio defender isso diante do princípio da isonomia. Partidos ou outras entidades podem apontar inconstitucionalidade.

IHU On-Line – Alguns governadores estão criando programas para complementar o Auxílio Emergencial. Quais os limites e potencialidades desse tipo de proposta?

Pedro Nery – Acontece em alguns municípios também, mas sinceramente é muito pouco. A maior parte dessas experiências é bastante tímida, quase experiências-piloto. Há maior limitação de recursos nos entes subnacionais, que não podem por exemplo se endividar da mesma forma que a União. Mas eles podem, por exemplo, elevar contribuição previdenciária de seus servidores e gastar menos com o déficit desses regimes de previdência, usando os recursos para proteção social de quem mais precisa. Me parece haver pouca disposição de pagar benefícios realmente robustos, o que é uma pena. Alguns programas anunciados são virtualmente peças de marketing, atendem proporção ínfima dos beneficiados pelo auxílio, coisa de menos de 1%.

Mas há potencial, quem sabe haja uma mudança na visão de que benefícios sociais devem ser pagos primordialmente pela União. Isso não tem respaldo na Constituição. Prefeitos e governadores podem, sim, instituir programas de transferências de renda. Um número impressionante é o das previdências: o déficit da previdência de servidores estaduais e municipais é quase quatro vezes maior que todo o gasto do Bolsa Família.

IHU On-Line – O governo descartou a possibilidade de ampliação do Bolsa Família neste semestre. Quais são as consequências disso?

Pedro Nery – É muito ruim, se eles forem excluídos do novo auxílio. Mais gente continuará procurando emprego na pandemia. Crianças vão continuar com dificuldades. A popularidade do governo não vai se recuperar. Quem está no Bolsa, principalmente as famílias com crianças, deveria receber o auxílio sim.

IHU On-Line – O número de contemplados pelo Auxílio Emergencial no ano passado foi de 68 milhões de pessoas, enquanto em torno de 13 milhões de famílias receberam o Bolsa Família. Considerando essa diferença quantitativa, que critérios deveriam nortear um programa de distribuição de renda no país, especialmente na atual conjuntura de crise sanitária, econômica e social?

Pedro Nery – O desenho é mesmo um desafio. Queremos ser generosos, mas além da restrição fiscal, há outro problema: programas mais generosos podem atrair mais gente do que só as que precisam.

Há dois tipos de visão aqui. Uma é da universalização, por exemplo um benefício para todas as famílias com crianças, evitando estigmas ou desestímulo à obtenção de outras rendas. A outra é a da focalização, de gastar mais para um grupo menor. Elas carregam vantagens e desvantagens, mas sinceramente, qualquer uma dessas é um avanço se conseguir vir com recursos.

IHU On-Line – O senhor já defendeu, em outras ocasiões, ou a reforma do Bolsa Família ou a criação de um novo benefício. O que é mais indicado para o atual momento brasileiro, tendo em vista a situação de vulnerabilidade em que vive uma parcela da sociedade?

Pedro Nery – O Bolsa Família funciona muito bem. Uma expansão do Bolsa ou criação de um novo benefício, tanto faz, o que vier é lucro. Porque nesse momento os dois parecem distantes. O Bolsa reúne uma capilaridade grande, muita expertise acumulada ao longo de anos e pelo país. Mesmo um novo benefício precisará se basear nessa experiência.

IHU On-Line – Ao comentar a possibilidade de se instituir uma renda básica universal incondicional, o senhor defendeu a instituição de uma renda infantil. Por que esse modelo seria mais adequado do que a instituição de uma renda universal sem condicionantes?

Pedro Nery – O benefício universal infantil, que existe em países da Europa e agora é discutido nos Estados Unidos, pode ser sim incondicional – isto é, as famílias elegíveis não precisariam, por exemplo, ter uma renda dentro de um certo limite (ou pelo menos de um limite baixo).

Em relação a uma renda universal, acho que o benefício universal infantil se destaca com duas diferenças. Uma é o custo, naturalmente um benefício para todos será mais caro, ou terá que ser menor. A outra razão é relativa à importância deste grupo. Famílias com crianças são muito mais vulneráveis à pobreza, muito mesmo (porque uma parte da família, claro, não traz renda ao domicílio, e porque a empregabilidade da mãe é difícil). Ao mesmo tempo, a ciência tem mostrado que o retorno deste gasto volta muito para a sociedade. Tipo assim, não adianta tanto depois pensar muito em universidade, programas de qualificação ou mesmo de combate à violência, se você desperdiça a infância.

IHU On-Line – O senhor fez um levantamento a partir dos dados do Ministério do Desenvolvimento Social, o qual mostra que somente 6 milhões de mães estão incluídas no Bolsa Família, enquanto outras 4,8 milhões não estão cadastradas no programa. As mulheres chefes de família, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, correspondem a 54,9% das pessoas que vivem com renda per capita mensal inferior a US$ 5,50. Como o senhor tem refletido especificamente sobre esse estrato da população, considerando que os problemas que as mulheres enfrentam não dizem respeito somente à renda?

Pedro Nery – Esse grupo é chave para o desenvolvimento do país. Levar renda às mães solo implica diminuir muito a pobreza, porque elas alimentam outras bocas, e implica fortalecer o desenvolvimento humano dos trabalhadores de amanhã. Crianças precisam de uma habitação adequada para não desenvolver doenças e poder brincar, recursos para se alimentar e serem estimuladas, e também para viverem sob menos estresse. Além disso, a baixa taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro implica menos PIB para o país. De quanto talento a sociedade é privada por que mulheres esforçadas e brilhantes não conseguem participar do mundo do trabalho?

IHU On-Line – Apesar da redução da pobreza através do Auxílio Emergencial, a crise pandêmica também evidenciou como milhares de famílias continuam sem acesso à saúde, habitação, educação e outros serviços sociais. Como avançar na solução desses problemas sociais?

Pedro Nery – Sem dúvida o problema não é só de transferência de renda, embora as transferências ajudem também com saúde e educação. Essas outras carências devem envolver um conjunto de iniciativas. Podemos pensar em novas fontes de financiamento para o Estado (lucros e dividendos, heranças, contribuição previdenciária de servidores e militares), mas há uma pauta, sim, de efetividade do gasto que não pode ser tabu. É natural que nem todas as políticas instituídas ao longo do tempo sejam capazes de ajudar a população, então elas podem ser revisadas. A União gasta demais, por exemplo, em Brasília.

Reforma administrativa – em outro governo – também pode ser um tema importante. Os mais pobres precisam muito de uma boa educação e saúde, e as regras que regem a entrega desses serviços podem ser aprimoradas. Digo que em outro governo porque agora não parecer haver confiança quanto aos propósitos da medida. Há uma postura intervencionista até em empresas estatais, também na Administração indireta. Outro dia, membro do governo estava defendendo nepotismo. Então para muita gente fica muito difícil confiar, digamos, em uma “reforma administrativa do bem”.

IHU On-Line – Os economistas divergem acerca do financiamento de programas sociais e, em geral, dividem-se entre neoliberais e neokeynesianos. Tendo em vista os desafios acentuados pela crise pandêmica, como é possível avançar nesse debate?

Pedro Nery – Existe uma convergência muito grande na verdade, embora as divergências chamem mais atenção. Polarização, redes sociais, contribuem para isso. Veja que muitos economistas egressos do governo Dilma, que ocuparam funções importantes, defenderam a reforma da Previdência, sugerem mudanças no abono salarial e até um tipo de teto de gastos. Do outro lado, é difícil encontrar alguém que não concorde, por exemplo que a isenção sobre lucros e dividendos no imposto de renda é uma distorção. Dá para avançar sim.

IHU On-Line – Qual é a situação dos demais países da América Latina em relação à pobreza neste período de pandemia? Estabelecendo um comparativo entre outros países e o Brasil, que diferenças é possível perceber acerca do enfrentamento da pobreza no último ano?

Pedro Nery – Foi muito diferente. O Brasil é um caso isolado por ter conseguido reduzir a pobreza temporariamente. O resto dos países não conseguiu segurar o aumento da pobreza com a pandemia. Alguns instituíram benefícios, e limitaram esse aumento. Mas tem tragédias como a do México, em que quase 10 milhões de pessoas caíram na pobreza e a gestão da pandemia foi péssima, com uma das maiores mortalidades do mundo.

IHU On-Line – Recentemente, o senhor mencionou um estudo realizado pelo Instituto de Economia do Trabalho (IZA, da Alemanha) sobre o impacto dos vouchers distribuídos na Itália na diminuição da mobilidade social, como um exemplo para fomentar o distanciamento social. No caso brasileiro, o Auxílio Emergencial teve algum impacto nesse sentido?

Pedro Nery – Não podemos cravar isso ainda. É possível que sim. Houve muitas resistências às medidas de distanciamento. Quando elas implicam perda de renda, há um medo natural do trabalhador de que ele não consiga se adaptar, de que sua família passe por dificuldades. O auxílio pode ter trazido conforto para seguir as medidas, confiar na política do Estado.

Além disso, o Auxílio Emergencial significativo não foi um desperdício por outras razões. Há um novo entendimento na sociedade sobre quem são os pobres, sobre a importância de benefícios como o auxílio ou o Bolsa. Talvez nunca tenhamos chegado tão perto de mudar de forma mais significativa nossa rede de proteção social. E, por fim, famílias mais pobres puderam usar o auxílio para gastos que vão ajudá-las para além da pandemia. É o domicílio que vai ter uma geladeira melhor, o menino que agora vai poder usar um equipamento para estudar, revestimentos que diminuem a insalubridade. Meu ponto é: o auxílio não acabou deixando só uma dívida pública alta, ele deixa heranças também.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Pedro Nery – Temos um desafio enorme, a restrição fiscal realmente existe, a questão da dívida não é brincadeira. E além da agenda de renda básica, existe uma agenda de emprego que demanda recursos. Então precisamos de um pacto novo tão ou mais profundo que o de 1988, no sentido de rever a atuação do Estado quando tributa e quando gasta. Não é simples erradicar a pobreza, que afinal atinge normalmente um a cada quatro brasileiros. Mas é viável sim erradicar a extrema pobreza, e é viável erradicar a pobreza infantil. Temos recursos para erradicar a extrema pobreza e para erradicar a pobreza infantil. Uma agenda de reformas do bem precisa avançar.

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