Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras

Vacinação começou com mulher negra, mas agora há mais brancos vacinados; mortalidade da covid-19 em negros é maior

Por Bianca Muniz, Bruno Fonseca, Larissa Fernandes, Rute Pina, em Agência Pública

Há mais pessoas brancas que negras vacinadas contra o coronavírus no Brasil. Essa é a conclusão de um levantamento exclusivo feito pela Agência Pública a partir dos dados de 8,5 milhões de pessoas que receberam a primeira dose das vacinas contra a covid-19 aprovadas e aplicadas no país.

Apesar de a vacinação no Brasil ter se iniciado com uma mulher negra há quase dois meses — a enfermeira Mônica Calazans — hoje há cerca de duas pessoas brancas para cada pessoa negra vacinada. A desigualdade permanece se considerarmos a divisão da população brasileira: há menos negros vacinados em relação à quantidade de brasileiros que se declaram negros quando comparada à população branca que foi vacinada.

A diferença nos dados de vacinação entre brancos e negros é ainda mais grave devido à desigualdade da mortalidade pela covid-19 no Brasil: das pessoas que tiveram a doença no país, há proporcionalmente mais mortes entre negros que brancos. Além disso, negros são a maioria absoluta dentre os casos registrados de covid-19 no Brasil e também das mortes.

Fila da vacina anda mais rápido para brancos que negros

Receber a primeira dose de uma vacina contra a covid-19 ainda é raridade no Brasil: o país vacinou apenas cerca de 4,5% da população com a primeira dose até o dia 14 de março. E apesar do Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde incluir populações negras dentre os grupos prioritários — comunidades tradicionais quilombolas estão dentre os primeiros que deveriam receber a vacina — há menos pessoas negras vacinadas que brancas.

Segundo a Pública apurou, no Brasil, há 3,2 milhões de pessoas que se declararam brancas e que receberam a primeira dose de uma vacina contra a covid-19. Já entre pessoas negras, esse número cai para pouco mais de 1,7 milhão.

Pública questionou o Ministério da Saúde sobre a diferença na vacinação de negros e brancos e se há alguma política para redução das desigualdades raciais em relação à vacinação ou à mortalidade da covid-19 para a população negra. O ministério ainda não respondeu à reportagem.

A médica Rita Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, atribui a desigualdade na vacinação à diferença na expectativa de vida das populações negra e branca. 

“A população negra que chega a mais de 90 anos é menor que a população branca [na mesma faixa etária] porque a expectativa de vida da população negra é menor, tanto pela morte da juventude negra, por causas externas, quanto por todos os outros acometimentos que o racismo impacta, como a forma que se acessa saúde”, analisa.

A população negra é comparativamente mais jovem que a branca. Apesar de o Brasil ter mais pessoas negras que brancas, negros são minoria em todas as faixas etárias a partir de 40 anos de idade. Para se ter uma ideia, a partir dos 60 anos, havia cerca de 30% a mais de pessoas brancas que negras no último censo do IBGE, de 2010.

Outro fator que ajuda a explicar os motivos pelos quais o país está vacinando menos as pessoas negras, de acordo com Borret, é o entendimento de quem são os grupos prioritários. Segundo a médica, grupos como trabalhadores terceirizados de hospitais, do setor de limpeza e segurança, por exemplo, não foram considerados na primeira etapa da vacinação em algumas regiões do país.

“Enquanto alguns municípios vacinaram médicos e enfermeiros, outros municípios entenderam todos que estavam na linha de frente, dos técnicos de enfermagem aos profissionais da limpeza que estão trabalhando nas unidades de saúde, garantindo a diminuição da contaminação, foram considerados”, pontua.

A divisão entre profissões é marcante: entre os vacinados, negros são maioria de pessoas em situação de rua; já brancos são a maior parte dos vacinados em várias profissões, como bombeiro, médicos e enfermeiros. 

“Se a gente for olhar os técnicos de enfermagem, a maioria são pessoas negras que estão expostas. E os profissionais da limpeza também, a maioria são pessoas negras, mas que nem sempre foram lidos como profissionais da saúde. Até estudante de Medicina que não estava na linha de frente acabou passando na frente dos profissionais da limpeza —  o que é um absurdo, se a gente for analisar estrategicamente quem vacinar primeiro, quem são as pessoas que precisam estar trabalhando para o serviço de saúde continuar oferecendo tratamento”, analisa Borret.  

O professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Hilton Silva, membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), também adiciona, como um dos fatores que acirram a desigualdade na imunização, a dificuldade de acesso aos pontos de vacinação.

“Muitas vezes é uma questão de locomoção. Vai ter a população branca que tem, por exemplo, a possibilidade de pegar o seu carro e ir para um drive thru para ser vacinado, enquanto a pessoa idosa que mora na periferia, que mora no quilombo ou numa área mais remota não tem essa possibilidade porque não tem esse transporte”, afirma o professor. “Você percebe que isso em si já oferece um acesso diferencial em relação à vacinação”, analisa.

Para Silva, os dados sugerem que a estratégia de vacinação no país, além de estratificar por idade, por profissão, também deveria se guiar por outros critérios, como regional e a taxa de mortalidade. “Mesmo entre os grupos prioritários, seria preciso estabelecer a prioridade das prioridades, porque o idoso branco é diferente do idoso negro, e isso se reflete nas taxas de mortalidade”, pontua. 

De acordo com o levantamento da Pública, em todos os grupos de faixas etárias há menos negros vacinados que brancos — entre pessoas acima de 60 anos que foram vacinadas, há o dobro de brancas que negras.

A diferença é tão grande que permanece mesmo quando corrigimos a divisão da população brasileira entre brancos e negros por idade: há mais brancos idosos que negros, apesar de a população negra ser maioria no país. Ainda sim, há mais idosos brancos vacinados que negros proporcionalmente.

A quantidade de mulheres vacinadas é aproximadamente o dobro da de homens, tanto na população negra quanto na branca.

O levantamento levou em consideração apenas as pessoas a partir de 18 anos de idade que receberam a primeira dose de uma das duas vacinas aprovadas pela Anvisa e já distribuídas pelo Governo Federal — a CoronaVac/Sinovac, produzida pelo Instituto Butantan, e a AstraZeneca/Oxford, fabricada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A segunda dose tem um prazo diferente para cada uma das vacinas: o Butantan recomenda a segunda dose entre 14 e 28 dias após a primeira; já a Fiocruz recomenda três meses para a segunda dose da vacina AstraZeneca/Oxford. Os dados incluem vacinas aplicadas até o dia 14 de março.

Com menos vacinas, mortalidade é maior em população negra

No Brasil, a pandemia afetou brancos e negros de forma desigual, não apenas na vacinação: segundo a Pública apurou, os dados de mortalidade da covid-19 são bastante diferentes entre os dois grupos. Até mesmo os períodos com mais casos e mortes não foram os mesmos.

A maior parte dos casos e das mortes por covid-19 ocorreram em negros, considerando os números absolutos. Mais de 89 mil pessoas negras morreram no Brasil pela doença desde o início da pandemia, de um total de 260 mil casos confirmados. O número de mortes entre negros é cerca de 10% a mais que entre brancos.

Os dados também apontam que a mortalidade  — isto é, a quantidade de pessoas que morrem em relação a quem tem a doença — foi maior entre negros que entre brancos: 92 óbitos a cada 100 mil habitantes em negros, para 88 em brancos. A reportagem contabilizou as mortes decorrentes de quadros graves de problemas respiratórios (SRAG) causados pelo coronavírus e registrados pelo Ministério da Saúde até 22 de fevereiro.

A pesquisadora Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA, lembra que a população negra é mais acometida pelas comorbidades que são consideradas fatores de risco para a Covid-19, como a diabetes. 

“A população negra vai acumulando doenças crônicas em uma situação mais agravada, onde as pessoas não cuidam porque elas vivem em contextos mais difíceis”, diz a pesquisadora. Ela vive precarização da vida, no acúmulo do racismo, nas suas diversas dimensões na vida das pessoas. Com isso, o envelhecimento também se torna mais negligenciado e é prejudicado por esse acúmulo de desigualdade e do racismo na vida dessas pessoas”, afirma.

Os números do levantamento mostram que pessoas negras que foram internadas em UTI por covid morreram mais rapidamente que brancos. Segundo o professor Hilton Silva, da UFPA, essa diferença pode ser explicada por outro dado: a média mais alta de dias que pessoas negras levam para serem atendidos nos hospitais depois de terem os primeiros sintomas da doença. 

“Se a população negra chega mais tarde ao serviço de saúde, ela vai chegar mais grave ao serviço de saúde. Se a saída é por óbito, naturalmente você tem uma pessoa que chega em situação mais grave, com todos os antecedentes históricos e porque ela foi atendida mais tardiamente. Ela tem uma probabilidade maior de ter um desfecho negativo do que uma pessoa que é atendida mais precocemente”, analisa. E a chegada tardia ao sistema de saúde, para Silva, é mais um reflexo do racismo estrutural, “onde quem tem mais acesso ao longo de todo o processo vai ter um desfecho melhor”.

As diferenças entre brancos e negros existem até mesmo nos picos e tendência de crescimento da pandemia: a quantidade de mortes de pessoas negras após quadros graves de problemas respiratórios vem crescendo desde o fim de 2020 — justamente quando houve o pico na população branca. A tendência é a inversa em pessoas brancas.

Rita Borret avalia que a alta do número de casos em negros e brancos em diferentes fases pode estar relacionado a qual estado está como epicentro da pandemia no país, naquele momento. “Esse dado é dinâmico e eu acho que tem a ver com qual o estado que está em aumento [do número de casos de covid-19]. Quando os estados com população negra com quantitativo maior, como Bahia, Amazonas, Rio de Janeiro, vemos esse aumento. Mas teve um momento em que a região Sul estava com casos em alta. Então, no contexto brasileiro, isso acaba mudando um pouco porque a população negra também não está distribuída de maneira uniforme no país”, observa a médica.

Outra avaliação que a médica faz é que a falta de dados no início da pandemia também pode estar relacionada a esses picos, mais do que uma tendência epidemiológica. “A gente conseguiu racializar os dados sobre a pandemia pouco antes de maio de 2020. Os dados de março e abril daquele ano foi antes daquele momento em que se começou a desagregar as informações por raça/cor, um período em que 50% dos óbitos estavam com esse dado ignorado.”

Pesquisadores e organizações cobram mais transparência e dados sobre a pandemia

A produção dos dados raciais sobre imunização ainda é incipiente e precária. Essa é uma ponderação que a pesquisadora Emanuelle Góes também faz. Em 27,5% dos formulários preenchidos durante a primeira dose da vacinação contra a Covid-19, o quesito raça/cor foi ignorado. Para Góes, isso dificulta enxergar o cenário com clareza.

“A informação do quesito cor nos dados de vacinação é ruim e mal-preenchida. Não há uma preocupação em ter um preenchimento qualificado”, afirma. “Precisamos dos dados, mas não de qualquer forma. Precisamos de dados bem qualificados, bem preenchidos para fazer uma análise de boa qualidade”, defende a pesquisadora.

A falta de transparência dos dados sobre a covid-19, principalmente sobre como a doença tem afetado de forma diferente a população negra e outras populações vulneráveis, é observada desde o início da pandemia. No ano passado, mais de 150 entidades do movimento negro reivindicaram a produção desses dados ao Ministério da Saúde, que só passou a estratificar os dados em meados de abril de 2020.

Para o professor Hilton Silva, a má qualidade das informações revela a negação da existência do racismo.“Se você não coleta os dados, você não precisa agir sobre ele”, afirma o professor. “Desde 2017 existe uma obrigatoriedade da notificação do registro raça/cor nas documentações de saúde, mas hoje nós temos uma ausência de na ordem de 30% ou mais do preenchimento do quesito raça/cor em todos os processos de notificação relacionados à saúde em geral no Brasil.”

“O que a gente observa aqui são tentativas muito, digamos assim, heróicas de quem trabalha com essa questão de buscar informações, às vezes parciais, em diversas fontes para fazer esse levantamento.

Metodologia da análise dos dados

Os dados de SRAG e da Campanha Nacional de Vacinação contra Covid-19 foram exportados do portal OpenDataSUS nos dias 22 de fevereiro e 15 de março, respectivamente.

Filtramos os dados de SRAG classificados como Covid-19 e contabilizamos as notificações, internações em UTI e óbitos de pacientes que declararam cor/raça como branca, parda ou preta (as duas últimas foram somadas, formando a classificação negra, utilizada nas análises). O script utilizado para a limpeza, os dados limpos e análise podem ser conferidos nesta pasta 

A base de dados de vacinação foi filtrada inicialmente pelo campo que descreve qual dose foi aplicada. Analisamos apenas os dados da 1ª dose. Em seguida, verificamos a quantidade de vacinados por cor/raça declarada, faixas de idade e grupos de atendimento. As análises realizadas podem ser vistas neste arquivo.

Vacinação drive thru na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), zona norte do Rio (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

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